Mulheres no mercado financeiro: de 2018 a 2020, o número de mulheres investindo na bolsa de valores saltou de quase 180 mil para mais de 800 mil (d3sign/Getty Images)
Beatriz Correia
Publicado em 23 de dezembro de 2020 às 15h00.
Em 2010, Juliana Machado comprou pela primeira vez títulos do Tesouro Direto. Seu objetivo, então, era conseguir a independência financeira e sair de uma situação de violência doméstica. Depois de estudar e trabalhar como jornalista cobrindo o mercado de financeiro, esses investimentos foram trocados por outros mais vantajosos para ela. A trajetória da analista vem sendo a mesma de muitas mulheres no Brasil. Nos três últimos anos, de 2018 a 2020, o número de mulheres investindo na bolsa de valores saltou de quase 180 mil para mais de 800 mil, segundo a pesquisa desenvolvida pela ANBIMA (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) e divulgada no último dia 14. A participação feminina no total de investidores aumentou de 22,06% para 25,47% no período. Levando-se em conta apenas o último ano, a quantidade de mulheres na bolsa dobrou.
Para Machado, que hoje é especialista em fundos de investimentos da Exame Research, os motivos que levam as mulheres à bolsa são os mesmos que motivam investidores em geral. “O intenso crescimento do mercado financeiro como um todo, como a própria indústria de corretoras, plataformas e fintechs que trazem soluções financeiras, assim como várias áreas dedicadas à educação financeira, espalhando conhecimento que antes era restrito. Ainda tem a onda de juro baixo não só no Brasil, mas no mundo, que deve persistir por algum tempo. Então você vê grandes bancos e investidores falando sobre a necessidade de tomar mais risco e diversificar investimentos. Essa conversa chegou ao grande público”, explica a especialista.
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O aumento do interesse do público feminino por investimentos na bolsa de valores é inegável e relevante, principalmente na população brasileira composta, em sua maioria -- 51,8%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad) -- por mulheres. Para Machado, outro ponto a ser destacado nesse processo é o amadurecimento das mulheres em relação às próprias finanças e a escolher o destino para o seu dinheiro. “São mais mulheres no mercado de trabalho, com autonomia e capacidade financeira para realizar seus próprios investimentos. Todos esses fatores foram responsáveis por nos trazer até aqui”, explica.
Apesar da alta expressiva e do aumento do número de mulheres na bolsa mais acelerado do que o de homens no último ano, elas ainda são minoria no meio. Apenas cerca de 26% dos investidores do mercado de ações é formado pelo público feminino. O número parece baixo -- e é, representando apenas um quarto do total --, mas em em 2002, as mulheres eram apenas 17% da bolsa.
“Essa diferença faz parte da história. Não devemos normalizar, mas o processo histórico do mundo sempre consistiu em as mulheres cederem o seu espaço aos homens. Nesse sentido, as mulheres acabaram não sendo priorizadas em espaços de tomadas de decisões políticas e econômicas. Diante de muita luta, nos últimos anos, foi sendo promovida a inserção das mulheres em cargos de liderança e posições de tomada de decisão. Estamos em um contexto de sociedade que ainda está mudando, mas quando se fala em mercado financeiro ainda há a imagem do ‘homem de negócios’; isso tende a mudar com o tempo, com o avanço da sociedade, da tecnologia e da própria valorização do trabalho da mulher”, diz Machado. Hoje, quase metade das casas brasileiras são chefiadas por mulheres. Um levantamento da Consultoria IDados, realizado com base nos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que o número de mulheres que são responsáveis financeiramente pelos domicílios já chega a 34,4 milhões.
Se as mulheres representam apenas um quarto dos investidores da bolsa de valores, no Tesouro Direto elas são responsáveis por 40% dos investimentos. Segundo Machado, esses dados estão mais relacionados à falta de educação financeira do que ao perfil de investidor. “Talvez esses números nos digam mais sobre como o mercado financeiro sempre conversou com os homens e não com as mulheres. Eu não estou dizendo que é preciso colocar rosas, as mulheres não precisam de canetas cheirosas e flores ou rosas para se interessar pelo mercado financeiro. O mercado é uma das profissões que sempre foram mais associadas a homens, o que tem mudado”, afirma.
Especialista em ESG da EXAME Research, Renata Faber afirma que a partir do conhecimento, as mulheres estarão mais confortáveis a arriscar. “Qualquer pessoa pode investir. Se os números mostram que existem menos mulheres do que homens na bolsa, precisamos trabalhar a educação financeira para que as mulheres se sintam mais confortáveis em tomar mais riscos”, diz.
Para que a inserção da mulher no mercado financeiro continue em ritmo de crescimento acelerado, é preciso, de acordo com a especialista em fundos de investimentos, que haja a promoção da ideia de divisão de tarefas. “A questão de pensar em carreira versus família sempre foi muito atrelada às mulheres e pouco aos homens. Nós temos que ter uma visão um pouco mais igualitária em termos de divisão de tarefas domésticas e da participação dos homens nas famílias”, afirma.
A outra aposta de Machado para que a mudança siga em curso é a educação financeira. “Precisamos continuar com esse trabalho de educação financeira, e não com cursos específicos para o público feminino porque as mulheres são capazes de entender de finanças tanto quanto os homens. O que faz a diferença é a gente continuar falando com o público, passando conhecimento de uma forma mais simples e direta. A gente tende a atrair as pessoas quando elas sentem que são capazes de entender as informações que estamos passando”, garante Machado, que também é professora do curso “Mapa dos Fundos” da EXAME Academy.
Faber concorda e também aposta na educação financeira como chave para a independência da mulher. “A independência financeira pode melhorar a autoestima, aumentar o poder de decisão. E a independência financeira passa, obrigatoriamente, pela educação financeira, é o que fará a mulher tomar risco de maneira responsável e ser protagonista em seus investimentos”, explica Faber.
Ter a independência financeira pode ir além de ter controle sobre o próprio dinheiro. A educação financeira pode ser a chave para mulheres saírem de situações de violência doméstica e de gênero. “A partir do momento em que se educa financeiramente uma mulher, você diz para ela que ela pode escolher dedicar-se ao que ela quiser e que o ato maternal não precisa ser, necessariamente, a única maneira dela existir no mundo. A educação financeira é uma forma de dar à mulher uma arma muito poderosa para se desvencilhar de situações de violência doméstica. Inclusive, é um pouco do que eu mesma vivi, eu saí da casa dos meus pais por uma situação semelhante”, relata a especialista.
“Estamos promovendo um processo bastante transformador da sociedade porque pessoas com autonomia financeira, psicológica e emocional têm a capacidade de atingir todo o seu potencial. Estamos ajudando pessoas a serem capazes de enfrentar todas as adversidades”, conclui Machado.