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Mercosul: ele quer entrar na força

Lourival Sant’Anna Com uma simples frase, o chanceler José Serra deixou claro aquilo que já havia decidido praticamente desde que o governo interino tomou posse, em 12 de maio: “O presidente (venezuelano Nicolás) Maduro não vai presidir o Mercosul. Essa certeza todos podem ter”, disse Serra no sábado. A declaração foi dada um dia depois […]

NICOLÁS MADURO, DA VENEZUELA: falta de acesso do país aos mercados significa que ela não pode jogar para mais adiante suas obrigações / Miraflores Palace/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 16 de agosto de 2016 às 10h54.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h15.

Lourival Sant’Anna

Com uma simples frase, o chanceler José Serra deixou claro aquilo que já havia decidido praticamente desde que o governo interino tomou posse, em 12 de maio: “O presidente (venezuelano Nicolás) Maduro não vai presidir o Mercosul. Essa certeza todos podem ter”, disse Serra no sábado. A declaração foi dada um dia depois de vencer o prazo de quatro anos para a Venezuela transformar em lei todos os acordos vigentes no Mercosul em 4 de julho de 2006, quando ela assinou o Protocolo de Adesão.

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Com a aproximação do momento de a Venezuela assumir a presidência rotativa do bloco, neste segundo semestre, o Itamaraty arquitetou um plano, pelo qual não bloquearia o país diretamente, mas simplesmente constataria que ele não se qualificou como membro pleno. Isso gerou um vazio, porque o Uruguai, que estava na presidência, entregou-a no dia 30 de julho. A Venezuela a “assumiu”, sem a aceitação de Brasil, Argentina e Paraguai, criando um impasse institucional.

“O Brasil já tem se posicionado”, respondeu Serra à pergunta sobre qual será a posição do país em uma reunião, no dia 23, de representantes dos quatro fundadores do bloco (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), na sede do Mercosul em Montevidéu, para encontrar uma solução para o caso. “A Venezuela não cumpriu pré-requisitos para a integração do Mercosul. Foi dado um prazo e ela não cumpriu. Há informações equivocadas de que outros não teriam cumprido, mas não é nada disso. Ela se comprometeu a cumprir todos os tratados e acordos que eram vigentes até quatro anos atrás. A partir daí, segue a norma dos demais países.”

Uma nota de 20 linhas publicada pelo Itamaraty no mesmo dia já havia selado o destino bolivariano: “O governo brasileiro lamenta que a Venezuela não tenha logrado êxito, no prazo que se encerrou em 12 de agosto de 2016, em seus esforços para o pleno cumprimento dos compromissos assumidos quando da assinatura do Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao Mercosul, em 4 de julho de 2006, em Caracas”. Entre as normas não cumpridas estão acordos de circulação de bens e serviços e de proteção a direitos humanos. Ou seja, regras que dizem respeito à essência do bloco. “Os membros fundadores terão diante de si a complexa tarefa de definir as medidas jurídicas aplicáveis frente a esta realidade, indesejada por todos”, diz a nota.

Nas entrelinhas da linguagem diplomática, a nota deixa clara a simpatia do governo brasileiro pelo povo venezuelano, mas não por seu governo, que não é mencionado no texto: “Ao povo venezuelano, o governo brasileiro ressalta a solidariedade da nação brasileira e a garantia de que trabalhará pelo fortalecimento dos laços históricos que os unem, no interesse do Mercosul e de seus Estados-partes”.

O Brasil propõe uma presidência colegiada, composta pelos quatro países, até o início do ano que vem, quando, pela ordem alfabética, a Argentina assumirá. Quanto ao status da Venezuela no bloco, o governo brasileiro deseja rebaixá-la de membro pleno para associado, sem direito a voto — situação do Chile e da Bolívia. Mas Serra não confirmou essa posição: “Isso é uma coisa que a gente ainda vai analisar”.

