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Como o Banco Central da Ucrânia está enfrentando a guerra

O Banco Central de Kiev está levando adiante uma política monetária complexa: de um lado tenta garantir o crescimento em meio a uma invasão, do outro quer preservar o valor da moeda local. Uma missão íngreme.

Banco Central da Ucrania (Banco Central da Ucrania/Exame)
CC

Carlo Cauti

Publicado em 11 de abril de 2022 às 15h16.

Última atualização em 11 de abril de 2022 às 18h46.

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia está provocando uma devastação sem precedentes no país da Europa oriental.

Segundo estimativas do Banco Mundial, o Produto Interno Bruto (PIB) ucraniano deverá encolher 45% esse ano. E o país precisará de US$ 600 bilhões para reconstruir as infraestruturas devastadas pelo ataque russo.

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Entretanto, se muito é falado sobre as destruições materiais, pouco é falado sobre as dificuldades monetárias que a Ucrânia está vivenciando.

Uma crise que poderia ser muito pior se o Banco Central Ucraniano (BCU) não tivesse atuado de forma contundente.

Sistema bancário moderno

Antes da guerra, a Ucrânia tinha um sistema bancário relativamente moderno, com uma baixa concentração bancária, e com 71 bancos operantes em seu território (dos quais 33 parcial ou totalmente controlados por estrangeiros).

Cerca de 36% dos passivos do sistema bancário eram denominados em moeda estrangeira, tendo uma forte sensibilidade do mercado monetário a variação do câmbio, principalmente no caso dos financiamentos de curto prazo obtido em mercados internacionais.

O sistema bancário ucraniano registrou um excedente de liquidez por muitos anos, especialmente de curto prazo, em grande parte mantida como certificados de depósito do Banco Central do país.

História monetária conturbada

Entretanto, desde sua independência em 1991, a Ucrânia experimentou uma história monetária turbulenta.

Em 1993, uma espiral hiperinflacionária atingiu um pico acima de 10.000%. Isso forçou o país a levar adiante uma reforma monetária em 1996 e uma transição para uma nova moeda na proporção de 100.000 para cada nova unidade monetária.

Em 2000, 2008 e 2014-15, seguiram-se três grandes desvalorizações da moeda local, a hryvnia, acompanhadas de novos picos de inflação.

O último deles, durante um período de instabilidade política, seguiu a uma tentativa fracassada do Banco Central da Ucrânia de defender a moeda, acabando com seu estoque de reservas internacionais.

Por causa dessas experiências traumáticas, os cidadãos ucranianos detêm grandes quantidades de moeda estrangeira. Além disso, no primeiro sinal de instabilidade econômica ou política, são muito rápidos em converter as poupanças em moeda estrangeira.

Em 2015, o BCU tornou-se formalmente independente, assim como ocorreu no Brasil há poucos anos. O objetivo era superar questões de domínio fiscal com um mandato que garantisse a estabilidade financeira e de preços.

Para atingir o primeiro objetivo, o Banco Central Ucraniano criou um regime de metas inflação indicando o objetivo de 5% ao ano, com livre circulação de capitais e taxa de câmbio flutuante. Basicamente, o tripé macroeconômico brasileiro criado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Dessa forma, o BCU conseguiu conquistar uma imagem de um banco central moderno, que estava equilibrando a necessidade de apoiar a economia em meio à pandemia de coronavírus, tentando evitar por outro lado pressões inflacionárias decorrentes do interrupções na cadeia de suprimentos global.

Guerra muda planos do Banco Central da Ucrânia

A preparação e a invasão russa da Ucrânia, no entanto, mudaram drasticamente o cenário monetário e forçaram o BCU a mudar rapidamente suas operações para evitar um colapso financeiro.

Desde novembro, quando surgiram imagens de satélite de tropas russas perto da fronteira, as pressões financeiras sobre a Ucrânia começaram a aumentar a cada escalada das tensões geopolíticas.

O primeiro sinal dessa pressão foi, obviamente, a moeda. A hryvnia começou a sofrer uma série de turbulências, perdendo rapidamente valor.

Após a moeda, a crise atingiu a dívida pública.

O volume de títulos públicos da Ucrânia detidos por não residentes encolheu quase 20% somente entre janeiro e fevereiro 2022, e as famílias ucranianas rapidamente começaram a comprar mais moeda estrangeira.

