Prédio bombardeado em Chasiv Yar, leste da Ucrânia: guerra completa um ano sem saída diplomática no horizonte (AFP/AFP)
Repórter de Economia e Mundo
Publicado em 24 de fevereiro de 2023 às 12h02.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2023 às 12h29.
A guerra na Ucrânia completa um ano neste 24 de fevereiro de 2023, após os primeiros ataques de forças da Rússia à capital Kiev no ano passado.
A partir de agora, o cenário é incerto. No front militar, as forças se preparam para uma escalada dos confrontos. Pela via da diplomacia, uma saída segue difícil. Os governos do presidente russo, Vladimir Putin, e do ucraniano, Volodymyr Zelensky, têm demandas irrecociliáveis sobre a situação do território ucraniano, sobretudo no que diz respeito às áreas hoje dominadas pela Rússia no leste e sul do país.
Relembre abaixo os motivos que levaram à situação atual da guerra na Ucrânia e tudo o que você precisa saber sobre os impactos para 2023 no Brasil e no mundo.
Há um debate sobre os motivos oficiais e extra-oficiais do conflito. A professora Alexandra Vacroux, da Universidade de Harvard, apontou em entrevista anterior à EXAME que há três linhas concorrentes e, em alguma medida, complementares de argumentação:
Oficialmente, a guerra na Ucrânia começou na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, quando ocorreram os primeiros ataques russos à capital ucraniana, Kiev, além de outras áreas do país.
Mas, na prática, a crise remonta à anexação russa da Crimeia, então território ucraniano, em 2014.
Além da Crimeia, a Rússia é acusada pela Ucrânia de apoiar separatistas em Donbas, que estão em guerra civil com o governo ucraniano desde então. Os conflitos na fronteira leste da Ucrânia deixaram 14.000 mortos naqueles primeiros sete anos, e muitos analistas posicionam esse primeiro momento como parte da guerra atual.
A guerra na Ucrânia em seu formato atual completa um ano oficialmente em 24 de fevereiro de 2023.
Tamanha duração, porém, não estava clara quando o conflito começou: dias antes de Putin ordenar os primeiros ataques a Kiev, a leitura era de que a Rússia poderia derrubar "em poucos dias" o presidente Volodymyr Zelensky e instalar na Ucrânia um governo aliado, como já ocorre em alguma medida na vizinha Belarus.
Com uma resposta vista por muitos como surpreendente do Exército ucraniano (leia mais abaixo), a estratégia militar russa de tomar a capital em poucos dias não foi bem-sucedida, e a guerra se prolongou.
A Rússia tinha, no começo da guerra, 900.000 cabeças ativas no Exército e 2 milhões na reserva, o segundo maior Exército do mundo, além de força aérea muito mais sofisticada do que a ucraniana. Mas algumas razões levaram a Ucrânia a conseguir evitar que a Rússia derrubasse o governo com a facilidade que era prevista.
A Rússia iniciou a invasão em fevereiro de 2022 dividindo as tropas e atacando o país por todas as frentes, certa de que sufocaria a reação. Pelo contrário, a combinação entre o ataque difuso, a surpreendente resistência ucraniana e a resposta unificada de potências do Ocidente travou o avanço russo nos arredores da capital Kiev ao norte. Os confrontos, hoje, se restringem principalmente ao leste da Ucrânia, embora ainda haja bombardeios em outras áreas.
“Putin não conseguiu colocar um fantoche em Kiev como esperava, e esse tipo de vitória não é mais vista como viável”, diz Vacroux, de Harvard. Ela argumenta, por outro lado, que Moscou, apesar de tudo, ainda controla quase 20% do território ucraniano. “Então há algum sucesso militar, mesmo que a estratégia inicial tenha falhado.”
Desde o desmantelamento da União Soviética, a Otan e a União Europeia passaram a incluir nos anos 1990 e 2000 países do leste europeu, a contragosto da Rússia. Nesse meio tempo, enquanto quase todos os países da antiga órbita soviética entraram na Otan, como os Bálcãs, a Hungria e a Polônia, a Ucrânia ficou no meio do caminho, uma espécie de fronteira geográfica entre a Rússia e o resto da Europa.
Um famoso discurso de Putin em 2007 é visto um divisor de águas nesse debate. O governo em Moscou vem acusando desde então a Otan de estar "cercando a Rússia" ao angariar membros do leste europeu, vizinhos russos. A gota d'água veio com um convite à Ucrânia e à Geórgia, ambas vizinhas russas. A Rússia invadiu a Geórgia em 2008 e, em 2014, iniciou seu embate direto com a Ucrânia ao apoiar separatistas na Crimeia e no Donbas.
