As razões da tempestade financeira do Reino Unido e as lições para o Brasil
Decisão do governo Truss por política fiscal expansionista gerou pânico e mercado reagiu como se Inglaterra fosse país emergente
Carlo Cauti
Publicado em 2 de outubro de 2022 às 14h53.
O pacote fiscal anunciado pelo novo governo britânico de Liz Truss gerou um cataclismo econômico com poucos precedentes na história da libra esterlina e dos títulos do Tesouro do Reino Unido.
Muitos começaram a se questionar sobre as reais razões dessa tempestade perfeita que chacoalhou a economia bretã . Segundo alguns analistas, foi apenas um curto-circuito na comunicação entre governo e mercados. Outros consideram essa política fiscal errada e contraproducente em tempos de inflação elevada. Outros acusaram os mecanismos "perversos" das finanças, como as chamadas de margens. Por sua vez, o Prêmio Nobel da economia, Paul Krugman, condenou sem meios termos o pacote do governo como algo "demencial".
Existem muitas hipóteses que explicam essa situação. Mas a única certeza é que se o Banco da Inglaterra não tivesse atuado na quarta-feira, o Reino Unido estaria em apuros. E, mesmo com a essa intervenção, Londres certamente não está fora de perigo, pois essa injeção de liquidez será temporária. A tempestade perfeita pode voltar em breve.
E precisamente esta é a primeira lição que o Reino Unido está dando ao mundo: ninguém, nem mesmo uma das maiores economias do planeta, nem mesmo um país fora do euro e das restrições europeias, nem mesmo um país que tenha uma a dívida pública contida em 91% do Produto Interno Bruto (PIB), pode se permitir políticas fiscais incompreensíveis que elevem a dívida pública.
Por que a economia britânica entrou em apuros?
Tudo começou na sexta-feira, 23 de setembro, quando a nova primeira-ministra anunciou o pacote fiscal mais expansionista dos últimos 50 anos. Entre as medidas está um corte de impostos que beneficia especialmente os mais ricos, financiado pelo aumento do déficit público, que atualmente é de 5% do PIB, e que, segundo algumas previsões, poderia chegar em 7%. Com isso, a dívida pública também aumentaria, chegando em quase 100% do PIB em alguns anos.
Foi uma faísca suficiente para que uma tempestade eclodisse nos mercados dos títulos do Tesouro britânico, cujos spreads (rendimentos) dispararam. Os papéis com vencimento em 30 anos, que antes do anúncio de Truss apresentavam uma rentabilidade de 3,7%, atingiram 5,09%. Um aumento que tem poucos precedentes na história britânica.
As vendas maciças foram alimentadas também pela alta das taxas de juros pelo Banco da Inglaterra em 0,50 ponto percentuais, para 2,25%. Uma elevação decidida 24 horas antes do anúncio de Truss, e que poderia também ter contribuído para essa turbulência.
Muitos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão detêm em seu balanço títulos da dívida britânica aos bilhões de libras, comprados nos últimos dez anos, quando os juros foram zero ou até negativos. Agora, os rendimentos oferecidos para títulos de nova emissão são mais elevados, e isso levou a uma avalanche de vendas de títulos antigos para compra de novos.
O aspecto mais curioso, porém, diz respeito à libra. Geralmente quando os juros sobem em um país industrializado, como a Grã-Bretanha, sua moeda se valoriza, pois as taxas mais altas atraem fluxos de capital. O contrário acontece nos países emergentes, porque o mercado — vendo os rendimentos subindo — questiona a capacidade de pagamento dos títulos do governo e os capitais fogem.
Desta vez, os mercados olharam para a Grã-Bretanha mais como um país emergente do que como uma das maiores economias do mundo. A libra caiu em relação ao dólar, perdendo até 6,4% de se valor desde o anúncio.
Excesso de dívida pública provocou essa crise?
Os analistas estão se questionando sobre as razões que levaram o mercado a reagir tão mal.
