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Análise: O contra-ataque do establishment democrata

As primárias da Carolina do Sul fizeram o partido Democrata se unir para evitar a nomeação de Sanders, escreve Carlos Poggio

Joe Biden e o deputado Jim Clyburn: o apoio foi decisivo para a vitória de Biden na Carolina do Sul (Drew Angerer/Getty Images)
FS

Filipe Serrano

Publicado em 11 de março de 2020 às 06h02.

Última atualização em 11 de março de 2020 às 06h02.

Com mais uma noite vitoriosa nas primárias realizadas na terça-feira, Joe Biden está praticamente garantido como o candidato Democrata que vai enfrentar Donald Trump em novembro. No entanto, ao contar a história da possível nomeação de Biden, historiadores e interessados em política dos Estados Unidos em geral devem começar pelo dia 29 de fevereiro de 2020. Essa é a data que deverá ficar conhecido na história eleitoral dos Estados Unidos como o dia em que o establishment Democrata começou a organizar um eficiente contra-ataque para evitar que um insurgente candidato anti-establishment tomasse conta do partido.

Foi quando Joe Biden venceu as primárias da Carolina do Sul. Era sua primeira vitória em um estado em primárias, 32 anos após a primeira das três tentativas de ser nomeado como candidato à presidência pelo partido. Uma das razões do sucesso de Biden foi o apoio do influente deputado da Carolina do Sul, Jim Clyburn, a mais destacada liderança negra democrata no Congresso, a dois dias do escrutínio. Pesquisas indicaram que para 61% dos eleitores naquele estado, o apoio de Clyburn foi um fator importante na decisão de votar em Biden. A folgada vitória do ex-vice de Barack Obama no primeiro estado com parcela significativa de afro-americanos a votar nas primárias, foi o início da inédita e impressionante reviravolta que levou Biden a passar o rodo na Super Terça, apenas três dias depois, e mudar o rumo das primárias de 2020.

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Tendo observado o que aconteceu com os Republicanos quatro anos antes, os Democratas não parecem dispostos a permitir que seu partido também seja tomado por um outsider. Trump mostrou em 2016 como o sistema de primárias dos Estados Unidos pode fazer com que o partido perca completamente o controle sobre quem será nomeado para a disputa da presidência.

Na maior parte das democracias do mundo, incluindo o Brasil, esse modelo de primárias não existe. Em geral, os partidos têm total controle sobre a escolha de quem irá ser seu representante nas eleições gerais. Assim era também nos Estados Unidos. Mas uma série de reformas introduzidas nos anos 1960 culminou no atual sistema de primárias, em que os eleitores passaram a ser os responsáveis pela nomeação dos candidatos.

Gradualmente os partidos foram aprendendo a jogar as regras desse jogo e, ao fim e ao cabo, os candidatos nomeados tendiam a representar o interesse do establishment. Isso até 2016, quando os Republicanos foram obrigados a nomear um candidato que rejeitou e foi explicitamente rejeitado por todos os ex-presidentes e ex-candidatos a presidente pelo partido. A pergunta que ficou no ar desde então foi: na era das redes sociais e da polarização política, teriam os partidos perdido completamente o controle sobre o processo de nomeação?

Até o dia 29 de fevereiro de 2020 a resposta parecia ser sim. Bernie Sanders , o senador independente que fez carreira criticando o establishment do partido Democrata se autodenominando como um socialista-democrático, parecia fadado a levar a nomeação.

Os votos nos candidatos preferidos do establishment se dividiam, como aconteceu em 2016 com os Republicanos, entre diversos candidatos. Sanders acabara de ganhar uma vitória decisiva no estado de Nevada, com forte apoio entre jovens e latinos. Mas no intervalo de apenas uma semana, testemunharíamos uma extraordinária reviravolta.