A Ucrânia fica no leste europeu: sua parte leste faz fronteira com a Rússia e a oeste, com países da União Europeia, como Polônia e Hungria. A Ucrânia é um país de dimensões continentais, com mais de 43 milhões de habitantes antes da guerra e mais de 600 mil quilômetros quadrados.
No passado, parte do território que hoje é a Ucrânia chegou a ser parte do antigo Império Russo. A partir de 1922, virou uma república da URSS. Com o colapso do bloco, a Ucrânia selou de vez a independência em 1991 e sua integridade territorial em um acordo de 1994, sendo, portanto, uma democracia ainda muito jovem.
Para Putin, um ex-espião da KGB, serviço secreto soviético, há um fator histórico relevante na Ucrânia. A Ucrânia e Belarus (onde o ditador Alexander Lukashenko apoia Putin) são vistos pelo presidente russo como, na prática, partes por direito da Rússia - por terem muitos russos étnicos e culturalmente mais próximos de Moscou do que do Ocidente.
Em discurso dias antes do ataque a território ucraniano, Putin colocou dúvidas sobre a própria existência da Ucrânia como país soberano, afirmando que o país fora uma "artificial" de Vladimir Lenin, primeiro líder soviético.
Com a entrada de outros países do leste europeu na Otan e na União Europeia, a Ucrânia tem sido, desde o fim da guerra fria nos anos 1990, uma fronteira entre a influência da Europa Ocidental e da Rússia.
Nesse embate, um dos marcos antes da guerra veio em 2013, quando protestos varreram a Ucrânia exigindo maior integração europeia (movimento que ficou batizado de "Euromaidan"). Sob pressão popular e internacional, o Parlamento depôs o então presidente pró-Rússia, o que Putin viu como uma afronta, somada à expansão da Otan e da União Europeia. Em resposta, o Kremlin apoiou separatistas na Crimeia e em Donbas.
A disputa pelos territórios da Crimeia e de Donbas é o principal entrave.
Com a guerra iniciada em 2022, as repúblicas de Luhansk e Donetsk em Donbas se declararam independentes. Parte desses separatistas defende que a região, habitada por muitos russos étnicos, vire parte da Rússia, como ocorre até o momento com a Crimeia. O governo ucraniano e seus aliados, porém, afirmam que a guerra só acabará com a devolução por parte da Rússia desses territórios ocupados.
Com um passado tão complexo no leste europeu, as naturais divisões internas entre a própria população ucraniana — com a parte oeste querendo se aproximar mais da União Europeia e a parte leste sendo mais próxima da Rússia — também entram na conta. A Rússia e mesmo observadores internacionais já acusavam uma minoria de milícias, com ou sem apoio oficial do governo ucraniano, de ferirem os direitos humanos de russos étnicos na guerra civil em Donbas, em um debate complexo. Por fim, a ascensão da China como potência antagonizando com os Estados Unidos só ajuda a intensificar a discussão, com ambos os lados travando uma disputa indireta na guerra ucraniana.
Os números são difíceis de confirmar de ambos os lados, mas há algumas estimativas. O Exército norueguês divulgou no começo deste ano projeção de que a guerra já deixou:
Uma projeção da ONU em 21 de fevereiro de 2023 apontou que a guerra deixou, no caso dos civis:
Entrando no segundo ano de guerra, os dois lados estão agora preparados para novas ofensivas.
“Hoje, o consenso é claro de que vai ser uma guerra longa”, disse em entrevista anterior à EXAME Tomas Jermalavičius, pesquisador de inteligência de guerra no Centro Internacional para Defesa e Segurança (ICDS), na Estônia.
“A Ucrânia obteve sucessos espetaculares em se defender, mas também terá certa desvantagem até estar pronta para usar os novos equipamentos. Já a Rússia parece estar se movendo em modo de contraofensiva, tentando afastar os ucranianos e reivindicar Donbas em breve. É difícil dizer quem vai ser bem-sucedido e quando.”
A ameaça nuclear segue como um risco no horizonte, embora esse cenário seja ainda visto como uma tragédia impensável e pouco provável pelo potencial de destruição mútua.
A Rússia tem o maior arsenal de armas nucleares do mundo, seguida pelos Estados Unidos, em uma herança da guerra fria. Embora declarações do tipo ainda soem como pura retórica, a cartilha nuclear é vez ou outra citada por Moscou. O ex-presidente Dmitry Medvedev, por exemplo, foi às redes sociais neste mês dizer que um ataque à Crimeia (território ucraniano anexado pela Rússia em 2014) seria visto como ataque ao próprio território russo e respondido com “inevitável retaliação, usando armas de qualquer tipo”.
