Entenda os poderes que Maduro tem (ou não) sobre a Constituinte
Em meio a protestos diários por parte da população, o presidente chavista pretende reformular o Estado e a Constituição de 1999
Alexa Meirelles
Publicado em 24 de junho de 2017 às 06h00.
Última atualização em 28 de junho de 2017 às 07h02.
São Paulos - “Todo o poder emana do povo”. A frase que embala os corações e discursos revolucionários tem sentido legal na Venezuela. O poder constituinte, de fato, pertence ao povo venezuelano. Poder, este, que tem sido posto em dúvida pelo presidente Nicolás Maduro , que convocou uma Assembleia Nacional Constituinte para reformular o Estado e a Carta Magna de 1999.
Já são 74 mortos confirmados pelo Ministério Público Federal desde 1º de abril, quando os protestos contra e a favor do governo começaram. Com mais de 500 pessoas presas e 1,3 mil feridas, a Venezuela vive tempos sombrios. Muitos acusam o governo de Maduro de estar arquitetando um golpe de Estado, enquanto outros seguem apoiando a sua permanência no poder.
Em clima de embates diários com a oposição, Maduro pretende reformular a Constituição venezuelana. Para especialistas, no entanto, esta eventual mudança não teria amparo legal. Segundo a professora Ana Claudia Cardia, especialista em Direito Internacional Público, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, antes de uma constituinte, é necessária a realização de um referendo popular.
Isso porque a Constituição vigente, especificamente nos artigos 347 e 348, dispõe que o presidente tem o poder de iniciativa para convocar uma Assembleia. Ou seja, ele poderia dar os primeiros passos que desembocariam neste processo. Já o poder de convocatória pertence ao povo, que deve referendar – ou não – uma nova carta magna, explica Ana Claudia.
Logo, esclarece a professora, Nicolás Maduro estaria ultrapassando os limites do seu poder, já que seu poder de iniciativa é limitado. A partir deste ponto, há margem para a população e oposição questionarem essa medida.
O professor Flávio Leão Bastos, especialista em Direito Constitucional e Direitos Humanos, também da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta o papel essencial do povo em um processo deste tipo. “O povo venezuelano é dono do poder constituinte originário. Tal poder dá vida a uma nova ordem constitucional, não tem limites e rompe com a ordem jurídica anterior”.
O que diz o governo
O governo diz que o povo não precisa ser convocado para um eventual processo de reformulação constitucional, visto que Hugo Chávez fez o mesmo para criar a Constituição de 1999, e a carta magna anterior não previa o processo.
Em 31 de maio, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela afastou a necessidade de um referendo popular, ampliando o poder de iniciativa do presidente, pois considerou que ele exerce a soberania indiretamente.
Nos planos de Maduro, a Assembleia será composta por 500 membros, dos quais de 200 a 250 serão eleitos pela base da classe trabalhadora. A outra metade será eleita "em um sistema territorializado, com caráter municipal, nas comunidades, com voto direto, secreto".
“A Constituição estabelece que todo o cidadão investido ou não de autoridade deverá colaborar no restabelecimento da vigência efetiva da Carta Magna. As estruturas comunitárias e setoriais estão a favor, mas não todo o povo venezuelano. Ou ele (Maduro) mantém a ordem constitucional, ou submete a ideia ao plebiscito, onde ela provavelmente será rejeitada”, prevê Bastos.
Em seu artigo 70, a Constituição cita os meios de participação política do povo em exercício de soberania. Contudo, não existe uma lei que operacionalize isso. "Existem 2 possibilidades, ou o CNE - dominado pelos chavistas - elabora 'as regras do jogo', ou a Assembleia Nacional elabora esta lei prevista dispositivo, para que seja feita uma nova eleição", diz Bastos.
Se as mudanças constitucionais se concluírem, Ana Claudia prevê uma retaliação na comunidade internacional. "O processo para sair da OEA levará 2 anos. Ou seja, se esta Constituição nova for aprovada, Maduro provavelmente será pressionado. Há brechas suficientes para questionar todo o processo", pontua.
Crise
Maduro assumiu a presidência em 2013, depois de derrotar o opositor Henrique Capriles por uma pequena margem de votos. No ano seguinte, com a queda nos preços do barril de petróleo, principal produto de exportação do país, a crise econômica que a Venezuela já experimentava se agravou ainda mais. Veio então a escassez de itens essenciais e, em seguida, uma emergência humanitária.
Em 2015, após 17 anos de soberania, os chavistas perderam a maioria no Parlamento, dando espaço para uma oposição ferrenha. O governo tentou realizar manobras para sobrepor o seu poder, mas isso só serviu para aumentar a tensão política. Com o cenário econômico deteriorado e uma forte oposição liderada por Leopoldo López (atualmente preso), o apoio ao governo de Maduro abalou-se ainda mais.
Agora, Maduro se segura no posto com o apoio de uma pequena parcela dos venezuelanos e aliados políticos. Dados divulgados na última sexta (23) pelo instituto de pesquisa Consultores21 mostram que o presidente tem atualmente 30% do apoio da população. Mas, tal aprovação está diretamente relacionada com a dependência dessas pessoas aos alimentos concedidos pelo governo, explica a entidade.