Para o economista americano Barry Eichengreen, a retórica de Trump está minando a fé de uma parcela da população americana na integridade das eleições e do processo político (Visual China Group/Getty Images)
Fabiane Stefano
Publicado em 3 de janeiro de 2021 às 16h11.
Última atualização em 4 de janeiro de 2021 às 12h18.
O economista americano Barry Eichengreen é um dos mais renomados estudiosos da globalização e de seus efeitos sobre a economia global. Professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ex-consultor sênior no Fundo Monetário Internacional (FMI), Eichengreen aponta que políticas adotadas durante o governo de Donald Trump deverão perdurar, sobretudo, as que dizem respeito à China.
“Biden não vai remover as tarifas dos Estados Unidos sobre a China antes de negociações bilaterais e de algumas promessas do lado chinês. Isso, por sua vez, significa tensão contínua na Organização Mundial do Comércio. Portanto, não acho que o relógio possa simplesmente voltar para 2016”, diz o economista.
Para além do comércio global, o economista teme que o comportamento de Trump, que reluta em aceitar sua derrota nas eleições, faça com que uma parte da população questione a legitimidade do governo Biden, o que pode dificultar a implementação de políticas públicas do novo presidente.
Leia a seguir a seguir a entrevista de Eichengreen à EXAME.
A duas semanas do presidente eleito Joe Biden assumir a Casa Branca, Donald Trump ainda reluta em aceitar a derrota e coloca em dúvida o processo eleitoral americano. Como esse comportamento afeta a sociedade americana?
A retórica e as ações de Trump estão minando a fé de uma parcela significativa da população americana na integridade das eleições e do processo político em geral. Não estou totalmente surpreso. Poucas pessoas acreditaram que Trump deixaria o cargo silenciosamente ou graciosamente. Além disso, plantar as sementes da desconfiança é mais fácil após uma pandemia, quando a desinformação é abundante e a desconfiança sobre o governo já prevalece.
E como isso na prática deve atrapalhar o governo Biden?
A implicação é que um terço dos americanos questionará a legitimidade do governo Biden. E quando as pessoas consideram um líder ilegítimo, estão menos inclinadas a aceitar suas recomendações, por mais sensatas que sejam. O cidadão está menos inclinado a se comprometer e dar a esse líder uma "vitória", não importa o quão racional esse acordo possa ser quanto aos méritos. Em outras palavras, a retórica e as ações de Trump tornarão mais difícil para Biden avançar em sua agenda.
A recusa de Trump em aceitar a derrota também está revivendo velhos clichés raciais (não pela primeira vez). O atual presidente está questionando o voto em cidades predominantemente afro-americanas. Suas ações, portanto, revivem memórias desagradáveis da supressão do eleitor negro, que tem uma história longa e desagradável nos Estados Unidos.
O senhor criticou diversas vezes o presidente Trump. O que aponta de pior em seu governo? E o de melhor?
A lista do que foi pior é longa: retirar os Estados Unidos do Acordo do Clima de Paris, reverter a regulamentação ambiental doméstica, aproximar-se de ditadores e autocratas, antagonizar aliados americanos, separar crianças de seus pais na fronteira, empoderar fanáticos e supremistas brancos, ou nomear juristas muito tacanhos para a Suprema Corte e, em números ainda maiores, para a bancada federal. É difícil saber o que eu colocaria em primeiro lugar.
Já de melhor eu apontaria para a Operação Warp Speed, que ajudou no desenvolvimento de vacinas. E mesmo nesse item, no entanto, é importante notar que várias das primeiras vacinas avançaram sem apoio direto do governo dos Estados Unidos.
Como deverá ser a atuação do governo Biden no comércio global, área em que Trump criou uma série de atritos com diversos parceiros dos Estados Unidos?
Biden e seus nomeados são multilateralistas comprometidos. Mas reverter o legado de Trump levará tempo. Por exemplo, as atitudes dos EUA em relação à China mudaram de maneira duradoura. Biden não vai remover as tarifas dos EUA sobre a China antes de negociações bilaterais e de algumas promessas do lado chinês. Isso, por sua vez, significa tensão contínua na Organização Mundial do Comércio. Portanto, não acho que o relógio possa simplesmente voltar para 2016.
Como devem ser as relações com a China, especificamente?
O aumento da tensão EUA-China é permanente e não será totalmente revertido sob Biden. Os EUA têm preocupações legítimas sobre os direitos humanos e das minorias na China, sobre o apoio chinês à Coreia do Norte.