O Uruguai, que defende a presidência venezuelana, é contra a gestão colegiada: “Não está previsto em nenhum lugar, e além do mais a Venezuela não vai aceitar”, diz o chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, em entrevista publicada nesta segunda-feira pelo jornal El País, de Montevidéu.

A esquerda sai de cena

A questão tem forte octanagem ideológica. O presidente Tabaré Vázquez, do Uruguai, é o único que restou dos governantes esquerdistas do bloco, que colocaram o tapete vermelho para a Venezuela de Hugo Chávez. No Paraguai, o ex-bispo Fernando Lugo sofreu impeachment em 2012, e um novo presidente, o empresário Horacio Cartes, do conservador Partido Colorado, assumiu no ano seguinte. Na Argentina, a peronista Cristina Kirchner foi substituída em dezembro pelo liberal Mauricio Macri e, no Brasil, o governo de centro de Michel Temer assumiu em maio depois do afastamento da petista Dilma Rousseff, que deve ser confirmado pelo Senado no fim deste mês.

Por sinal, a reação dos governos esquerdistas do Mercosul ao impeachment de Lugo, aprovado pelo Senado, como prevê a Constituição paraguaia, injetou o “sangue nos olhos” do atual governo de Assunção, em sua campanha contra a Venezuela. O Mercosul de Dilma, Cristina e do então presidente uruguaio José Mujica, ex-guerrilheiro, suspendeu o Paraguai por considerar o impeachment “golpe” — quase um hábito do grupo. Ainda por cima aproveitou a ausência do Paraguai para aprovar o ingresso da Venezuela, que estava bloqueado porque o Senado paraguaio — dominado pela direita e pelo centro — não havia referendado sua entrada.

Assim como o Itamaraty, a chancelaria paraguaia também soltou uma nota no sábado. Mas foi além, pedindo a revisão do ingresso da Venezuela no Mercosul. Citando o Artigo 2 do Tratado do Mercosul, que prevê a reciprocidade de direitos e deveres entre os participantes, a nota afirma que esse princípio “não é compatível com a situação da Venezuela”, já que o país está “muito atrasado” no cumprimento de seus compromissos. A nota, assinada pelo chanceler Eladio Loizaga, também expressa “sua mais profunda solidariedade com o povo venezuelano”.

Quanto à Argentina, em sua primeira coletiva depois de eleito, em novembro, Macri já defendeu acionar a Cláusula Democrática para suspender a Venezuela do bloco: “É evidente que corresponde que se aplique essa cláusula porque as denúncias são claras, contundentes, não são invenção”. Ele disse que levantaria a questão na reunião de cúpula do Mercosul em dezembro em Assunção.

Entretanto, durante a cúpula, da qual Dilma ainda participou, o presidente argentino não propôs a suspensão da Venezuela. Depois de elogiar a aceitação, por parte do governo venezuelano, da vitória da oposição nas eleições para a Assembleia Legislativa, que tinham acabado de ocorrer, Macri pediu a libertação dos presos políticos na Venezuela: “Nos Estados-parte do Mercosul não pode haver lugar para a perseguição política por razões ideológicas nem a limitação ilegítima da liberdade de pensar diferente”.

Desde então, a Argentina se manteve mais discreta em relação ao tema, com o Paraguai e o Brasil tomando a frente. Aparentemente, os argentinos não queriam criar inimigos por causa da candidatura de sua chanceler, Susana Malcorra, ao cargo de secretária-geral da ONU, onde trabalhou. Mas dizem que peixe morre pela boca, e a chanceler venezuelana, Delcy Rodríguez, não poupou a Argentina de sua língua ferina, que frequentemente se volta também contra o Brasil e o Paraguai.

