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Boicote de Trump à OMC afetará interesses do Brasil, alerta especialista

Boicote ao órgão de apelação da OMC pelos Estados Unidos coloca o comércio global em xeque. E o Brasil será significativamente impactado por essa crise

Renata Amaral: "O órgão de apelação da OMC foi fundamental para os interesses da política externa comercial do Brasil desde o começo do seu funcionamento" (American University/Divulgação)

Gabriela Ruic

Publicado em 11 de dezembro de 2019 às 11h34.

Última atualização em 11 de dezembro de 2019 às 16h01.

São Paulo – A partir desta quarta-feira (11), o Órgão de Apelações da Organização Mundial do Comércio (OMC) , que define conflitos comerciais entre os 164 países-membros, está paralisado em razão de um boicote promovido pelos Estados Unidos há anos, intensificado nos últimos meses pelo presidente Donald Trump.

O Órgão de Apelação é considerado um mecanismo importantíssimo da OMC. Sua paralisação, portanto, traz à tona ameaças à estabilidade das relações comerciais entre os países. Entre os membros da entidade que serão diretamente afetados por essa crise está o Brasil, que sempre acionou o órgão na defesa dos interesses da indústria e do agronegócio do país e é historicamente bem-sucedido em suas demandas.

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Para Renata Amaral, diretora do curso “U.S. and International Trade Law Policy” (Os Estados Unidos e a Política para o Comércio Internacional, numa tradução livre) na consagrada American University, em Washington, o bloqueio promovido pelos Estados Unidos deixa as trocas comerciais imprevisíveis e à mercê das dinâmicas de poder de cada país.

A EXAME, a especialista falou sobre a situação atual da OMC, o papel que o Brasil pode desempenhar nesse momento e traçou um panorama do futuro do sistema multilateral de comércio.

EXAME - Quais as consequências dessa paralisação para o comércio global?

A partir de hoje, 11 de dezembro de 2019, o número de membros do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) cai para um e a instância de apelação do sistema de solução de disputas está paralisada. É o fim do órgão da forma como conhecemos. Os membros estão impossibilitados de apresentar apelações e o sistema está bloqueado, uma consequência imediata deste desmonte capitaneado pelos EUA.

Se nada for feito, uma das consequências no médio prazo é que o bloqueio deve prejudicar o funcionamento contínuo do sistema de solução de controvérsias da OMC. Além disso, as trocas comercias vão ficar à mercê de dinâmicas de poder, como foi durante o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, que antecedeu a OMC) de 1947 a 1995, a despeito de um sistema pautado na segurança jurídica e na previsibilidade de regras vinculantes. Todo mundo perde.

EXAME - Como a paralisação do órgão de apelações da OMC afeta o Brasil?

A paralisação do Órgão de Apelação e o risco de desprezo do sistema de solução de controvérsias afeta o Brasil significativamente. Nossa política é tradicionalmente defensora do multilateralismo e o sempre prezamos por soluções alinhadas às regras e à negociação nesse âmbito. O órgão de apelação da OMC foi fundamental para os interesses da política externa comercial do Brasil desde o começo do seu funcionamento.

O Brasil é, historicamente, um dos maiores utilizadores do sistema de solução de controvérsias da OMC. Fomos reclamante em 33 disputas, reclamado em 16 e atuamos em 147 como uma terceira parte. Logo que o sistema de solução de controvérsias nos moldes atuais foi criado, o Brasil começou a usá-lo de maneira inovadora.

Em 1995, Brasil e Venezuela questionaram medidas dos EUA que discriminavam a gasolina importada. De lá para cá, o Brasil obteve ganhos significativos em disputas que envolveram os mais diversos setores exportadores da indústria. Há o famoso caso do algodão sobre subsídios norte-americanos e as disputas sobre subsídios europeus ao açúcar. Esses são dois exemplos de disputas em que o Brasil entrou como reclamante para defender os interesses de diferentes setores da indústria nacional e ganhou.

EXAME - Considerando a importância do órgão para o Brasil, qual papel o país deve desempenhar nessa questão?

O Brasil é, há décadas, um ator fundamental na OMC. Muito em razão do brilhantismo do corpo diplomático que já passou por Genebra e do que ainda está lá, o Brasil seria uma liderança natural para mobilização de esforços a fim de evitar o desmonte do sistema que pode resultar a partir desse bloqueio do Órgão de Apelação. Regras claras, horizontais e que prezam pelo multilateralismo sempre foram bandeiras levantadas, com sucesso, pelo Brasil.

A habilidade brasileira para defender interesses nacionais nos contenciosos perante o sistema de solução de disputas rende ao país boa fama e respeito nos corredores de Genebra e a aparente resignação do país frente ao desmantelamento que sofre hoje o Órgão de Apelação não combina com a reputação brasileira na OMC. O Brasil é uma liderança reconhecida por diversos subgrupos dentro da OMC e não parece faltar ao país legitimidade para que adote uma postura mais vocal nesse processo.

EXAME - O que os Estados Unidos pretendem atingir com esse bloqueio?

O descontentamento dos EUA com o Órgão de Apelação não é novidade e tornou-se evidente ainda no governo de Barack Obama. A diferença é que Donald Trump estáirredutível.Com apenas um membro, não há mais um quórum mínimo para emitir decisões. Parabéns para os EUA.

Ainda que vários países estejam de acordo com os EUA sobre a necessidade de modernização da OMC, os argumentos para esse desmonte são inconsistentes e até hipócritas. Não faz muito tempo que o governo atual e o próprio Trump elogiaram amplamente a decisão daOMCdo mês passado, na qual foi autorizado que EUA retaliassem a União Europeia no caso dos subsídios à Airbus.

O que eles querem, no limite, é o retorno a um sistema que lhes era mais favorável, que envolvia jogos de poder, p amplo uso de vantagens assimétrica e liberdade para barganhar, sem ter de se preocupar com decisões “judiciais”.

EXAME - É o fim da OMC? O que podemos esperar do futuro do sistema multilateral de comércio?

Não é o fim da OMC e nem mesmo o fim do sistema de solução de disputas. Mas é, certamente, o esvaziamento de um pilar importante desse sistema. Sem o Órgão de Apelação, que é um garantidor das regras da OMC, tudo ficará menos previsível e a assimetrias entre os países ficará mais evidente.

Contudo, o sistema de solução de disputas e o braço negociador da OMC continuam operantes, e negociações em temas importantes estão avançando nos comitês em Genebra. É o caso de comércio digital e subsídios à pesca, por exemplo. Vale lembrar que a OMC é ainda o único foro capaz de deliberar sobre regras horizontais para os seus 164 membros. A despeito das críticas à OMC desde o “fracasso” da Rodada Doha, os resultados alcançados nesse foro têm um efeito multiplicador único, como é o caso do “Acordo de Facilitação de Comércio”, concluído em Bali em 2013.

Podemos esperar o sistema multilateral de comércio continue um importante foro negociador e que o sistema de solução de controvérsias continue operando, ainda que a possibilidade de apelação seja, neste momento, um limbo. A melhor alternativa sobre a mesa hoje para resolução do impasse foi apresentada pela União Europeia, com uma espécie de órgão de apelação paralelo para julgar os recursos. Agora, nos resta acompanhar os próximos capítulos.

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