Um ponto importante é que a China, importante aliada econômica russa (embora não direta, sem envio de armas) já declarou que o uso de armas nucleares no conflito é inaceitável. Para Varcroux, de Harvard, isso dá ao mundo uma garantia que "não haveria de outra forma".
Ainda que nada disso ocorra deliberadamente, outro risco sempre presente é o de que embates atinjam usinas nucleares da Ucrânia, como no complexo de Zaporizhia, o maior da Europa e hoje controlado pela Rússia. Batalhas chegaram a ocorrer perto do local e a danificar o complexo, e agências nucleares internacionais apontam que as margens de segurança estão no limite. Na linha do “tudo pode acontecer”, mísseis que atinjam acidentalmente países da Otan também criariam um cenário de caos.
No momento, tanto Rússia quanto Ucrânia têm condições de vencer, o que ajuda a arrastar o conflito, uma vez que nenhum lado tem incentivos para abrir mão de seus objetivos, dizem analistas.
No início da guerra, a Rússia esperava, na prática, derrubar o governo Zelensky, mas isso não parece mais militarmente possível. O plano da Rússia hoje parece ser manter todo o leste e sul da Ucrânia, aumentando seu poder de barganha.
Já a Ucrânia afirma que não abrirá mão de nenhum território, incluindo a Crimeia que perdeu em 2014. As tropas ainda estão longe de obter tal cenário militarmente, mas apostam no aumento do apoio ocidental para chegar lá. O desafio, porém, é que isso implicaria em uma derrota total de Putin, o que Moscou não admitirá por vias diplomáticas no atual governo.
A guerra na Ucrânia, mais do que o embate entre dois vizinhos, escancarou a disputa de gigantes que se desenha entre Estados Unidos, China e suas respectivas órbitas de influência. Já argumenta-se que o embate na Ucrânia é um "divisor de águas" na política internacional e pode afetar outros territórios, como Taiwan, que a China reivindica.
Nenhum dos dois diz em alto e bom som que está envolvido no conflito. Mas a ajuda financeira e o envio de armas dos Estados Unidos são cruciais para que a Ucrânia brigue de igual para igual na guerra, enquanto a parceria econômica chinesa (e de alguns outros países vistos como ainda neutros, como a Índia) é chave para Moscou.
Os principais efeitos no Brasil vieram na inflação, com alta de alimentos e combustíveis, e nos fertilizantes.
Quando a guerra estourou, o risco de alguma interrupção na oferta de petróleo russo fez o barril do tipo Brent chegar à casa dos 130 dólares e ajudou a disparar a inflação no Brasil, que superou 10% com a alta de gasolina, diesel e outros combustíveis. O preço das commodities alimentares, como grãos, também subiu. A partir de junho, no entanto, o preço do petróleo baixou e está hoje na faixa dos 80 dólares — ainda alto na série histórica, mas longe do pior cenário.
Para este ano, a desoneração de combustíveis promovida pelo Brasil para baratear os insumos foi prorrogada temporariamente, mas deve acabar progressivamente nos próximos meses com a questão fiscal difícil. Se a demanda global pressionar o preço do petróleo (que pode voltar a subir para perto de 100 dólares), a inflação poderá novamente piorar.
Outra preocupação imediata do Brasil no começo do conflito foi a situação dos fertilizantes, dos quais a Rússia é o principal fornecedor nacional. A incerteza levou o preço dos insumos (derivados do petróleo) às alturas na época, embora a situação agora esteja equacionada. As exportações russas continuaram acontecendo, e os produtores brasileiros fizeram amplo estoque de fertilizantes, ainda que mais caros.
Como em boa parte das guerras anteriores, o Itamaraty têm um posicionamento visto como neutro na comunidade internacional: defende a autodeterminação dos povos, mas pede uma busca diplomática pela paz e se nega terminantemente a um alinhamento militar, como enviar armas à guerra.
Na véspera do primeiro ano de guerra, com apoio do Brasil, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou em 23 de fevereiro uma resolução que pede a retirada das tropas russas da Ucrânia. A posição do Brasil se diferenciou de outros países do chamado "Sul Global", como China, Índia e África do Sul, que se abstiveram.
O presidente Lula também vem propondo criar um "clube da paz" para negociar um cessar-fogo, com participação dos países neutros e não envolvidos no confronto. Mas as possibilidades de tal negociação ocorrer de fato ainda não se materializaram.
Esta reportagem contém trechos de matéria especial sobre o um ano de guerra na Ucrânia, presente na edição 1.248 da EXAME. Clique aqui para ler a matéria completa e veja todas as reportagens desta edição.