Como resultado, o BCU passou a intervir no mercado cambial, com vendas líquidas de ativos no exterior em janeiro, para mitigar as flutuações cambiais e controlar a depreciação cambial.

No dia 23 de fevereiro, às vésperas da guerra e com a moeda que voltou a derreter, o BCU tentou acalmar o mercado alegando que tinha "uma quantidade suficiente de reservas internacionais" e que "não há falta de dinheiro no sistema bancário".

Mas o dia seguinte, com a invasão da Rússia, o BCU impôs controles de capital, impedindo a compra de moeda estrangeira, limitando saques de contas em moeda estrangeira e passando de um regime de câmbio flexível para um fixo.

No mesmo dia, para ajudar a construir reservas internacionais e a capacidade de garantir a estabilidade financeira, o Banco Nacional da Polônia concedeu um swap de quase US$ 1 bilhão ao Banco Central Ucraniano.

No dia 25 de fevereiro, o BCU disponibilizou ao sistema bancário acesso a empréstimos de refinanciamento ilimitados em moeda nacional, com prazo até um ano.

Uma media sem precedentes, pois esses empréstimos não eram garantidos.

Em 11 dias, os bancos ucranianos tomaram emprestado 62 bilhões de hryvnia por meio desse instrumento.

Esse conjunto de ações, no espaço de dois dias, provavelmente evitaram uma forte desvalorização da moeda, uma rápida saída de reservas internacionais e uma crise de liquidez que poderia ter levado a um colapso financeiro.

No entanto, essas escolhas não são isentas de riscos potenciais.

As injeções de liquidez de 25 de fevereiro garantiram que o mercado de crédito interbancário continuasse funcionando sem sinais visíveis de estresse.

No entanto, a liquidez adicional já foi compensada pelas demandas adicionais de moeda por parte da população.

Invasão da Rússia provocou demanda adicional de liquidez

A invasão russa forçou cerca de três milhões de ucranianos a buscar refúgio em países vizinhos, uma crise que resultou em longas filas em caixas eletrônicos, pois os cidadãos locais buscaram sacar dinheiro físico.

Embora o Banco Central Ucraniano possa facilmente fornecer dinheiro em moeda nacional, a demanda por dinheiro em moeda estrangeira é mais problemática.

Isso especialmente pois as remessas do exterior diminuíram de forma considerável.

Em tempos normais, os trabalhadores ucranianos no exterior são uma fonte essencial de moeda estrangeira para o país.

As remessas de ucranianos atingiram o pico de US$ 15 bilhões em 2021, perto de 10% do PIB do país.

No entanto, a demanda atual por divisas em face das restrições cambiais nos mercados oficiais desencadeou o surgimento de mercados de moedas paralelas.

Outro problema são as importações.

Fornecer liquidez em moeda nacional para facilitar as condições financeiras também traz riscos.

A Ucrânia é altamente dependente das importações e a invasão está tendo um impacto significativo na capacidade produtiva de sua economia.

Como resultado, o excesso de liquidez provavelmente pressionará ainda mais o câmbio.

É claro que qualquer desvalorização da moeda provavelmente será transmitida para pressões inflacionárias, primeiro através do preço do combustível e de outros bens importados, e depois para o preço dos bens locais devido aos preços mais altos dos bens intermediários.

Banco Central da Ucrânia muda planos

Antes da invasão, o BCU tinha planos de decidir sua taxa básica de juros (atualmente 10%) em 3 de março e impor mais compulsórios em 11 de março, embora ambos tenham sido prontamente cancelados no início de novembro.

Mas, com a inflação rodando por volta de 10% em janeiro, acima da meta de 5%, a expectativa era de que as taxas de juros continuariam subindo em 2022.

Em 9 de março, o Fundo Monetário Internacional (FMI) interveio e aprovou um empréstimo de US$ 1,4 bilhão para a Ucrânia por meio do Instrumento de Financiamento Rápido para ajudar a atender às necessidades urgentes de financiamento.

A Ucrânia já tinha um acordo-padrão junto ao FMI para superar problemas de balanço de pagamentos. Entretanto, esses dinheiro era acompanhado de um programa macroeconômico, que incluía obrigações e restrições para o país beneficiário para garantir a estabilidade macroeconômica.

Agora, com a guerra em andamento, a pergunta é como o Banco Central da Ucrânia vai reagir aos desafios que se prospectarão no futuro. E se vai conseguir devolver esse dinheiro ao FMI. Sempre se a Ucrânia continuará sendo um país independente.

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