Marco das garantias: lei deve baratear custo do crédito imobiliário (Rmcarvalho/Getty Images)
Repórter de finanças
Publicado em 1 de novembro de 2023 às 14h04.
Última atualização em 1 de novembro de 2023 às 14h38.
A aquisição de bens, como imóveis e veículos, no Brasil por meio de empréstimos e financiamos ganhou um novo capítulo esta semana com a aprovação do marco legal das garantias pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Entre os principais pontos oficializados pela nova Lei 14.711 de 2023 está a possibilidade de que o mesmo imóvel seja dado como garantia de diferentes empréstimos.
A nova regra foi destacada como positiva por entidades como Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Abecip). Para a EXAME Invest, os representantes das instituições afirmaram visualizar como um avanço no acesso ao crédito (confira o posicionamento ao final).
A visão estrangeira também está alinhada. Para a agência de classificação de risco Fitch, a nova lei facilita a oferta do crédito e impulsiona o crescimento econômico, já que visa ofertar melhores taxas aos consumidores e reduz as perdas de credores. “Embora não esperemos mudanças nas classificações de crédito como resultado da regra, melhorias estruturais no quadro regulatório são positivas para o ambiente operacional bancário e para a qualidade dos ativos”, informou em nota.
Hulisses Dias, analista CNPI e mestre em finanças, explica que como o marco tornou mais fácil a tomada dos bens dados como garantia pelos credores, o crédito - que já é mais baixo quando se tem uma garantia - deve começar a ser ofertado a um custo menor do que era até então. Isso porque os credores são favorecidos na medida em que eles podem ter a dívida quitada mais rapidamente em caso de inadimplência.
“O alcance mais rápido do bem dado em garantia na operação em caso de inadimplência faz a percepção de risco diminuir. Sendo assim, o prêmio de risco (taxa de juros) cobrado pela instituição financeira diminui, fazendo com que os empréstimos e financiamentos se tornem mais baratos e acessíveis”, comenta Dias.
Ainda segundo a agência Fitch, no final do segundo trimestre de 2023, o financiamento imobiliário (apenas para famílias) e empréstimos para automóveis totalizaram R$ 970 bilhões e R$ 270 bilhões, respectivamente, ou cerca de 9% e 3% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil combinados, respectivamente. E a perspectiva é que com o marco das garantias os números cresçam.
Antes do marco, um imóvel poderia servir somente como garantia para um único contrato de empréstimo ou financiamento, independente do valor. Ou seja, se o consumidor pediu um empréstimo de R$ 20 mil e deu como garantia um imóvel de R$ 200 mil, a propriedade como um todo ficava presa ao banco até que a dívida fosse quitada.
Agora, o mesmo imóvel pode servir como garantia para mais de um pedido de crédito, em bancos diferentes, com os valores sendo proporcionais. No mesmo exemplo, se o consumidor pedir um empréstimo de R$ 20 mil e dar como garantia um imóvel avaliado em R$ 200 mil, ainda lhe restam R$ 180 mil para serem usados como garantia para outros financiamentos, que podem, ou não, serem no mesmo credor.
Filipe Pontual, diretor-executivo da Abecip, comenta que anteriormente havia brechas na legislação que podiam gerar inseguranças jurídicas na parte da tomada de bens dados como garantia. Agora, segundo o especialista, o marco das garantias torna as regras mais claras. “Um exemplo são os valores mínimos do leilão. Quem não consegue pagar a dívida, o que é uma minoria que não consegue, o imóvel vai para o leilão. Antes, já teve problema no valor do imóvel tomado que ia para leilão, porque o tomador da dívida não achava justo o preço."
Além de regras mais claras, Henrique Lian, diretor de relações institucionais e mídia da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), explica que a execução da garantia ficou mais simples. Segundo ele, o marco das garantias prevê que a tomada do bem pelo credor não precisa mais ser judicial, podendo agora ser feita em cartório.
O analista Dias ainda complementa: “A forma de intimação em caso de inadimplência passou a ser eletrônica. Com isso, o devedor deverá ser intimado eletronicamente 15 dias antes da intimação presencial feita pelo oficial de Justiça. Essa intimação em casos de inadimplência feita de forma presencial aumentava o risco para quem estava emprestando o dinheiro. Isso refletia em uma taxa de juros maior para valer a pena assumir esse risco, tornando o crédito mais caro e restrito”.
