Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping (Mikhail Svetlov / Colaborador/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 5 de abril de 2022 às 08h48.
Última atualização em 5 de abril de 2022 às 08h50.
Escolas e maternidades em Kiev, Mariupol e outras cidades da Ucrânia ainda eram locais seguros para crianças, mães e grávidas quando os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping, reuniram-se a portas fechadas em Pequim, no dia 4 de fevereiro. Ao fim da reunião, uma declaração conjunta acendeu um alerta no Ocidente.
Pequim e Moscou anunciaram naquela sexta-feira uma parceria estratégica e diplomática “sem limites” e subiram o tom contra os EUA e a Otan, que naquele momento realizavam um boicote diplomático aos Jogos de Inverno de Pequim e confrontavam a Rússia por movimentações militares na fronteira com a Ucrânia.
Vinte dias depois, tropas russas entravam em território ucraniano a partir de Belarus, a mando de Putin. Rapidamente, o conflito em solo europeu atraiu as atenções do mundo. Mas os olhares ultrapassaram os limites do eixo Kiev-Moscou e se estenderam até Pequim, numa tentativa de entender até onde o “parceiro” do Kremlin estaria disposto a se comprometer diante do novo cenário.
O que se viu da China desde então foram posições oscilantes, estrategicamente pensadas a partir de uma agenda de paciência e cautela, a fim de não comprometer seus objetivos econômicos e geopolíticos. Para Xi Jinping, era crucial manter a relação com a Rússia sem entrar na mira das potências ocidentais como cúmplice da invasão.
Há diversos exemplos dessa dicotomia. A China votou contra as sanções internacionais à Rússia, mas autoridades chinesas vieram a público pedir que “as duas partes” procurassem um caminho para a paz. Mas, ao mesmo tempo, diplomatas chineses e a imprensa estatal propagaram uma teoria da conspiração russa sobre laboratórios de armas biológicas financiados pelo Pentágono na Ucrânia.
A falta de uma posição decisiva da China alimenta teses sobre a inércia de Pequim. The Economist apontou recentemente que os chineses entendem a guerra na Ucrânia como parte de uma disputa geopolítica maior, em que se opõem China e EUA, e definirá a próxima ordem mundial. Neste contexto, uma derrota russa poderia ser entendida como um fracasso do plano chinês.
Além disso, o conflito também tem uma dimensão pessoal de Xi. Após a aproximação com Putin, uma derrota russa refletiria na imagem do presidente chinês em um ano decisivo, em que ele tenta garantir um terceiro mandato como chefe do Partido Comunista - votação da qual ele alterou as regras partidárias para poder concorrer. “Ele mal pode se dar o luxo de ser visto apoiando um perdedor”, disse a Economist.
Assim que a “parceria sem limites” foi declarada por Pequim e Moscou, especialistas apontaram que uma colaboração irrestrita entre os países era pouco provável - com muitos interesses específicos a serem contemplados, muitos deles divergentes.
Apesar de possíveis áreas de cooperação guardarem interesses mútuos, como nos setores energético, de tecnologia e bens de consumo, as estratégias geopolíticas guardam pouca convergência fora da oposição à Otan.
Jussi Hanhimaki, professor do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, alerta sobre os entraves de uma parceria militar entre russos e chineses. “Eles poderiam se tornar parceiros estratégicos no sentido militar, mas esta é uma faca de dois gumes, em se tratando de dois países compartilhando uma fronteira longa e muitas vezes contestada. O fato de a China ser economicamente mais poderosa e a Rússia ainda ter uma vantagem militar é uma assimetria problemática nesta relação”, afirmou Hanhimaki.
A assimetria mais clara da relação é econômica. Com um PIB de mais de US$ 14,72 bilhões, a China tem uma economia dez vezes maior que a Rússia - com PIB de US$ 1,483 bilhão em 2020, segundo o Banco Mundial.
