Refugiados Rohingya chegam em Bangladesh: estima-se que mais de 600 mil pessoas tenham fugido de Mianmar para o país desde meados de 2017 (Kevin Frayer / Stringer/Getty Images)
Gabriela Ruic
Publicado em 3 de fevereiro de 2018 às 06h00.
Última atualização em 3 de fevereiro de 2018 às 06h00.
São Paulo – Depois de anos de tensões étnicas, a violência eclodiu em Rakhine, estado localizado na região oeste de Mianmar, entre o exército birmanês, com o apoio de milícias budistas, e a minoria muçulmana Rohingya.
Os confrontos começaram em meados do ano passado e se intensificaram nos últimos meses. O resultado é uma crise humanitária que vem sendo ignorada pela comunidade internacional e o governo do país e que, até o momento, fez com que mais de 600 mil pessoas dessa etnia buscassem refúgio em Bangladesh.
Relatos de estupros, massacres e torturas perpetrados pelo exército são frequentes. A crise, diz a ONU, “segue a cartilha da limpeza étnica”. Para Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de Direitos Humanos e coordenador do grupo de estudos sobre genocídios da Universidade Presbiteriana Mackenzie, essa é hoje a situação humanitária mais grave do planeta.
Abaixo, EXAME reuniu pontos essenciais que esclarecem o que está acontecendo em Mianmar, país de maioria budista e que tem como primeira-ministra a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi.
Considerados o “povo mais perseguido do mundo”, os Rohingya diferem da maioria budista em sua cultura e religião. Habitam predominantemente o estado de Rakhine. Dizem ser descendentes de comerciantes árabes que se basearam na região há séculos, sendo que uma leva mais recente deles chegou durante a ocupação britânica (1824 até 1948).
De acordo com a Minority Rights, ONG que monitora os direitos de minorias em todo o mundo, correspondem a cerca de 4% da população total de Mianmar. No entanto, nenhum dos governos os reconheceram como cidadãos e tampouco como um dos mais de cem grupos étnicos que compõem o país.
Essa exclusão se traduz em falta de acesso a serviços básicos e uma vida em extrema pobreza (Rakhine é um dos estados mais pobres de Mianmar). Precisam de autorização oficial para se casar e até para se locomover. Em algumas cidades, as famílias têm a permissão para ter no máximo dois filhos.
A perseguição contra os Rohingya é antiga, mas a nova onda de violência começou no ano passado, quando insurgentes do Exército de Salvação Rohingya em Arakan atacaram soldados birmaneses na fronteira, matando nove. O governo passou a ver o grupo como organização terrorista e o exército deu início a uma repressão violenta que destruiu vilarejos.
Desde então, a ONU calcula que ao menos 655 mil Rohingya tenham buscado refúgio em Bangladesh, país vizinho, mas mais de 300 mil deles já se encontravam em campos na fronteira. Avalia, ainda, que a crise de refugiados gerada é a pior desde a década de 90 e o genocídio em Ruanda. Mais de mil pessoas já morreram em decorrência da repressão.
A violência com a qual as forças armadas estão invadindo as vilas vem sendo agora vista pela entidade como “marca registrada de genocídio”. Imagens de satélite obtidas pela Human Rights Watch mostram o antes e o depois dos vilarejos em Rakhine e a devastação é evidente.
De acordo com o governo, não existe perseguição contra o grupo e o que está em curso é uma campanha contra aqueles responsáveis pelos ataques aos soldados. Alega, também, que todos os mortos eram terroristas e já até acusou os Rohingya de terem sido os responsáveis pela destruição de suas casas, um ponto que é refutado pela ONU e organizações de direitos humanos. Nega que qualquer abuso tenha acontecido.
Essas manifestações, no entanto, custaram a aparecer e isso é outro ponto em que o governo birmanês enfrenta críticas. Uma delas é a contradição de o país ter uma Nobel da Paz como sua primeira-ministra e cuja honraria fora concedida justamente por sua luta pacífica pela instauração da democracia.
É bem verdade que seus poderes enquanto chanceler são limitados, já que a junta militar segue como parte importante da estrutura do governo (controla 25% das cadeiras do Parlamento). Ainda assim, uma posição mais firme de Suu Kyi vem sendo cobrada pela comunidade internacional.
Nas poucas vezes em que se pronunciou, a Nobel da Paz não reconheceu os Rohingya publicamente e, em um discurso televisionado, condenou o que chamou de “iceberg de desinformação” e voltou a falar em “terroristas”.
Em dezembro, um enviado especial da ONU que investigaria a situação teve o acesso ao país negado e dois jornalistas da agência Reuters que participam da cobertura da crise foram presos.
Embora a ONU e organizações não governamentais estejam monitorando a situação à distância, já que não podem entrar no país, e pressionando os países por atitudes mais fortes ante o silêncio do governo birmanês, pouco foi feito até o momento. Os membros do Conselho de Segurança da entidade condenam a violência militar, apenas os EUA consideram a imposição de sanções contra Mianmar.
A ONU vê na situação a “marca registrada de genocídio” e Pereira concorda com essa observação. “Temos claramente uma situação de limpeza étnica e o início de um processo genocida”, avalia o pesquisador, “e isso implica no uso do terror, da pressão militar e política para retirar de um local uma população indesejada”, explica.
“A comunidade internacional precisa fazer alguma coisa se quer evitar os erros que já foram cometidos no passado, como em Srebrenica (massacre em que mais de 8 mil muçulmanos foram executados pelas tropas sérvias durante a Guerra da Bósnia) e em Ruanda (genocídio dos tutsis pelos hutus em julho de 1994 e que matou 800 mil pessoas). ”