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O governo Trump já acabou?

Com divergências crescentes entre os republicanos, o presidente americano enfrentará cada vez mais dificuldade para fazer a "América grande novamente"

Trump no comando: sem a aprovação do novo projeto para a saúde, seus planos para o país ficam comprometidos (Alex Wong/Getty Images)
RK

Rafael Kato

Publicado em 3 de abril de 2017 às 12h32.

Última atualização em 4 de abril de 2017 às 17h04.

Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível naApp Storee noGoogle Play. Para ler reportagens antecipadamente,assine EXAME Hoje.

Entre ataques à imprensa e loas a Vladimir Putin, Donald Trump tinha um plano de voo quando assumiu a presidência dos Estados Unidos, em janeiro. Porém, 70 dias depois, a fuselagem da nave Trump está em frangalhos. A mais fragorosa derrota foi no dia 24 de março, quando o presidente falhou em conquistar votos republicanos para o projeto que substituiria o programa de acesso à saúde Obamacare.

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A aprovação do novo projeto era fundamental para os planos de Trump.A troca faria a União reduzir o déficit orçamentário em 337 bilhões de dólares no período entre 2017 e 2026. Os desembolsos seriam reduzidos em 1,2 trilhão de dólares no período, segundo dados da Comissão Orçamentária do Congresso.

Essa redução daria ao governo uma gordura financeira para continuar com o restante do plano: passar um orçamento austero, com fundos de emergência alocados para a construção do muro na fronteira sul com o México; depois, aprovar uma reforma tributária, que cortaria taxas principalmente para empresas, de 35% para 15%; e promover uma repatriação de divisas a custos baixos.

De acordo com análises feitas pelo Comitê para um Orçamento Federal Responsável, a reforma tributária adicionaria incríveis 5 trilhões de dólares à dívida americana em 10 anos — principalmente porque o presidente planeja cortar as taxas para os mais ricos e mudaria as alíquotas básicas de incidência dos impostos. Por esse motivo, era necessário ter aquela gordura, que viria, além do corte de custos com o Obamacare, com a imposição de tarifas alfandegárias para produtos fabricados fora dos Estados Unidos e a repatriação de divisas — temas primordiais na consolidação do plano de Trump.

O ponto alto seria o prometido investimento de 1 trilhão de dólares em infraestrutura. Este projeto, em que Trump esperava contar com o apoio de democratas, previa a construção de uma comissão bipartidária para um plano de infraestrutura criado em comum acordo e que resolveria um problema criticado pelos dois lados do espectro político: a estrutura logística do país, que está defasada frente às economias mais agressivas do planeta.

Este era o arcabouço básico do governo: retirar tarifas como forma de incentivos para o bom funcionamento das empresas nacionais, impor severas taxas sobre produtos importados para aumentar a demanda interna e investir em infraestrutura para que a cadeia local pudesse suprir a demanda.

De acordo com a visão de Stephen Bannon, ex-presidente do site de notícias conservador Breitbart e um dos principais conselheiros de campanha e de governo do presidente, este seria o terreno fértil de um “nacionalismo econômico”, apoiado por outros membros do governo, como Wilbur Ross, secretário de Comércio, e Peter Navarro, diretor do Conselho Nacional de Comércio.

Além dos incentivos fiscais e investimentos estruturais, o cancelamento de acordos de comércio, a desregulamentação ambiental e a restrição à entrada de imigrantes seriam todos pontos que favoreceriam a vida daqueles que Trump chamou de “os americanos esquecidos”.

O problema, como vai ficando claro a cada dia, é que o plano infalível de Trump é amadorístico. Encontra, de um lado, oposição da Justiça, que vem considerando suas políticas de imigração ilegais; de outro, do Congresso, que não embarcou em suas frágeis ideias para um futuro dourado. Desta forma, uma pergunta vem ganhando força entre os analistas americanos: o governo Trump já acabou?

A queda

A coisa começou a complicar no último dia 24 de março: divergências entre os republicanos de diferentes facções, principalmente os mais moderados e os mais conservadores, mostraram que havia sido precipitada a decisão de Trump e do presidente da Câmara dos Deputados, o republicano Paul Ryan, de levar o projeto de substituição do Obamacare ao plenário da Casa sem maiores discussões internas. Os moderados ficaram preocupados que o plano tiraria a cobertura de saúde de cerca de 24 milhões de habitantes e os conservadores preferiram abandonar qualquer proposta de mudança a aprovar uma que não era radicalmente diferente daquela do ex-presidente Barack Obama.

