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Na Rússia, a ambivalência do passado revolucionário

Na terra que criou o primeiro estado comunista do mundo, o aniversário da Revolução de Outubro passou em branco

Selfie com Stalin: o partido Comunista, maior oposição ao governo no Parlamento Russo, foi um dos poucos a realizar atos comemorativos da Revolução Russa no dia 7.

Selfie com Stalin: o partido Comunista, maior oposição ao governo no Parlamento Russo, foi um dos poucos a realizar atos comemorativos da Revolução Russa no dia 7.

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Da Redação

Publicado em 11 de novembro de 2017 às 08h24.

Última atualização em 11 de novembro de 2017 às 11h19.

As comemorações da Revolução Russa, que nesta semana completou 100 anos, foram apenas uma sombra do que já significou esta data. O aniversário da revolta que começou por retirar do poder a família imperial russa e o Czar Nicolau II e terminou por colocar no lugar o início de uma experiência comunista, passou quase despercebido na Rússia.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse oficialmente na terça-feira que não haveria qualquer tipo de manifestação. O próprio presidente Vladimir Putin não compareceu a qualquer evento oficial, nem mesmo a um show de luzes em sua cidade natal, São Petersburgo, onde as primeiras insurreições aconteceram, ainda em fevereiro de 1917. No dia 7, ele participou da inauguração de uma igreja em Moscou, descrita como “profundamente simbólica”, diante do fato de que a Revolução Russa levou a governos que perseguiram prédios religiosos e crentes.

O evento foi relembrado por outros líderes internacionais mais do que pelo próprio governo russo. Em Cuba, o regime de Raul Castro celebrou a data com um baile de gala, que incluiu poesia, música e dança, tudo dedicado a um dos pais da revolução, Vladimir Lênin.

Na Bolívia e na Venezuela, os aliados socialistas também comemoraram. O presidente boliviano Evo Morales lembrou, saudou em sua conta no Twitter os “camponeses e trabalhadores unidos que juntos fizeram o primeiro Estado socialista do mundo”. Mais tarde, Morales e seus apoiadores participaram de um comício em La Paz em suporte à reeleição. Na Venezuela, o presidente Nicolás Maduro fez um discurso em Caracas durante uma marcha de “trabalhadores”. 

Na China, uma exibição — fruto de uma parceria com o Museu de História do Estado da Rússia — com artefatos antigos da época da Revolução foi organizada no Museu Nacional da China, em Pequim. No Vietnã, que ainda é um Estado comunista, uma grande cerimônia foi realizada na capital Hanói, conectando a Revolução de Outubro de Lênin à Revolução de Agosto do líder vietnamita Ho Chi Minh, que em 1945 tirou o país do mando colonial francês.

Na Rússia, uma das maiores polêmicas sobre o contexto da Revolução foi o filme Matilda, que a conta a história do relacionamento entre o Czar Nicolau II e a bailarina Matilda Kshesinskaya. O filme foi tido por monarquistas ortodoxos como uma tentativa de macular a imagem do antigo Czar, tido como mártir pela Igreja Ortodoxa Russa, e recebeu ameaças e até tentativas de incêndio em cinemas que apresentavam a prévia.

No fim das contas, cem anos depois dos eventos que marcariam a história do século 20, “celebrar” parece ser simplesmente um verbo inadequado para tratar o assunto. Não há celebração, nem profundo pesar. O que predominou foi uma tentativa deliberada de esquecer o passado. 

A própria teleologia da data diz o bastante sobre as mudanças de significado que o 7 de novembro teve. Boris Yeltsin, o primeiro presidente da Rússia depois da queda da União Soviética, renomeou em 1996 o Dia da Revolução de Outubro para o Dia de Acordo e Reconciliação. Em 2004, o feriado foi cancelado e o dia 4 de novembro foi declarado Dia da União, conectando memórias muito mais antigas, da guerra Moscovita-Polonesa e da libertação de Moscou. A nova data não pegou e foi apropriada por nacionalistas de direita.

Contradições

Em 1917, Vladimir Lênin liderou os bolcheviques para a tomada do poder em Moscou. Buscava-se maior participação e autonomia, em uma nação fragilizada por perdas gigantescas na Primeira Guerra Mundial e por uma crise econômica que causou forte descontentamento popular com a família real e a aristocracia, derrubadas no início daquele ano depois de 300 anos da dinastia Romanov.

A revolução subsequente tornou a Rússia numa experiência comunista, com economia de estado, planejamento central, planos quinquenais, sovietes populares. Depois da Segunda Guerra, sob a gerência de Joseph Stálin, a União Soviética anexou territórios, ampliou sua população e rivalizou com os Estados Unidos, representante do capitalismo ocidental, como poder global.

O governo soviético foi capaz de grandes avanços tecnológicos, de estabelecer uma corrida espacial, de produzir genialidade intelectual e artística — que floresceram nos anos subsequentes à revolução —, alfabetizar uma nação vastamente rural e teve grande responsabilidade na luta que livrou o mundo do nazismo na Segunda Guerra. Em 1920, a produtividade do campo, setor forte na Rússia do início do século, estava 46% abaixo da média registrada entre 1909 e 1913, antes da Primeira Guerra Mundial ter devastado o país. Entre 1928 e 1940, a produção industrial cresceu 170%, mesmo com o mundo chafurdando na Grande Depressão.

Na outra mão, o custo dos avanços e desenvolvimentos foi o braço forte de um estado repressor que perseguiu dissidentes, criou os gulags, encarcerou em massa, promoveu a fome que devastou vilas inteiras e o assassinato de milhões de pessoas, além de uma forte dívida estatal que maculou a economia russa, findada a URSS. 