Ao mesmo tempo, a Rússia ainda mantém uma superioridade militar comparativa - apesar dos gastos militares chineses terem ultrapassado o orçamento russo para o setor. Além da superioridade em equipamentos militares convencionais (como número de tanques e artilharia móvel), Moscou ainda dispõe do maior arsenal nuclear do mundo, segundo a Arms Control Association.
Na avaliação de Vladimir Gel’man, professor da Universidade de Helsinque e pesquisador do Centro Finlandês de Estudos Russos e do Leste Europeu, o poder militar garantiria pouca ou nenhuma vantagem estratégica à Rússia dentro de uma relação de cooperação irrestrita.
“O tamanho da economia chinesa é cerca de dez vezes maior que o da Rússia. É por isso que é difícil discutir tanto a cooperação livre quanto a competição entre dois países. Creio que a Rússia seja fornecedora de petróleo e gás da China e, muito provavelmente, compre alguns bens e serviços chineses. Mas essa cooperação pode ser impulsionada pela China, com a Rússia desempenhando o papel de uma espécie de ‘parceiro júnior’”, disse.
Ocupar um papel minoritário, contudo, não parece ser o objetivo final de Putin, que tem se esforçado em criar uma realidade de poder fragmentada e multipolar na Eurásia.
Se a declaração de 4 de fevereiro não guardava nenhuma indicação específica sobre uma cooperação militar sino-russa, os comunicados de Moscou e Pequim são nítidos com relação ao principal elo entre os dois países: a oposição aberta à Otan.
“As partes se opõem à maior expansão da Otan, pedem à aliança do Atlântico Norte que abandone as abordagens ideologizadas da Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade de seus padrões civilizacionais e histórico-culturais, e trate o desenvolvimento pacífico de outros Estados de forma objetiva e justa”, dizia o documento.
Analistas foram unânimes ao declarar o antagonismo ao Ocidente como o principal ponto de convergência entre os países. No entanto, mesmo esse aspecto foi relativizado após a invasão da Ucrânia. As pesadas sanções econômicas e financeiras aplicadas à Rússia - comparadas por Putin a uma declaração de guerra - praticamente bloquearam a economia russa.
Ativos no exterior foram congelados, oligarcas e o alto escalão do governo foram proibidos de manter negócios em uma série de países e o banimento do sistema Swift (que permite a troca de informações bancárias e transferências financeiras entre as instituições) praticamente inviabilizou o acesso do país a moedas estrangeiras fortes, como o dólar e o euro.
Além das medidas contra a Rússia, os EUA e outras das principais economias do mundo ameaçaram estender as sanções a empresas e países que continuassem a negociar diretamente com Moscou - o que fez soar um alerta em Pequim sobre a possibilidade de se tornar o próximo alvo.
O ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2008, Paul Krugman, listou quatro motivos pelos quais a China não seria capaz de salvar a economia russa, entre eles, a integração do país a economia global.
“Mesmo que a China não tenha aderido às sanções, o país é profundamente integrado à economia mundial. Isso significa que bancos e outras empresas chinesas, da mesma maneira que as corporações ocidentais, poderão adotar autossanções - ou seja, ficarão relutantes em fazer negócios com a Rússia por medo de reações negativas de consumidores e agências reguladoras nos mercados mais importantes”, disse o economista.
Em paralelo, a revista britânica The Economist noticiou que dirigentes de empresas chinesas estão com um alerta ligado em razão das sanções econômicas. “Os bancos chineses poderiam reforçar o financiamento do comércio denominado em yuan com a Rússia usando o Cips, o sistema de pagamentos transfronteiriços da China”, escreve a Economist. “Mas as empresas chinesas estão atentas ao risco para suas reputações em outros mercados mais importantes, caso se acumulem na Rússia. E os credores chineses correm o risco de serem atingidos por sanções.”
Ao contrário do mundo rachado pela cortina de ferro, certas vezes a ideologia precisa dar espaço a questões mais pragmáticas no mundo globalizado.