Agência de notícias
Publicado em 12 de janeiro de 2025 às 09h52.
Desde que garantiu seu retorno à Casa Branca para comandar, pela segunda vez, a maior economia do mundo, Donald Trump vem dobrando suas apostas naquilo que aparenta ser apenas um esboço do que ele planeja para a política externa dos Estados Unidos nos próximos quatro anos — ao menos no discurso. Nos últimos dias, ele ameaçou rebatizar o Golfo do México e anexar o Canal do Panamá, a Groenlândia e o Canadá.
Enquanto alguns veem nesses comentários uma “forma de imperialismo”, muitos analistas argumentam que eles devem ser encarados mais como uma tentativa de esticar a corda para obter vantagens em negociações futuras do que como declarações políticas ou ameaças de fato. Ainda sim, não têm precedentes. Nunca antes um chefe de Estado eleito nos EUA cogitou publicamente o uso da força militar ou outras medidas coercitivas contra a soberania de aliados.
O flerte expansionista de Trump, porém, seja ele real ou bravata, esbarra em algo maior e mais complexo: a Otan (a Organização do Tratado do Atlântico Norte). Em uma entrevista coletiva na terça-feira, o republicano não descartou uma ação militar para tomar a Groenlândia, alegando ser um território vital para a segurança americana. Conhecida como “tesouro do Ártico” por suas riquezas naturais e posição geoestratégica, a maior ilha do mundo tem um governo autônomo, mas faz parte do Reino da Dinamarca, que, assim como os EUA, é sócio-fundador da aliança militar ocidental baseada nos princípios de defesa coletiva e assistência mútua.
Fundada em 1949, a Otan conta hoje com 32 membros, que desde a Segunda Guerra Mundial nunca se enfrentaram militarmente — em 2020, Grécia e Turquia tiveram uma tensa disputa de fronteira, mas a questão foi resolvida diplomaticamente. As falas de Trump trazem um cenário inédito para o grupo transatlântico.
O Artigo 5 da Otan diz que um ataque contra um membro da aliança deve ser considerado uma investida contra todos os membros, o que implica em uma resposta conjunta.
“Como o próprio Tratado não tem disposições explícitas sobre como gerir uma guerra entre aliados da Otan, as consequências de tais ações não são perfeitamente claras”, diz Soner Korucu, professor do departamento de Direito da Universidade de Groningen, na Holanda, em artigo. “Entretanto, o Tratado dá diretrizes que poderiam fornecer uma resposta potencial, porém discutível.”
Segundo Korucu, se um membro da Otan é atacado por outro, isso, em tese, acionaria o Artigo 5. Mas as consequências dependeriam de um Estado-membro ser considerado ou não o “agressor”, ou seja, quem iniciou o conflito. E, na prática, determinar o agressor nem sempre é uma tarefa fácil para as partes que estão se enfrentando, afirma.
Em todo caso, o tratado prevê que a resposta da aliança seja justa, equilibrada e adaptada às circunstâncias específicas de cada conflito, podendo envolver medidas diplomáticas, sanções econômicas e, se necessário, força militar para repelir a agressão e restaurar a paz. A expulsão de membros não está prevista. E a primeira e única vez que acionaram o Artigo 5 foi após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 contra os EUA.
França e Alemanha, que também são sócios-fundadores da Otan, advertiram Trump contra as ameaças “às fronteiras soberanas” da Groenlândia depois que as declarações do líder americano desataram “incompreensão” na União Europeia. A própria Rússia declarou “seguir de perto” as reivindicações sobre o território dinamarquês no Ártico
Analistas veem como pouco provável uma ação militar, mas destacam a possível intenção de Trump de desequilibrar a Dinamarca e a Groenlândia visando algum tipo de negociação sob pressão. Estima-se que a região do Ártico abrigue até 90 bilhões de barris de petróleo, 47,2 bilhões de metros cúbicos de gás natural e 44 bilhões de barris de gás natural liquefeito (GNL), segundo o Serviço Geológico dos EUA. Também é rica em terras raras, que podem ser aproveitadas na fabricação de chips de última geração, um mercado hoje dominado pela China.
“Em hipótese alguma é provável que os EUA iniciem guerras contra aliados e amigos”, afirmou Daniel Fried, diplomata americano que serviu como secretário de Estado adjunto para assuntos europeus de George W. Bush, em comentários recentes publicados pelo Atlantic Council. “Trump assumiria as consequências, que incluiriam populações hostis sob ocupação, um sistema de aliança da Otan arruinado e o isolamento dos EUA em relação aos seus amigos, para o deleite de seus adversários, Rússia e China. Trump venceu as eleições prometendo acabar com as guerras, não iniciar novas.”
Mas não é a primeira vez que Trump ameaça a Otan. Há anos ele reclama da falta de investimento em defesa por parte do Canadá e dos países europeus, e durante o seu primeiro mandato ameaçou se retirar da aliança se os demais membros não aumentassem os gastos militares. Também disse durante a campanha presidencial de 2024 que não seguiria a cláusula de defesa coletiva se os sócios da aliança militar ocidental não cumprissem as metas de desembolso, afirmando que incentivaria a Rússia a fazer “o que diabos quiser” com a Ucrânia.
Historicamente, os EUA têm sido responsáveis por mais de 60% do orçamento da Otan e, durante décadas, poucos países cumpriram a meta de 2% — em 2014, eram apenas três; isso mudou em 2024, quando, após dois anos de guerra na Ucrânia, 23 países alcançaram esse valor. Os defensores da aliança transatlântica reconhecem que a Europa se beneficiou de anos de baixos gastos com defesa — direcionados para o bem-estar social em muitos países. Mas argumentam que os EUA também ganharam com o compartilhamento de seu fardo militar e com a redução do custo de vigilância decorrente do mais longo período de paz da História da Europa, além de terem se firmado como a única potência influente no continente.
A questão é que sob a política externa de Trump, o comprometimento dos EUA com seus aliados tradicionais passa a ser baseado numa relação transacional, de acordo com o que ele acredita que são as necessidades e prioridades dos EUA, a exemplo da reindustrialização americana, que esbarra na concorrência com a China, explica ao GLOBO Giuseppe Spatafora, pesquisador associado do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia.
"Isso não significa que os EUA irão necessariamente abandonar seus aliados, mas sim que, com Trump, os europeus deixam de ser essenciais e passam a ser secundários", afirma o especialista em relações transatlânticas. "Não é uma política externa totalmente isolacionista, mas cria a sensação de que o relacionamento transatlântico tradicional, baseado em valores compartilhados e em um sentimento comum que não pode ser quebrado, não existe mais."
A iminência de um novo governo Trump, que tomará posse no dia 20, e as sucessivas declarações do americano fez com que o debate sobre a autossuficiência da segurança europeia fosse reavivado.
Na visão do cientista político alemão Benedikt Franke, os países europeus avançaram muito nos últimos anos, mas ainda há um “longo e difícil” caminho a percorrer para garantirem sua própria segurança, disse ele ao GLOBO.
"Teremos eleições em vários países europeus nos próximos meses, e estamos em um momento de crescimento econômico lento. [Para criar uma força europeia] é preciso fazer escolhas, definir prioridades, que nem toda a população vai entender ou simpatizar com elas, causando mais tensão política", avalia o vice-presidente e CEO da Conferência de Segurança de Munique, realizada desde 1963. "Portanto, em teoria, [a criação de uma força europeia] é possível, mas será difícil de vender para parte da população e [é] um caminho difícil de percorrer."