Quando tudo acabou, há 26 anos, o governo de Boris Yeltsin implementaria grandes reformas, liberalizando preços e abrindo a economia. Entre 1993 e 1994, um programa de privatização em massa transferiria ações de empresas estatais para as mãos de novos oligarcas. No final de 1994, 70% da economia russa era privada. No ano seguinte, o país estabilizaria o rublo com a ajuda do Fundo Monetário Internacional. 

Hoje, o PIB per capita russo é de 17.000 dólares, abaixo da média dos países da OCDE, mas melhor que o do Brasil, de pouco menos de 10.000 dólares. Mas 95% da população adulta tem o ensino médio completo, uma herança dos níveis educacionais soviéticos, muitos diriam.

As contradições e antíteses da Revolução Russa e de suas comemorações geram sentimentos também contraditórios sobre o aniversário no governo e na população. Em abril, o instituto independente de pesquisas Levada fez uma consulta sobre o legado da revolução: 48% dos entrevistados têm algum tipo de impressão positiva do evento e 31% creem ter sido negativo; 21% não souberam o que responder. Quase metade acredita que a Revolução causou “sério dano” para os camponeses e para a cultura russa.

Numa pesquisa sobre a queda da União Soviética, divulgada em janeiro pelo instituto, 56% se dizem tristes pelo fim da URSS. Entre as figuras mais queridas da Revolução são citados Lenin, 26% das vezes, e Stálin, 24%. “Como interpretar estes números? Para mim parece que há minorias dos dois lados do espectro, com a maioria indiferente ou reproduzindo lugares comuns sobre a Revolução de Outubro. Se perguntados em que época eles gostariam de viver, os maiores grupos escolhem as épocas de Putin ou de Leonid Brezhnev [que governou a URSS entre 1964 e 1982]”, afirma a historiadora Tatiana Zhurzhenko, do Instituto para Ciências Humanas de Viena, e estudiosa da memória e história do Leste Europeu.

Já o governo tem uma relação ambivalente em relação à data. Durante 74 anos, o aniversário da Revolução foi um feriado amplamente comemorado com manifestações de poder e demonstrações do desenvolvimento soviético. Quando a URSS caiu em 1992, o 7 de novembro passou pelo processo de mudança de significado. “O Kremlin e a população russa veem a Revolução de Outubro frequentemente de maneira controversa. Há ensaios e manuscritos publicados, alguns seriados de TV. Mas fica a impressão de que as autoridades e a população estão se esforçando para esquecer esta data”, diz a historiadora e cientista política, Lilia Shevtsova, pesquisadora da organização Chatham House de Londres e autora do livro A Rússia de Putin.

“Há uma certa nostalgia pelo período e pelo que foi alcançado. As pessoas sentiam ter melhores pagamentos, empregos, pensões. Mas quando a União Soviética caiu e os documentos e registros das execuções, prisões arbitrárias, ostracismos vieram à tona, muitos russos perceberam que aquele não foi o tempo mais brilhante de sua história. O que existe é um sentimento esquizofrênico sobre o passado”, explica Melvyn Levitsky, que hoje é professor na Universidade de Michigan e serviu como oficial do governo americano em Moscou, além de ter sido embaixador dos Estados Unidos no Brasil e na Bulgária.

Hoje, ou a população é jovem demais para lembrar dos tempos do governo soviético, ou prefere esquecer as atrocidades do governo, enquanto nutre um sentimento de nostalgia por certos desenvolvimentos alcançados no passado. Já o governo não adula a revolução, mas também não a crítica, com receio de perder apoiadores.

O passado e o presente

No dia 7 de outubro deste ano, durante o aniversário de 65 anos do presidente Vladimir Putin, membros da oposição foram às ruas em São Petesburgo, cidade-natal do presidente e onde a Revolução Russa teve início em fevereiro de 1917. Lá, os manifestantes, que apoiam Alexei Navalny, principal opositor do governo, entoavam gritos de “fora, Czar”, em uma referência a Putin.

Segundo a professora Shevtsova, especialista em Kremlinologia, o governo escolhe períodos de grandes czares ou líderes que se assemelhavam a czares, como Joseph Stalin, para se espelhar. A figura centralizadora e autoritária, talvez seja o maior legado do passado russo, remontando a tempos mais antigos que a própria revolução. “Na história da Rússia e da União Soviética, o Kremlin sempre escolhe períodos de grandes líderes e czares para trazer como modelos. A Revolução de Outubro arruina esse tipo de legitimidade. A ideia de uma Revolução que demole o Estado é hostil às autoridades russas, que devotam seus esforços à preservação do status quo e fortalecimento do Estado”, diz Shevtsova.

“Há hoje um aumento do nacionalismo, um culto a Putin, que é um presidente muito popular. Ele também criou um governo centralizado em sua pessoa, baseado nos conceitos de lei e ordem”, diz o historiador Ronald Suny, professor especialista em Rússia na Universidade de Michigan e pesquisador da Universidade de Pesquisa Nacional em São Petersburgo.

Há um consenso entre os historiadores russos de que a figura central do governo e a admiração pela figura do líder sempre foi onipresente na história russa. “Putin combina a dominação associada a Stalin ou aos czares com uma grande divulgação imagética. Há fotos dele a cavalo e sem camisa, malhando, lutando judô. Essa estratégia é parte de sua construção de imagem e também seu apelo com os russos, que o veem como o novo político capaz de colocar a Rússia no palco global novamente”, diz Levitsky.

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