O conhecimento ancestral como um diferencial competitivo do Brasil
Emerge um modelo que combina modernas tecnologias com o conhecimento ancestral. Nesse cenário, a criatividade e a inovação virão dos países do Sul Global, de ex-colônias como Brasil, África e Índia
Da Redação
Publicado em 8 de janeiro de 2023 às 08h03.
O presidente Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto, no dia 1º de janeiro, acompanhado de oito representantes do povo, de quem recebeu a faixa presidencial. Entre eles estava o cacique Raoni, liderança indígena respeitada internacionalmente. No mesmo dia, o novo chefe do Executivo deu posse a Sonia Guajajara como Ministra dos Povos Indígenas, ministério recém-criado. Deputada federal, Sonia nasceu na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, e tem formação acadêmica em Letras e Enfermagem. Na cerimônia, ela usava um cocar e um mbaraka, uma espécie de chocalho, um instrumento xamânico de comunicação com seres encantados e forças da natureza.
É marcante que a posse de um presidente brasileiro destaque duas importantes lideranças indígenas. Mas, para além dos simbolismos, o que isso diz sobre o tempo que vivemos, a sociedade e o novo contexto da inovação global? O que diz sobre o país que queremos ser na era da economia do conhecimento?
A chave para compreendermos esses gestos foi dada por outra figura central no novo governo e igualmente respeitada no mundo todo. Durante a COP 27, em novembro do ano passado, Marina Silva, quando ainda não havia sido confirmada como Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, disse em conversa com a Exame que a reindustrialização do Brasil virá a partir do meio ambiente e do conhecimento ancestral.
Na visão de Marina, o país precisa enxergar suas bases naturais como uma “grande vantagem comparativa para uma transição energética e para a busca de um novo ciclo de prosperidade”. E numa época em que conceitos como regeneração, resiliência, bioeconomia e biodiversidade chegaram para ficar no vocabulário dos negócios e da sociedade, o saber ancestral dos povos originários torna-se central no novo contexto, pois acumula séculos de conhecimentos válidos para as mais diversas áreas – os setores farmacêutico e de cosméticos, por exemplo, já utilizam muito do saber indígena no desenvolvimento de produtos.
“A ideia de uma bioeconomia parte dos modelos de desenvolvimento social, econômico e cultural dos povos indígenas”, disse Marina. “A união entre o saber narrativo das populações tradicionais e o conhecimento dos postulados denotativos da ciência ocidental é muito poderosa.”
Ciência e ancestralidade
Alguns cientistas já enxergaram o valor da união entre a ciência ocidental e a sabedoria indígena. Nesse grupo estão, entre outros, o astrofísico Marcelo Gleiser e o neurocientista Sidarta Ribeiro.
Professor titular de filosofia natural, física e astronomia na Dartmouth College, nos EUA, Gleiser procura aproximar duas áreas aparentemente irreconciliáveis (ciência e espiritualidade), como demonstra em um de seus livros mais recentes, O Caldeirão azul - o homem, o universo e seu espírito. Para o físico, a emergência climática mostra que já passou da hora de estabelecermos uma nova relação com o mundo natural, algo vital para a preservação da vida no planeta.
Além disso, propõe o resgate da sabedoria ancestral. “As culturas indígenas já sabem disso há muito tempo”, disse Marcelo em entrevista a este colunista no ano passado, referindo-se à necessidade de uma relação integrada com a natureza. “Elas nunca se colocaram acima do mundo natural. Ao contrário. Elas respeitam, sacralizam a natureza de forma que entendem que dependem do mundo, não é o mundo que depende delas”, disse.
Sidarta Ribeiro, por sua vez, argumenta que devemos nos voltar para práticas comuns aos nossos antepassados. “Para viver melhor a gente precisa fazer coisas que nossos ancestrais faziam muito bem: dormir bem, sonhar bem, compartilhar os sonhos, se alimentar bem”, afirmou em entrevista ao portal GZH. “Muito do que a gente precisa fazer é se voltar a práticas ancestrais que foram desenvolvidas por povos originários e que vêm sendo validadas pela ciência. Como a alimentação fermentada, por exemplo, que é altamente saudável e desinflama o corpo”, diz Sidarta, que é doutor pela Universidade Rockfeller e autor dos livros Oráculo da Noite – a história e a ciência do sonho e Sonho Manifesto.
Novo ciclo de inovação
É a roda viva da modernidade ocidental que nos levou a um modelo de desenvolvimento e modo de vida suicida. Um modelo desenhado pela Revolução Industrial com base numa visão apartada do mundo natural, como se nós, humanos, fôssemos uma coisa (superior) e a natureza outra completa diferente, algo que pudéssemos manipular impunemente. Não podemos, como a Covid-19 e a iminente catástrofe ambiental mostram bem.
É esse sistema que está em xeque. No lugar, começa a ganhar força uma nova visão pós-colonial, pós-industrial e pós-extrativista, como definiu o pesquisador Caio Vassão, doutor em urbanismo pela USP, consultor da Kyvo e pesquisador do campo do design, no artigo “Inovação pós-colonial”, publicado em seu perfil no Medium. Por esse conceito, o novo ciclo global de inovação começa a deixar para trás os preceitos da velha economia industrial - extrativista, baseada na escassez e eurocêntrica, ancorada no padrão de consumo dos “países desenvolvidos”.
Em seu lugar emerge um modelo que combina modernas tecnologias com o conhecimento ancestral. Nesse cenário, a criatividade e a inovação virão dos países do Sul Global, de ex-colônias como Brasil, África e Índia. “Ainda é muito comum assumirmos a postura colonizada de ficar esperando que inovações sejam prototipadas nos países ‘desenvolvidos’ para, só depois disso, sabermos qual é o próximo passo de desenvolvimento que devemos seguir”, escreve Vassão. “Enquanto isso, incontáveis oportunidades de originalidade batem à nossa porta, e são enxotadas como um visitante indesejado: novos conceitos poderiam ser transformados em inovações disruptivas emergem nos países coloniais e periféricos o tempo todo, mas as lideranças comumente têm dificuldade em reconhecer o valor dessa criatividade.”
É hora de mudar essa mentalidade. Se quisermos ter um futuro – saudável do ponto de vista pessoal e coletivo e inovador, próspero e sustentável nos negócios -, talvez seja o caso de olharmos pelo retrovisor da história e aproveitarmos a boa herança que os nossos ancestrais deixaram para nós.
*Clayton Melo é jornalista, articulador urbano e curador de festivais de inovação e criatividade. É cofundador da plataforma de conteúdo e inovação social A Vida no Centro e foi finalista do Prêmio Governo do Estado de São Paulo para as Artes 2020. Acompanha profissionalmente o mundo digital e de inovação desde 1999, com atuação em redações como Istoé Dinheiro, Meio e Mensagem e Gazeta Mercantil e tem textos publicados em veículos como UOL, El País, HuffPost, Carta Capital, Veja SP, Fast Company Brasil e Istoé. Tem MBA em Marketing pela FGV e atualmente é mestrando em Cidades Inteligentes e Sustentáveis pela UNINOVE.