Há também questões em relação à segurança, como no caso Huawei, e o tratamento que a China dá aos direitos de propriedade intelectual das empresas americanas. Essas preocupações são bipartidárias - tanto democratas quanto republicanos no Congresso agora as concordam até certo ponto.
Ao mesmo tempo, existe agora a possibilidade de negociações mais informadas e produtivas entre as duas partes. A nomeada de Biden para o cargo de representante comercial dos EUA, a advogada especializada em China Katherine Tai, fala mandarim.
Com Biden, a agenda ambiental está fortalecida agora?
Fortalecida em relação a quê, pode-se perguntar? Em relação aos anos Trump 2017-20? Absolutamente. Tão forte quanto precisa ser para evitar a calamidade climática iminente? Ainda não. Biden pode fazer algum progresso na agenda climática por meio de regulamentação, que os departamentos e agências de seu governo irão fiscalizar. Mas esses regulamentos têm de ser mantidos pelos tribunais, e não está claro o quão simpático será um banco federal agora pesado com os indicados de Trump quando houver disputas legais.
E há muitas questões relacionadas ao clima que só podem ser tratadas por meio de legislação. Aqui, o presidente Biden precisará do apoio e colaboração do Congresso. Dada a relutância dos republicanos no Senado em dar uma "vitória" a Biden, não está claro se ele terá uma colaboração significativa. Claro, ele não precisará do apoio dos republicanos se os democratas vencerem as duas eleições de segundo turno na Geórgia em 5 de janeiro. Mas esse continua sendo um cenário improvável.
O senhor tem estudado os efeitos da globalização há muitos anos. Quais suas expectativas para 2021, teremos nações mais comprometidas com a globalização? Ou veremos mais medidas protecionistas sendo tomadas?
A pandemia foi um choque para as cadeias de suprimentos globais, mas também vimos o valor e a importância dessas cadeias de suprimentos no fornecimento de equipamentos de proteção, os EPIs. E agora estamos prestes a ver o mesmo na fabricação e distribuição de vacinas. Portanto, as cadeias de suprimentos serão reconfiguradas, mas não desaparecerão.
Acho que acabou a era em que o comércio transfronteiriço e os fluxos de capital se expandiram mais rapidamente do que a economia global. A rápida expansão anterior refletiu o surgimento da China como potência comercial global, partindo de praticamente do nada no início da década de 1990. Reflete também os avanços tecnológicos que afetam o comércio (conteinerização) e as finanças internacionais (plataformas computadorizadas de negociação de moedas e cabos de fibra ótica submarinos).
Mas não vejo razão para que as transações internacionais e a economia global não possam agora se expandir paralelamente (uma na mesma taxa que a outra). No entanto, isso requer não apenas um consenso a favor da globalização entre nossos líderes políticos, mas também por parte do público. E o público continuará a apoiar a globalização somente se os governos fizerem mais para ajudar os deslocados e desfavorecidos.
No seu livro “A Tentação Populista”, de 2018, o senhor aponta que foi justamente a incapacidade de muitos governos em atender os anseios dos mais pobres que alimentou a reação populista. Sem Trump na Casa Branca, a onda populista deve arrefecer?
Bem, o presidente Jair Bolsonaro e gente como Viktor Orbán, na Europa, não terão mais um aliado ou um ouvido simpático na Casa Branca. Quanto isso os enfraquecerá? O destino de Bolsonaro será determinado pelos eleitores brasileiros, o de Orbán pela população da Hungria.
A derrota de Trump, porém, pode fazer algo para revigorar ainda mais esses eleitores e seguidores, mas não é o principal fator que determinará o futuro do populismo na América Latina ou na Europa.
Como a segunda onda da pandemia afeta a confiança da população nos governos?
Antes de mais nada, é preciso obviamente aprovar, fabricar e distribuir a vacina ou, mais precisamente, as vacinas. Uma segunda etapa é garantir à população a segurança e eficiência dos imunizantes. Esta segunda etapa é um desafio que apenas começamos a enfrentar.
Recentemente escrevi um artigo, em parceira com os economistas Cevat Giray Aksoy e Orkun Saka, em que mostramos que quando os indivíduos foram expostos a epidemias no passado e seus governos eram fracos, atrapalhando uma resposta efetiva à saúde pública, as pessoas ficam desconfiadas sobre as recomendações subsequentes desses governos, incluindo a recomendação de que sejam vacinadas. Portanto, muitos governos terão que trabalhar para reconquistar essa confiança.