Gol: livre para crescer após setor superar crise da pandemia (Gol/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 30 de março de 2021 às 07h31.
Última atualização em 31 de março de 2021 às 11h03.
Comprar — incorporar — a companhia de fidelidade Smiles era questão vital para a Gol. Na semana passada, a união dos negócios foi aprovada após o preço de aquisição ser elevado de R$ 2,76 bilhões para R$ 3,35 bilhões. Agora, a questão que fica para a companhia aérea, após a gestão da pandemia, é como voltar a crescer. Passados 14 anos desde a compra da Varig, origem da Smiles, o grupo tem apenas 20 aviões a mais, embora em sua atual malha aérea caiba outras 50 aeronaves. Os entraves existentes dentro do grupo serão finalmente eliminados até o fim deste ano.
Embora a crise com o novo coronavírus tenha tornado a transação mais urgente, a separação das empresas era compreendida como um muro ao crescimento desde 2017, quando foi realizado um amplo diagnóstico dos desafios do grupo. Era um problema menor enquanto outras companhias do setor adotavam o mesmo modelo, mas tornou-se essencial depois que a concorrente direta Latam incorporou a Multiplus em 2018. Reintegrar a Smiles, portanto, passou a ser visto como essencial para colocar a empresa de volta à rota do crescimento.
Um olhar de retrospectiva da Gol aponta que a companhia não dá grandes saltos desde 2007, após a aquisição da Varig, quando terminou o ano com 106 aeronaves, frente as 65 do ano anterior. Dali até 2015, o negócio cresceu e chegou a um total de 144 aviões. Mas, percebeu-se então, que a expansão estava sendo feita sem o retorno associado e o negócio teve de encolher, reduzindo para 119 aviões em 2017. Idas e vindas, uma década e a empresa parada. A recessão do governo de Dilma Rousseff e juros extratosférios de então pesaram na conta.
Ao fim de 2019, após um ambicioso plano de renovação e expansão de frota anunciado no ano anterior, a Gol estava com 137 unidades em operação e importantes encomendas para o MAX-737 da Boeing. A crise (agora superada) que levou ao atraso na aprovação do modelo — que implica em aumento de quantidade assentos e reduz uso de combustível — e a pandemia colocaram a frota da companhia hoje em 127 unidades.
Junto com a Smiles, estava no plano de 2017 resolver a crise financeira da companhia, com uma reorganização das dívidas, que ao fim de 2016 alcançaram níveis e condições insustentáveis. Esse passo, embora já equacionado estruturalmente, também tem seus movimentos finais ligados à empresa de fidelidade, que foi segregada e listada na B3, em 2013. A Gol vai finalmente conseguir dar um adeus à dívida com a Delta. Agora, as companhias voltarão a ser uma só. A combinação deve ser concluída no segundo semestre deste ano.
Fontes próxima à companhia ponderam que, mesmo com todos esses desafios, a Gol conquistou e não perdeu a liderança do mercado doméstico, nem com o surgimento e crescimento da Azul no meio do caminho. Tem atualmente uma fatia de 38% do mercado. Mas admite-se que a empresa perdeu a sua função de democratizar o acesso aos aviões, que era sua proposta original.
Portanto, não conseguiu produzir uma expansão inclusiva, que poderia fazer o total de usuários finalmente aumentar em relação ao patamar de 50 milhões de consumidores. A questão será central na vida pós-pandemia do setor. A expectativa é que a demanda corporativa, que responde por cerca de 50% da movimentação do setor no mundo, talvez nunca volte aos níveis pré-pandemia, pois as companhias descobriram a eficiência da vida digital. Cada vez mais, será preciso estimular as pessoas para se movimentarem em passeios e visitas a amigos e familiares.
A Smiles anunciou, na quinta-feira à noite, um dividendo não esperado de R$ 500 milhões. Os recursos serão descontados da parcela em dinheiro que será paga aos minoritários na incorporação. Parte do pagamento chega antes aos investidores, o que ninguém contava que aconteceria.
Para a Gol, o pagamento também é para lá de bem-vindo: são R$ 265 milhões no caixa, a jato. Com a soma do último contrato de antecipação de passagens e desse provento, a companhia aérea vai zerar as pendências que tem com a Delta, referente aos compromissos de US$ 300 milhões que venceram em agosto do ano passado. Na ocasião, parte foi quitada pela Gol, mas a maior parcela foi refinanciada diretamente com a empresa americana, que era garantidora na operação.
