A pecuária pode ajudar na descarbonização? Para este renomado cientista, a resposta é sim
Ricardo Abramovay questiona a maneira como as emissões são contabilizadas, defende a pecuária regenerativa e questiona se estamos comendo proteína demais
Editor ESG
Publicado em 23 de outubro de 2023 às 16h35.
Professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP, Ricardo Abramovay tem uma boa e uma má notícia para os pecuaristas. Do lado negativo, ele contesta um dos principais argumentos da indústria da carne contra os movimentos vegetariano e vegano: o de que precisamos de mais proteína para alimentar a crescente população global. Na realidade, exceto por quem passa fome, cujo problema é maior do que falta de carne no prato, as pessoas consomem muito mais proteína do que precisam.
A boa notícia é que, de uma perspectiva econômica, a carne vermelha, ou seja, a proteína do boi, é a mais eficiente em termos de custo de produção e entrega de valor nutricional, e isso considerando as emissões de carbono. “É muito mais difícil atingir os mesmos resultados com aves e suínos”, disse Abramovay em uma palestra no auditório da JBS, maior empresa de proteína animal do mundo, em São Paulo. “Mas não é qualquer pecuária”, ressaltou o professor, em conversa reservada com a EXAME, após o evento.
Até pouco tempo, cientistas como Abramovay não ocupariam um espaço como esse. As grandes empresas de proteína animal, como a JBS, e o agronegócio em geral, estavam mais preocupados em aumentar a produtividade e não viam com bons olhos questionamentos acerca de suas práticas ambientais. Acusadas de serem as vilãs do clima e responsáveis pela destruição da Amazônia, essas companhias ressentiam a falta de diálogo, e o setor se encastelou no discurso econômico, apontando -- com razão -- a importância do agronegócio para o Brasil.
A conversa se transformou em monólogos internos, com ambientalistas e pecuaristas engajando mais e mais de seus pares. As consequências das mudanças climáticas e pressões do mercado externo, no entanto, pressionavam ambos os lados para uma solução de fato. E ela não existe sem colaboração. Ao que parece, os tempos estão mudando.
Ocupar para não entregar
Um dos pontos mais relevantes do processo de destruição da Amazônia, que sempre foi negligenciado pelas visões estreitas do ativismo e do corporativismo, é o processo de ocupação recente do território amazônico. É fato que, nos últimos 30 anos, houve incentivos políticos e econômicos para a abertura de áreas de agricultura, o que significa derrubar floresta, e as duas primeiras etapas da transformação de mata primária em plantações são o desmatamento e a implementação de pastagens para bovinos.
Essa atividade foi incentivada por governos ao longo das últimas três décadas, como atesta Ananias de Oliveira, pequeno produtor rural do assentamento Tuerê, em Novo Repartimento, no Pará. “Quanto mais a gente abria, mais terra ganhava do Incra”, disse o produtor à EXAME. Oliveira chegou no Pará há 28 anos, época de grande violência no campo e de massacres que entraram para a história, como o de Corumbiara, em Rondônia, e de Eldorado dos Carajás, no Pará. Esses conflitos marcaram o início do governo de Fernando Henrique Cardoso, que se elegera sob uma plataforma de disciplina econômica e avanços sociais. As dezenas de mortes promovidas pelas forças de segurança em Rondônia e no Pará pressionaram o recém-eleito presidente a dar uma resposta contundente ao desafio da reforma agrária.
FHC, então, criou o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, sob o comando de Raul Jungmann, que ocupou, ainda, os cargos de presidente do Ibama e do Incra no mesmo governo. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), diante da comoção pelos massacres, intensificou as ações, inclusive as invasões de terras. A resposta do governo foi um ritmo intenso de assentamentos, o que, nas palavras do próprio Jungmann, deixou como legado “o maior programa de reforma agrária da história do Brasil”. É nesse contexto que Ananias de Oliveira chega ao Pará para ser assentado, e é incentivado pelo Incra a abrir pastagens.
O cenário que se tem na Amazônia, hoje, é de meio milhão de famílias de pequenos agricultores, que ocupam uma área de 33 milhões de hectares, sendo mais de 70% em assentamentos. Essas pequenas propriedades respondem por 47% da produção de bezerros na região, e desmataram, em média, 26% de suas terras desde 2008, segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), compilados pela JBS.
Justiça climática
Há uma série de injustiças atrelada a essa realidade, que se agrava com a necessidade de interromper um modelo de operação institucionalizado há 30 anos sob pretexto de descarbonizar a economia. É fato que governos e a iniciativa privada não deveriam ter aberto pastagens em áreas de floresta tropical, como enfatiza Abramovay. Mas elas existem e são importantes para o sustento de 500 mil famílias. Ainda que o combate às mudanças climáticas esteja acima de interesses individuais, por se tratar de um risco compartilhado pela humanidade, a solução precisa incluir aqueles que são os mais afetados por elas e pelas mudanças decorrentes do processo de descarbonização.