Além do imóvel poder ser utilizado em mais de um empréstimo, os fundos de previdência privada também podem agora serem utilizados como garantia e em mais de um credor. Na prática, vai funcionar da mesma forma que com os imóveis: somente o valor emprestado é que ficará “preso” com o credor. Para os consumidores, é mais uma possibilidade de garantia. Já para os credores, eles poderão ter acesso a esse fundo sem a tributação que ocorre quando o dinheiro é retirado antes.
Dois pontos importantes mantidos no marco das garantias foi a impenhorabilidade de bens de família e a quitação da dívida caso o imóvel dado como garantia vá para leilão e não atinja o valor do débito. Em relação ao primeiro ponto, Dias explica que ele presenta direitos importantes dos consumidores, já que caso a propriedade dada como garantia esteja sendo utilizada para a família morar, ela não pode ser tomada.
Já na parte do leilão, Pontual comenta que foi mantida a questão de quando alguém perde o imóvel para o banco, se o leilão não for suficiente para saldar a dívida, não importa, o devedor será exonerado e livre do débito. “Isso já existia na lei antes, houve uma tentativa de mudar, mas foi mantido, então isso é uma coisa que já traz uma proteção para o consumidor. Para o credor, também é positivo, porque força o banco a ter um critério na hora de ofertar o empréstimo, em avaliar se a pessoa vai ter condições de pagar o dinheiro emprestado", destaca.
Segundo a Febraban, a nova Lei 14.711 de 2023 traz avanços importantes no fluxo de cobrança de empréstimos de veículos, ao consolidar no credor a transferência da propriedade do carro, sem a necessidade de intervenção judicial. “Essa possibilidade já representa um forte indutor para o recebimento do crédito, pois o devedor não poderá dispor do veículo que não mais está registrado em seu nome”, explicou à reportagem em nota.
Além disso, no caso do consumidor deixar de pagar o financiamento do veículo, o credor poderá, também sem prévia autorização judicial, vender o automóvel para terceiros, como investidores, securitizadoras ou fundos, que ficarão responsáveis pela retomada física do bem. “Em síntese, essas inovações permitem, como já ocorre com os imóveis, maior rapidez e menor burocracia na transferência da propriedade e na venda de veículos sem a necessidade de uma ordem judicial”, completa a instituição.
Em relação a regras mantidas para veículos, o presidente Lula vetou um trecho do texto que tentava alterar a busca e apreensão física do veículo, no caso de não entrega voluntária, permitindo que o credor retomasse o bem sem autorização judicial. A obrigatóriedade da autorização foi mantida.
À reportagem, a Febraban destacou avaliar que a retomada do bem por meio de mandados extrajudiciais seria positiva, já que tornaria o processo mais eficiente, menos burocrático e menos custoso, o que também poderia permitir a redução mais acentuada nas taxas de juros para financiamentos de veículos.
“Isso porque, de cada 100 empréstimos não pagos, apenas 20% dos veículos são recuperados, o que levou, nos últimos anos, a uma estagnação do saldo da carteira de empréstimos de veículos, estacionada em 2,5% do PIB contra 10% da carteira imobiliária. A proporção de financiamentos de veículos novos diminuiu de forma substancial, de 64,3% em 2012 para 47,1% em 2022, atingindo, em setembro de 2023, a marca de apenas 40,4%”, afirma.
“Ao contrário do que uma parte do mercado está analisando, que isso vai contribuir para o superendividamento, nós somos favoráveis, nós achamos que será benéfico para os consumidores. Claro que pode ocorrer esse superendividamento uma vez que facilita a obtenção de mais empréstimos, mas os empréstimos sem garantia real são a verdadeira fonte do superendividamento por conta das altas taxas de juros e spreads”, diz Henrique Lian, diretor de relações institucionais e mídia da Proteste.
“O marco de garantias, aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, faz o Brasil andar algumas casas importantes na esteira de um arcabouço regulatório moderno e que permita uma rápida e eficiente identificação, constituição, acompanhamento e execução das garantias”, informa a Febraban.
“Para o financiamento de imóveis, pode ter um efeito positivo ao longo do tempo na medida que torna a alienação fiduciária (tomada de bens) mais funcional e clara para todas as partes. No caso dos empréstimos, você permite que mais instituições financeiras possam oferecer os produtos. Se você tem mais oferta desse tipo de dinheiro, você tende a ter mais competição e portanto um custo menor para as pessoas”, afirma Filipi Pontual, diretor-executivo da Abecip.