Pior: a derrota deixou claro que Republicanos estão descrentes da capacidade de Ryan como líder político. A Casa Branca, segundo a imprensa americana, passa por brigas internas e tem um ambiente “tóxico e distraído”, com diversos centros de poder conflitantes culpando uns aos outros por uma série de reveses crescentes. Os conselheiros mais altos brigam entre si sobre como lidar com uma série de reportagens negativas; o partido enfrenta julgamento de seus membros sobre as prioridades legislativas do governo; e até doadores de campanha estão descontentes com os caminhos da gestão.

A essa altura de sua administração, o presidente Obama já havia aprovado o pacote de 787 bilhões de dólares em estímulos para a economia, que acabava de vir do crash imobiliário de 2008, e se reunia com membros do legislativo para trabalhar nas primeiras ideias do que viria a ser o Obamacare.

A resposta aos problemas veio bem ao estilo Trump. Ele afirma que os relatos de discussões em sua equipe são “fake news” e, esta semana, ameaçou republicanos conservadores, bem como democratas, afirmando que o governo federal os enfrentaria nas eleições legislativas que acontecem no ano que vem, quando um terço do Congresso será trocado. “Os conservadores irão arruinar toda a agenda política republicana se eles não entrarem no time. E rápido. Temos que lutar contra eles e os democratas em 2018”, escreveu o presidente em sua conta no Twitter.

O grupo já deixou claro que está disposto a se opor às propostas mais frágeis do presidente. E há pouca margem para Trump negociar com os conservadores sem perder apoio entre republicanos moderados. Os conservadores republicanos ocupam somente 32 das 435 cadeiras na Câmara, o que não é uma margem preocupante, já que republicanos têm 241 cadeiras, ante 194 dos democratas, uma diferença de 47 votos. O real problema está no Senado: os republicanos têm 52 senadores, ante 48 democratas. Uma diferença de apenas 4 votos em que o apoio de conservadores pode salvar projetos que já passaram pela Câmara.

“Trump até poderia influenciar seus eleitores contra esses políticos, mas eles vêm de distritos eleitorais igualmente conservadores e homogêneos. Ronald Reagan era muito bom em exercer esse tipo de pressão. Mas poderia Trump fazer isso de maneira efetiva?”, questiona Richard Hall, cientista político da Universidade de Michigan especialista no Congresso americano.

 

Há solução?

“Os republicanos não têm plano B. Não conseguiram aprovar a lei que substituiria o Obamacare, e agora o partido precisa aprovar uma reforma tributária que venha acompanhada de um forte imposto alfandegário para equilibrar as contas”, afirma a economista Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e colunista de EXAME Hoje. Trocar a legislação tributária do país é consenso entre os republicanos, mas a imposição de uma forte tarifa sobre produtos importados não é. Esse novo impasse do partido pode significar uma nova derrota na tentativa de aprovação da lei, o que poria, de fato, fim ao plano inicial de Trump.

Essa incerteza, claro, já foi lida pelos mercados, que foram afetadas pela falta de coesão do governo nos últimos 10 dias. Quem mais perdeu foram as ações dos bancos, grandes beneficiados por um possível corte de taxas — o Goldman Sachs perdeu 7,42% do valor de mercado em março.

Para Monica de Bolle, Trump deve, no máximo, conseguir aprovar um corte nos impostos como foi feito durante a Era Bush, focando em alívios fiscais e deduções. Mas uma grande reforma do sistema tributário é prevista para continuar na gaveta. Se isso acontecer, as principais propostas do governo estarão acabadas: não haverá cortes de taxas significativos, nem substituição do Obamacare, um plano massivo de investimento em infraestrutura será alvo de forte escrutínio e não há sinal de que a justiça acatará os decretos anti-imigração.

Para a sorte de Trump, as mentiras que ele contou sobre a economia durante a campanha era realmente mentiras. O desemprego está em apenas 4,7%, menor taxa desde a época pré-crise de 2008. A economia expandiu 1,6% em 2016, após um aumento de 2,1% no último trimestre do ano, impulsionada por uma alta de 3,5% nos gastos dos consumidores, que contam como dois terços do PIB.

A economia, portanto, está nos trilhos— não graças a Trump, como ele insiste em dizer — o que tem evitado níveis de aprovação cataclísmicos. A média das pesquisas do site RealClearPolitics mostra que 52,6% desaprovam o governo Trump. São 11,5 pontos percentuais a mais do no início do governo, mas ainda assim é muito perto da média de oposição histórica a Trump.

Como político em campanha, Trump agia como se as regras de Washington não se aplicassem a ele. E foi beneficiado por isso. Como presidente, Trump se depara com uma máquina pública que envolve muito mais interesses individuais do que aqueles encontrados na iniciativa privada. Ele se vê enjaulado pelas mesmas regras políticas que desdenhou durante todo o ano passado, e tem sofrido por ter montado um time de empresários e banqueiros sem experiência em articulação política.

Trump prometeu o mundo em 100 dias, mas 70 já se passaram e o mundo parece um gigantesco ponto de interrogação.

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