Entra em jogo o aspecto econômico da transição para uma economia de baixo carbono, e esse aspecto traz para o debate questões geopolíticas. Abramovay questiona a maneira como as emissões de gases de efeito estufa são contabilizadas na pecuária, por deixar de fora características da produção sul-americana. Isso se deve a uma prevalência de dados e contribuições europeias e americanas nos relatórios do IPCC, entidade internacional que compila informações climáticas e produz o relatório de referência para as discussões diplomáticas sobre o tema.
Os dados mostram que um terço das emissões globais vêm do sistema agroalimentar global, e as carnes, em especial a bovina, respondem por 60% disso. O problema é que essa contabilidade está baseada nos modelos europeu e americano de criação de gado, muito diferentes do modelo sul-americano. Enquanto no Brasil, por exemplo, só 16% do gado é confinado, lá fora o porcentual varia entre 65% e 70%. Essa diferença é importante pois, para criar o gado solto, argentinos, brasileiros e uruguaios dependem de uma enorme variedade de gramíneas forrageiras – somente nos Pampas são mais de 450 espécies – e leguminosas. Essa vegetação cumpre funções ecossistêmicas, como manter o carbono no solo. “É preciso rever essa contabilidade”, afirma Abramovay.
Sistema Guaxupé
Um segundo aspecto desse entendimento é usar a pecuária a favor dos esforços de descarbonização. Para isso, é necessário investir em produtividade. Dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) mostram que, em média, as pequenas propriedades na Amazônia produzem menos de 1 cabeça de gado por hectare. A Embrapa, no entanto, desenvolve há 25 anos o Sistema Guaxupé, um modelo sustentável de intensificação pecuária baseado em pastagens permanentes e no manejo minucioso da vegetação.
Por meio de um projeto piloto do Fundo Pela Amazônia, da JBS, Ananias Oliveira implementou o sistema em sua propriedade no Pará. Ele seguia o padrão da região, com 1 boi por hectare. Hoje, sua produção subiu para 6 cabeças de gado por hectare. “Usamos um sistema de rotação, enquanto o gado come em uma parte, na outra o capim vai crescendo”, explica Oliveira. “Antes, o gado ficava largado no pasto, e só olhávamos três ou quatro vezes por semana. Agora, manejamos todos os dias. Temos sempre de tirar o gado, porque o capim não pode ficar menor do que 40cm, nem maior do que 90cm.”
Nessa configuração, a eficiência energética da pecuária é maior por um motivo simples, diz Abramovay: o gado se alimenta de um tipo de vegetal que os humanos não conseguem digerir. Isso significa que não há a substituição de áreas para produção de comida por áreas voltadas a alimentar o gado, como no caso das aves e suínos, alimentados com soja e milho.
“A pecuária não concorre com a alimentação humana em áreas de pastagens naturais”, explica Abramovay. “Claro que as florestas tropicais não deveriam ter sido ocupadas por pecuária, mas foram. O desafio, então, é reduzir as áreas de pastagens, aumentando a produtividade. A vantagem dos países tropicais, nesse sentido, é que é possível ter uma pecuária a pasto baseada na diversificação das pastagens e na introdução de leguminosas. Isso terá um efeito positivo sobre a captação de carbono, a biodiversidade e a produtividade. Não é possível fazer isso, na mesma intensidade, na Europa e nos Estados Unidos.”
Para os detratores da carne, resta um problema: a questão do abate de animais. Mas este, ao menos por enquanto, é um dilema insolúvel, cujo debate transcende os modelos econômicos e entra em aspectos morais. Enquanto a humanidade aceitar como natural o ciclo de vida e morte na cadeia alimentar, é provável que a carne siga como o epicentro do sistema agroalimentar. Uma alternativa seria substituir a proteína animal pelas carnes de laboratório, mas talvez isso levante ainda mais questionamentos no campo da ética ecológica.
Abramovay, no entanto, traz um alento ao incluir nas vantagens do sistema sul-americano de pecuária o tema do bem-estar animal. É fato que um boi criado solto tem uma vida melhor e confortável, a depender do manejo – pelo menos até ser encaminhado para o abatedouro. Mas, por enquanto, o que se tem de real é o seguinte: as mudanças climáticas são o maior desafio da humanidade, e existem 500 mil famílias que dependem da pecuária de subsistência na Amazônia. A economia é mesmo fascinante.