Alguns apontam o dedo para o pacote fiscal ser financiado com déficit primário, o que aumentaria a dívida pública. Isso é verdade. E em tempos de taxas de juros crescentes, certamente não ajuda a manter a estabilidade macroeconômica. Todavia, o Reino Unido continua tendo uma dívida pública controlada, especialmente em relação a outras economias avançadas. Entre os países do G7, a dívida pública britânica é a segunda menor.
Considerando, por exemplo, que o Japão tem uma dívida/PIB superior a 200%, esses números não justificam o pânico dos últimos dias.
Curto-circuito de comunicação entre governo e mercados
Portanto, essa situação de aumento do déficit e da dívida pública, por si só, não seria suficiente para explicar tal tempestade. Outras razões contribuíram com a turbulência.
A comunicação errada entre governo e mercados é uma delas. Ninguém esperava nesse momento um pacote fiscal tão generoso com as camadas mais abastadas da população. Especialmente em um momento de crescimento das desigualdades sociais. Além disso, ele chegou na hora errada, quando a prioridade deveria ser o combate à inflação.Já que o aumento dos preços no Reino Unido chegou em 9,9%.
Uma manobra fiscal tão expansionista não corre apenas o risco de alimentar ainda mais o "dragão", também contrasta com a atuação do Banco da Inglaterra, que está levando adiante uma política monetária restritiva.
Se em um momento econômico difícil como o atual, as políticas fiscal e monetária atuam de forma destoante, e não conjunta, o mercado perde a bússola e não entende qual a direção que a economia britânica está seguindo, entrando em pânico.
Banco da Inglaterra terá que monetizar a dívida?
A terceira razão que explica essa crise está relacionada ao comportamento do Banco da Inglaterra. Alguns analistas argumentam que o mercado está preocupado que mais cedo ou mais tarde o Banco Central do Reino Unido seja forçado a monetizar a dívida. E com o anúncio de compras ilimitadas de títulos do governo, de certa forma isso aconteceu.
Por outro lado, parte do mercado teme que o Banco da Inglaterra não tenha força política para conter a política expansionista do governo. E a intervenção nos títulos da Dívida Pública também confirma esse temor. Há alguns dias, o Banco Central tinha anunciado que em breve começaria a vender títulos do governo comprados durante a pandemia. Todavia, após o pacote fiscal de Truss mudou drasticamente de rumo e começou a recomprar papéis para consertar a iniciativa desajeitada do governo. Uma marcha-ré que corre o risco de minar a credibilidade da instituição monetária central britânica.
Chamadas de margem também contribuíram
Existem também uma razão técnica que explica essas turbulências. O forte aumento dos rendimentos golpeou duramente os fundos de pensão britânicos, que operam alavancados e com derivativos dando títulos do governo como garantia. Esses fundos têm 1,5 trilhão de libras sob gestão. Mais da metade dos cerca de 2,3 trilhões de libras de dívida pública total do Reino Unido.
A tempestade sobre os títulos britânicos desencadeou as chamadas de margens. Ou seja, os pedidos de reposição das garantias pelas contrapartes em derivados. Isso forçou os fundos de pensão a vender tudo aquilo que podiam para levantar o dinheiro necessário e atender às demandas de liquidez, exasperando ainda mais o caos sobre os papéis do governo.
O que o Brasil pode aprender?
Em suma, o governo de Liz Truss anunciou uma manobra expansionista para sustentar a economia do Reino Unido. A intenção era boa, mas por causa da comunicação desajeitada e pelos efeitos colaterais que a nova primeira-ministra provavelmente não esperava, o resultado provavelmente será o oposto: uma crise econômica.
Seu pacote deixou os fundos de pensão de joelhos, além de criar fortes problemas ao mercado imobiliário por causa do aumento repentino das taxas de juros, que como efeito colateral travou a concessão de novos empréstimos hipotecários no Reino Unido. Sem contar o risco de disparada da inflação e de prejudicar a credibilidade do Banco da Inglaterra.
Uma lição válida também para o Brasil. Principalmente no que tange ao comportamento alinhado das políticas fiscal e monetária, que não podem ser em contraste uma com a outra. Em um mundo dominado pelo mercado financeiro, um movimento errado por parte de qualquer governo pode gerar o caos econômico. Mesmo uma potência como o Reino Unido.