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A mentira fatal para Trump?

Gravações que mostram o presidente afirmando que minimizou a pandemia de propósito agitam a campanha nos Estados Unidos

Jornalista americano transcreve em livro entrevista com Trump em que ele diz que minimizou efeitos da pandemia de propósito (Getty Images/AFP)

Jornalista americano transcreve em livro entrevista com Trump em que ele diz que minimizou efeitos da pandemia de propósito (Getty Images/AFP)

CA

Carla Aranha

Publicado em 11 de setembro de 2020 às 11h10.

Última atualização em 11 de setembro de 2020 às 11h23.

Mesmo com as constantes revelações sobre os bastidores do governo Donald Trump, as conversas do presidente americano com o venerado jornalista Bob Woodward causaram furor e incredulidade e dominam o noticiário desde a quarta-feira.

Falando calmamente pelo telefone com Woodward em fevereiro e março, Trump diz que está minimizando a pandemia de propósito, mesmo sabendo da gravidade do problema. Em público, entretanto, a mensagem é muito diferente: o coronavírus vai desaparecer “milagrosamente” quando o tempo começar a esquentar com a chegada da primavera no Hemisfério Norte.

Trump se justifica, dizendo que seu objetivo é evitar o pânico. Mas o que se viu nos últimos dias foi uma admissão sem precedentes: o presidente dos Estados Unidos reconhecendo, numa conversa gravada, que mentiu para a população.

Trechos de entrevistas concedidas por Trump foram divulgados como parte da estratégia de divulgação do novo livro de Woodward. “Rage” (fúria, em tradução livre), que será lançado na semana que vem, seria apenas mais uma coleção de histórias dos bastidores da Casa Branca e se somaria a uma biblioteca crescente de memórias de ex-integrantes do governo e familiares que denunciam o comportamento errático do presidente.

Mas há duas diferenças fundamentais. A primeira são as 18 conversas entre o autor e Trump, que aconteceram entre janeiro de julho deste ano e incluem o período mais agudo da pandemia de covid-19.

A outra é a credibilidade de Woodward. O advogado Michael Cohen e o ex-assessor de segurança nacional John Bolton, que escreveram livros com críticas devastadoras contra Trump, podem ter sido motivados por vingança – o que não pode se dizer de Woodward.

Ele ficou famoso por revelar com seu colega Carl Bernstein o escândalo Watergate, nos anos 1970, e desde então desfruta de acesso direto à maioria dos presidentes americanos. Woodward escreveu livros sobre as presidências de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, e “Rage” é o segundo sobre o governo Trump.

Falando a jornalistas depois da divulgação do conteúdo do livre, Trump reafirmou não ter feito nada de errado: “Não quero que as pessoas sintam medo. Não quero criar pânico. E com certeza não vou criar um frenesi no país ou no mundo. Queremos mostrar confiança. Queremos mostrar força.”

Segundo os relatos da imprensa americana, a decisão de dar as entrevistas foi do próprio presidente. O livro anterior de Woodward, “Fear: Trump in the White House” (Trump: medo na Casa Branca, em tradução livre), lançado há dois anos, foi escrito sem acesso direto a Trump e com base em muitas fontes anônimas.

“Fear” descreve assessores tirando papeis da mesa para evitar que o presidente os assine e afirma que assessores próximos de Trump o consideravam um “idiota”, “maluco” e de capacidade intelectual comparável a uma criança da quarta série.

Furioso, Trump teria se convencido de que falar com Woodward seria a melhor opção. Para o mais recente livro, ele teria incentivado outras autoridades e assessores a colaborar com o jornalista, de acordo com uma reportagem do Washington Post.

Munição para Biden

Joe Biden, adversário de Trump na eleição de novembro, usou a revelação para uma nova linha de ataques. “Ele sabia [da gravidade da doença] e a minimizou de propósito. Pior, ele mentiu para a população americana. Ele mentiu consciente e deliberadamente durante meses sobre a ameaça [que o coronavírus] representa para o país.”

Anúncios de TV da campanha de Biden foram preparados às pressas usando os trechos das gravações divulgados. A pandemia é a maior ameaça aos planos de reeleição de Trump, cuja condução da crise é amplamente condenada de acordo com as pesquisas.

Segundo números recentes, quase 60% dos americanos desaprovam o trabalho do governo federal no combate à pandemia do coronavírus, que já causou a morte de mais de 190 000 americanos e que contagiou mais de 6,3 milhões.

Mas é duvidoso que as revelações do livro causarão ainda mais danos à campanha de Trump. A esta altura, a sensação é de anestesia: nada mais que sai da Casa Branca parece capaz de chocar.

Somente nas últimas semanas, o eleitor foi inundado por notícias sobre o caráter do presidente:

-- Mary Trump, sobrinha do presidente, publicou um livro de memórias em que afirma no título que o tio é “o homem mais perigoso do mundo”. Ela diz que Trump é narcisista e que o presidente pagou para um amigo fazer o SAT (prova necessária para admissão em universidades);

-- John Bolton, ex-assessor de segurança nacional, afirma em suas memórias que Trump pediu ajuda do colega chinês, Xi Jinping, para ser reeleito. Ele também afirma que a investigação do impeachment deveria ter sido mais ampla, para incluir um comportamento padrão de “toma-lá-dá-cá”.

-- Jeffrey Goldberg, editor da revista “The Atlantic”, publicou uma reportagem segundo a qual Trump se recusou a participar de um evento em homenagem a mortos de guerra americanos porque eles seriam “derrotados”. O presidente também teria chamado de “trouxas” mais de 1 800 fuzileiros navais mortos numa batalha na França durante a Primeira Guerra Mundial.

E essa curta lista inclui o relatório elaborado pelo procurador independente Robert Mueller sobre a interferência russa na eleição de quatro anos atrás, tampouco a investigação sobre a suposta negociata com os ucranianos com a intenção de obter material para prejudicar Joe Biden.

Nas próprias entrevistas, Trump já antecipava a potencial repercussão negativa do livro. “Você provavelmente vai me ferrar. Sabe como é, as coisas são assim”, afirmou o presidente a Woodward.

Com a opinião pública polarizada ao extremo, entretanto, esse tipo de retrato pouco lisonjeiro do presidente não deve mudar a opinião do núcleo duro de seus apoiadores.

As revelações sobre Donald Trump devem continuar ganhando as manchetes, mas ambas as campanhas sabem que a disputa que realmente acontecerá em alguns estados-chave, como Ohio, Michigan, Pensilvânia e Flórida. O resto, como bem sabe o próprio Trump, é apenas ruído.

Esse e outros temas estão no novo episódio do podcast EXAME POLÍTICA – temporada Eleições Americanas, que traz a análise dos principais fatos que envolvem a disputa pela Casa Branca.

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