Tudo começou com o apoio de Clyburn a Biden no dia 26 de fevereiro, uma quarta-feira, que veio junto com uma forte crítica do deputado a Sanders. Três dias depois, Biden consegue uma vitória convincente na Carolina do Sul. Em 48 horas o partido se rearticula. Dois democratas que dividiam o campo moderado com Biden, Pete Buttigieg e Amy Klobuchar, decidem sair da disputa para apoiá-lo. O ex-presidente Obama não declarou apoio público, mas sabidamente trabalhou nos bastidores, assim como a máquina dos Clinton. O resultado foi uma vitória em 10 dos 14 Estados que participaram da Super Terça, superando os prognósticos mais otimistas.

A vitória de Biden se deveu principalmente a um forte aumento no comparecimento de eleitores tradicionais do Partido Democrata, que estavam em busca de uma alternativa a Sanders. No dia seguinte, o bilionário Michael Bloomberg, que competia com setores do eleitorado que normalmente apoiariam Biden, anuncia que deixa a disputa. Entre a quarta-feira em que Clyburn declarou apoio a Biden e a quarta seguinte em que Bloomberg abandona as primárias, o Partido Democrata, incluindo aí tanto a elite como os militantes (em especial eleitores afroamericanos e mais velhos), operou um portento inédito e barrou a ascensão do candidato outsider.

Ressalte-se que, ao contrário do que algumas análises apressadas parecem sugerir, não há nada de “antidemocrático” nesse processo. O apoio de candidatos e figuras importantes do partido a Biden é parte do processo político normal. Sanders tentou fazer como Trump em 2016 e capturar o partido contra a vontade do establishment. O establishment Democrata, porém, mostrou-se mais organizado que o Republicano e foi bem-sucedido na operação de deter Sanders.

Se o senador independente de Vermont não concorda com as regras do partido ao qual ele se filia apenas quando participa de primárias para presidente, ele poderia explorar outras alternativas. Poderia, por exemplo, escolher se candidatar pelo Partido Socialista dos Estados Unidos, que tem lançado candidatos à presidência do país ininterruptamente desde 1976 sem muito sucesso. O recorde de votos de um candidato do partido foi 0,08% em 1984. Em 2016 receberam apenas 4.000 votos, o que é estatisticamente é o mesmo que 0%. Há um problema porém: o partido não realiza primárias abertas, como fazem os Democratas e Republicanos. Mas certamente, se Sanders demonstrasse interesse, os socialistas o receberiam de braços abertos. Evidentemente, ele não o faz, justamente porque o Partido Socialista não tem a mesma estrutura nacional que o Partido Democrata. Estrutura essa sustentada pelo mesmo establishment que Sanders pretende combater.

O Partido Democrata, por sua vez, fez o que qualquer organização faria – lutar pela sua própria sobrevivência. Nesse sentido, Sanders errou de estratégia após sua vitória em Nevada. Afinal de contas, um dia antes do caucus no estado, ele havia ido ao Twitter para dizer que o establishment do Partido Democrata não poderia pará-lo.

Com seu recém obtido ar de favorito depois dos resultados em Nevada, o senador de Vermont poderia ter optado por acenar para o establishment e tentado dar indícios de que buscaria unir o partido. Talvez um bom começo teria sido evitar elogios à política educacional de Fidel Castro, tema sensível para Democratas, em particular no importante Estado da Flórida. Mas, o problema da “revolução” prometida por Sanders é que ela passava pela captura do Partido Democrata, e não se viu nenhum sinal de conciliação.

O preço foi pago na Super Terça. No dia seguinte ao decepcionante resultado, a campanha de Sanders finalmente fez um aceno ao establishment, com um vídeo em que o ele buscava demonstrar uma – sabidamente inexistente - proximidade com Obama. Mas, como os eleitores Democratas parecem ter deixado claro ontem, pode ter vindo tarde demais.

* Carlos Gustavo Poggio, é doutor em relações internacionais, especialista em política dos Estados Unidos, e professor da FAAP

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