Atualmente, a American Airlines é parceria da Gol, com uma fatia minoritária no capital e um acordo comercial de compartilhamento de frota. Mas, na época em que a operação foi contratada, a Delta é quem estava nessa posição. Os recursos foram usados na reestruturação da dívida pós-Dilma. Foi dinheiro para encolher o negócio e não para crescer. Por isso, encerrar essa fatura é emblemático e importante. Libera recursos para expansão.
A estrutura original da dívida era assim: a Gol buscou recursos no mercado, com a garantia da Delta. Mas, em troca disso, usou as ações da Smiles como garantia para a empresa americana.
Antes das transações com a Smiles neste ano, restavam US$ 78 milhões a pagar à Delta. A Gol assinou, em agosto, o compromisso de amortizar US$ 16 milhões por mês e, caso recebesse qualquer fluxo da empresa de fidelidade, 67% deveria ser usado para reduzir o compromisso antecipadamente.
Com os R$ 300 milhões em passagens do começo deste mês e mais os R$ 265 milhões dos dividendos, cerca de R$ 380 milhões serão destinados à ex-sócia, o que praticamente elimina o saldo devedor. Restarão para o caixa da Gol, desses recebimentos, pouco menos de R$ 200 milhões.
A expectativa é que entre abril e maio, a Gol volte ao mercado para captar entre US$ 100 e US$ 300 milhões com uma operação semelhante à realizada no fim do ano passado, com garantia em ativos relacionados a peças e motores. E quando assumir a Smiles, vem junto o saldo de caixa que lá ainda estiver.
Após as compras de slots da Avianca, dentro do processo de recuperação judicial da empresa e a expansão de malha realizada, a Gol teria condições de ter 180 aeronaves voando, de acordo com cálculos de analistas do setor. Na prática, é um crescimento da ordem de 40% em relação ao total atual da companhia, após o atraso no cronograma da Boeing com o MAX-737 e com a pandemia.
O projeto da empresa é alcançar esse ponto. A projeção de prazo é difícil, pois ainda está atrelada à força da recuperação — econômica e de mobilidade — pós-pandemia.
A Smiles dentro da Gol dará ao grupo a capacidade de ampliar o que é chamado de prêmio líquido por assento (por quilômetro percorrido) — na prática, o retorno da empresa. Em uma indústria bilionária, a rentabilidade vem de movimentações de centavos nessa conta. Em 2020, esse retorno, chamado yield líquido por ASK, consolidado estava em R$ 28,73 centavos, dos quais R$ 1,39 centavo era da Smiles.
Com as empresas separadas, a Gol tinha de vender à Smiles, em preços pré-contratados, uma média de 7% dos assentos por voo — o percentual exato variava por categoria (extensão de rota). A companhia aérea não tinha como ampliar ou reduzir essa quantidade, nem o total de pontos necessários por passagem, para aproveitar melhor voos concorridos ou estimular novas rotas e aberturas de mercado. Essa gestão estava na Smiles.
Era como vender uma passagem que no mercado valia R$ 500 por R$ 200. Ou, então, não poder comercializar por preços menores, com menos milhas exigidas, voos e rotas menos explorados. Dessa forma, na gestão do yield consolidado não havia como gerir da maneira mais eficiente possível o retorno mais importante, o da Gol.
A gestão de preço de passagem, ou gestão de yield, esses centavos citados acima, é o coração do negócio. É um departamento com mais de cem pessoas envolvidas e muita matemática aplicada, cuidada minuto a minuto do dia, seguindo demanda e concorrentes. Quando a Latam incorporou a Multiplus, a rival que tinha uma sobreposição da ordem de 70% das rotas, passou a ser mais eficiente nessa briga. A Azul também tem a fidelidade incorporada ao negócio. A Gol estava de mãos atadas. Sem conseguir se rentabilizar de forma eficiente, pensar em crescimento era um desafio sem precedentes.
Agora, após pagar a dívida que financiou seu encolhimento, e mais flexível para produzir retornos melhores, a empresa é senhora de seu próprio destino.