Joe Biden recebe a segunda dose da vacina contra covid-19 nos EUA: país começou imunização ainda em 2020 (Tom Brenner/Reuters)
Estadão Conteúdo
Publicado em 28 de março de 2021 às 09h00.
Última atualização em 28 de março de 2021 às 09h00.
A rapidez na vacinação dos EUA traz para Joe Biden, ao mesmo tempo, uma vitória doméstica e um dilema internacional. Conforme a imunização dos americanos avança, a Casa Branca é pressionada a ajudar países que estão atrás no combate ao vírus.
A pressão vem de aliados que pedem que o presidente reveja apoie na Organização Mundial do Comércio a quebra de patentes das vacinas.
No governo de Donald Trump, os EUA se opuseram à ideia de suspender as proteções de propriedade intelectual para combater a crise. A proposta, encabeçada por Índia e África do Sul, e apoiada por 55 países, foi apresentada em outubro como uma forma de facilitar a transferência de tecnologia e possibilitar a produção de imunizantes a custo acessível. Especialistas apontam que, no ritmo atual, países pobres podem vacinar suas populações só em 2024.
Os EUA rejeitaram a proposta, que sofre oposição das farmacêuticas. A maioria das vacinas hoje em produção foi desenvolvida por laboratórios americanos, chineses e europeus. União Europeia, Suíça, Japão e Reino Unido estão entre os que ficaram ao lado dos EUA, em um embate entre países ricos e pobres. O Brasil foi um dos poucos que não apoiou a proposta da Índia e da África do Sul.
No último debate na OMC, no início do mês, nada mudou e os ricos ainda são contra a medida. Mas, de lá para cá, a pressão interna cresceu. Há um mês, 31 congressistas americanos endossaram a proposta. Agora, democratas dizem nos bastidores que articulam o apoio de quase 100 nomes.
"É injusto que, em meio a uma crise global de saúde, empresas farmacêuticas multibilionárias continuem a priorizar os lucros, protegendo seus monopólios e elevando os preços, em vez de priorizar a vida das pessoas em todos os lugares, até mesmo no sul global", disse o senador Bernie Sanders. Outros democratas progressistas engrossaram o coro em favor da mudança da posição americana. A deputada Jan Schakowsky chamou a situação atual de "apartheid da vacina".
A OMC terá uma nova reunião em abril, a primeira na qual a questão será discutida com o Escritório de Comércio dos EUA, já sob nova orientação. A representante de Biden, Katherine Tai, assumiu no dia 18.
"O principal argumento dos americanos é que a pressão para derrubar as patentes não resultará, necessariamente em aumento de produção de vacina", afirma Renata Amaral, especialista em comércio internacional e professora da American University.
A Câmara de Comércio dos EUA, que representa o empresariado, disse que a proposta é uma "distração" e está "mal orientada".
Setor privado e governos que se opõem à medida argumentam que o gargalo para produzir o imunizante é a infraestrutura, especialmente para a tecnologia mRNA, e escassez de matéria-prima. Os problemas não seriam solucionados com a quebra de patentes.
A informação é contestada pela Organização Mundial da Saúde, que se propõe a ajudar a criar estrutura para produção. A avaliação de ex-integrantes do Departamento de Comércio american é a de que os EUA não mudarão de posição. Para avançar na OMC, é preciso consenso entre os 164 membros.
Biden está em posição desconfortável. Os EUA avançam no cronograma de vacinação e podem imunizar toda a população elegível para receber a vacina até o início do segundo semestre. Assim, o país terá um excedente de vacinas não utilizado, pois garantiu, ainda com Trump, a compra antecipada de doses em número além do necessário.
A decisão de Biden de garantir a vacinação dos americanos primeiro, antes de compartilhar as doses extras, é questionada pela comunidade internacional, especialmente com relação à vacina da AstraZeneca, cujo estoque americano está sem uso.
Recentemente, Washington concordou em enviar 2,5 milhões de doses ao México e 1,5 milhão ao Canadá. Dentro do governo, assessores se queixam que China e Rússia têm aproveitado a chamada "diplomacia da vacina", enquanto os EUA continuam priorizando os americanos.
"A avaliação é que os EUA não arredarão o pé. Mas, enquanto isso, a China nada de braçada na diplomacia da vacina e a pressão em Washington está crescendo muito", disse Amaral.
Ativistas e representantes de organismos internacionais, como a nova diretora da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, e o líder da OMS, Tedros Adhanom, têm criticado os efeitos do "nacionalismo da vacina" nos países pobres. "Das 225 milhões de doses que foram administradas até agora, a grande maioria foi em um punhado de países ricos e produtores de vacinas, enquanto a maioria observa e espera", afirmou Adhanom.
A ONG Médicos Sem Fronteiras divulgou uma carta com apoio de quase 400 organizações da sociedade civil com apoio à medida e, em mensagem de Natal, o papa Francisco pediu que "forças do mercado" e "leis de patente" não atrapalhem o combate global à pandemia.
O argumento dos democratas é que o governo americano ajudou a financiar as vacinas e teria o poder de pressionar as farmacêuticas para abrirem mão dos lucros até que o mundo atingisse um patamar de imunização seguro.
Além do debate na OMC ativistas têm pedido a Biden que use a patente de tecnologia que permitiu o desenvolvimento das vacinas em mRNA, que deve ser concedida nos próximos dias, como forma de pressionar os laboratórios.
A patente será emitida em nome do governo americano, pois foi desenvolvida pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), que colaborou com o desenvolvimento da vacina da Moderna.
"Há uma série de maneiras através das quais estamos engajados em abordar a pandemia com a comunidade internacional. Estamos analisando várias opções. Mas eu não tenho nenhuma atualização sobre a questão da patente, disse Jen Psaki, porta-voz de Biden.
Assessores do presidente argumentam que ele se comprometeu com US$ 4 bilhões ao Covax, o consórcio internacional para promover acesso equânime às vacinas, e articulou com Japão, Índia e Austrália a produção e entrega de 1 bilhão de doses para o Sudeste Asiático. Mas Biden tem sido pressionado a fazer mais.
Canadá, Austrália e Chile pediram medida concretas, o que abre caminho para uma terceira via, defendida também pela nova diretora da OMC. A ideia de Ngozi Okonjo-Iweala é licenciar a fabricação para outros países, algo que a AstraZeneca fez com o Instituto Serum, na Índia.
Em depoimento ao Congresso, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, disse que o Brasil apoiaria um "caminho intermediário", que "proporcione uma solução de consenso". As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.