Felippe Percigo: O caso Tornado Cash e suas lições para o mercado de criptomoedas
Como o episódio do banimento da plataforma de privacidade Tornado Cash pelos Estados Unidos está desafiando as leis fundamentais do mercado cripto
Mariana Maria Silva
Publicado em 23 de agosto de 2022 às 10h30.
As sanções feitas pelo Tesouro americano contra o Tornado Cash, no último dia 8 de agosto, deixaram um rastro de insegurança no mundo das criptomoedas, abrindo brechas para que outros projetos do setor possam ser alvos no futuro.
A fatídica data marcou um movimento do governo que, além de inédito, soou à comunidade como agressivo, ao banir uma aplicação descentralizada e de código aberto, a exemplo do que faz com nações ou entidades. A adição do protocolo à lista SDN (sigla em inglês para Cidadãos Especialmente Designados) da OFAC (Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros), na qual figuram indivíduos, empresas ou organizações identificadas como uma ameaça ao país, certamente move peças importantes no tabuleiro do jogo cripto.
O Tornado Cash funciona como um mixer de criptomoedas, serve para embaralhar transações de forma que dificulte o seu rastreamento. O protocolo de privacidade baseado em Ethereum é apenas um dos inúmeros projetos que fornecem o mesmo benefício, o direito do usuário de optar pela não exposição.
No entanto, ainda que a plataforma tenha foco em uma forma legítima de proteção, o governo americano acredita que ela atua como facilitadora de crimes cibernéticos, como hacks, fraudes e esquemas de ransomware, e classificou o protocolo como “ameaça à segurança nacional dos EUA".
Segundo autoridades americanas, o Tornado Cash foi utilizado para lavagem de mais de US$ 7 bilhões em criptoativos desde sua criação, em 2019. O protocolo é o mesmo que, supostamente, teria servido ao grupo de hackers norte-coreano Lazarus Group para lavar, por exemplo, os louros do desvio de US$ 625 milhões da Ronin Network, uma sidechain do famoso play-to-earn Axie Infinity, em março deste ano.
Por isso, não apenas os americanos estão impedidos de utilizar o protocolo, como também foram bloqueados endereços USDC e Ethereum associados a ele. A Circle, emissora dessa stablecoin, foi rápida no gatilho e logo congelou os fundos de carteira ligados ao Tornado Cash. A medida evitou que a companhia entrasse para o rol dos condenados e seus executivos pegassem 30 anos de prisão.
A comunidade respondeu ao banimento com irritação, justificando que o caso deveria servir como um alerta para que a indústria desperte para a verdadeira filosofia das criptomoedas. Principalmente, dizem os participantes, em um momento no qual a ideologia cypherpunk fincada nas raízes da blockchain, que tem na privacidade um de seus instrumentos de transformação sociopolítica, está sendo substituída pela onda da Web3, mais concentrada na tecnologia como fator multiplicador de startups.
O episódio do Tornado está sendo visto como um evento devastador para o mundo descentralizado. Será que a tecnologia concebida como incensurável em sua gênese realmente é capaz de dar suporte aos seus ideais? É um dos questionamentos. Os ativistas acreditam que esse seja um wake up call para que se comece a descentralizar todo o processo. Entre outras coisas, eles argumentam que não faz sentido, por exemplo, ter uma ferramenta de tanto peso como as stablecoins sendo administradas por emissoras centralizadas.
Na cascata do “cancelamento” do Tornado Cash, as plataformas de infraestrutura Alchemy e Infura bloquearam solicitações de chamada de procedimento remoto (RPC) para o misturador, impedindo, assim, o acesso dos usuários, enquanto o GitHub, de propriedade da Microsoft, suspendeu a conta de Roman Semenov, cofundador do protocolo de privacidade. O desenvolvedor se manifestou no Twitter: “Minha conta no GitHub acabou de ser suspensa. Escrever um código-fonte aberto é ilegal agora?”.
Na realidade, é provável que os afetados acabem sendo, basicamente, a grande maioria de usuários que apenas desejava transacionar recursos legais com privacidade. Isso porque existem diversas formas de pessoas íntimas da tecnologia continuarem a interagir com o Tornado, uma vez que apenas o front-end (a parte da aplicação que se comunica diretamente com o usuário) pode ser bloqueado, ou seja, nós alternativos continuam funcionais na blockchain da Ethereum. Fica fácil saber em qual dos dois grupos os criminosos do Lazarus se encaixam …
O Tesouro dos EUA está, de fato, penalizando o público errado. Segundo dados da Chainalysis, menos de 11% do capital que circula no misturador é resultado de exploits. Nos Estados Unidos, cerca de US$ 300 bilhões são lavados por ano, de um total mundial que varia entre US$ 800 milhões e US$ 2 trilhões. Isso significa que a participação americana na lavanderia planetária pode chegar a 38%. E os bancos globais, apenas em 2020, foram obrigados a pagar US$ 10,4 bilhões em multas por conta de lavagem de dinheiro.
Outro dado que vale ressaltar é que atividades ilegais em cripto correspondem a menos de 1% das transações, segundo levantamento da Elliptic. Dessa parcela, os scams (iscas para enganar usuários e roubar fundos) são a maioria esmagadora dos crimes e não lavagem de dinheiro, terrorismo e tráfico. O estudo destacou ainda que, entre 2017 e 2020, atividades financeiras criminosas foram predominantemente conduzidas por meio de instituições financeiras tradicionais.
Dito tudo isso, fica uma espécie de frio na barriga com relação ao futuro. Como entusiastas do criptomercado, precisamos pegar este episódio e tomar como lição, adotar uma cautela maior ao decidir sobre o investimento em moedas que possam vir a sofrer as mesmas restrições. E, por outro lado, analisar também quais protocolos podem se sair bem nessa situação. Por ora, temos que ficar com o radar ligado nas ações em torno da regulamentação nos Estados Unidos e acompanhar de que forma as decisões americanas vão impactar na condução do tema pelos governos globais.
Queremos um mundo descentralizado? Sim. Mas tudo no seu tempo. Até lá, precisaremos nos adaptar. Esse foi o superpoder que fez a humanidade prosperar.
*Felippe Percigo é um investidor especializado na área de criptoativos, professor de MBA em Finanças Digitais e educa diariamente, por meio da sua plataforma e redes sociais, mais de 100.000 pessoas a investirem no universo cripto com segurança.