Na base da imposição

Na quarta-feira 10, Delcy tuitou: “Senhor Mauricio Macri pretende a destruição do Mercosul, atendendo libreto desde os EUA, que o leva a cometer erros históricos. Em nossa condição de Estado-parte do Mercosul, dizemos as verdades que sua surdez oligárquica estimulada desde Washington o impede de escutar. A Venezuela, respeitosa do direito e, em exercício pleno da presidência pro tempore do Mercosul, não permitirá sua destruição. Quem se mete com a Venezuela se seca”.

Em entrevista ao jornal El Clarín, de Buenos Aires, a chanceler argentina afirmou: “Temos a convicção de que não há automaticidade na transmissão”, referindo-se à presidência do Mercosul. Malcorra salientou, no entanto, que não há acordo sobre a Cláusula Democrática do Mercosul: “Todas as decisões se tomam por consenso. Por isso é tão difícil dirimir essas questões por meio da imprensa.”

Enquanto isso, a Venezuela segue dando munição para aqueles que querem excluí-la com base na Cláusula Democrática. Tibisay Lucena, presidente do Conselho Nacional Eleitoral, composto por quatro leais chavistas e um independente, anunciou mais uma manobra na terça-feira 9 para protelar o referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro. Segundo Tibisay, a coleta das assinaturas de 20% do eleitorado, próxima etapa do processo, “provavelmente começará no final de outubro”.

Como levaria semanas para o CNE validar as assinaturas, e o referendo ocorre até 90 dias depois disso, o cronograma enterra as chances de o referendo ocorrer antes de 10 de janeiro. E, ocorrendo depois dessa data, se Maduro perder, como indicam as pesquisas (83% votariam por sua saída, segundo sondagem da consultoria Alfredo Keller e Associados), não haverá eleições, mas ele será substituído pelo vice-presidente, atualmente o chavista de carteirinha Aristóbulo Istúriz. O vice não é eleito na Venezuela, e o presidente o nomeia e substitui quando quer.

A oposição prometeu mobilizar a população para exigir que o CNE reveja essa decisão. Mas essa capacidade de mobilização tem se mostrado débil, desde as manifestações de fevereiro de 2014, que terminaram em tumulto, repressão, morte de 43 pessoas e a prisão de um dos líderes da oposição, Leopoldo López, acusado de incitar a violência — quando na verdade ela foi em grande parte provocada pelos chavistas. Na sexta-feira 12, o Tribunal Supremo de Justiça, também dominado pelos chavistas, rejeitou apelação da defesa de López contra sua condenação a 14 anos de prisão.

Diante da crise de desabastecimento e da onda de saques e protestos pelo favorecimento de chavistas na entrega das rações estipuladas pelo governo, Maduro incumbiu as Forças Armadas da distribuição de alimentos, e declarou, em um pronunciamento na TV: “Só há um chefe. Um comandante. Uma autoridade”, referindo-se ao ministro da Defesa, general Vladimir Padriño López, nomeado diretor da Grande Missão Abastecimento Soberano. “Todos os ministérios e instituições do governo estão subordinadas a ele.” Em um artigo no site Latin America Goes Global, os analistas Javier Corrales e Franz von Bergen interpretaram assim a ascensão do general: “um novo tipo de golpe, no qual o presidente não foi derrubado, mas, na prática, algemado”.

A nomeação revela uma visão de mundo. Os alimentos e outros produtos de primeira necessidade desapareceram das prateleiras da Venezuela porque o governo tenta impor preços abaixo do custo de produção, em sua tentativa de frear a inflação. Mas os preços sobem porque muitas fábricas e fazendas deixaram de produzir, desestimuladas por medidas do governo — como o controle de preços, por exemplo. Faltam dólares para importar matéria-prima e insumos por causa da queda no preço do petróleo e da incapacidade da estatal PDVSA, sucatada, de extraí-lo.

Os chavistas consideram que uma ordem de cima para baixo, se dada com a devida força, mudará as leis da oferta e da procura. Funcionará tão bem quanto tentar impor a presidência da Venezuela ao Mercosul.

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