Bolsonaro: Presidente eleito critica a política externa dos governos do PT, que deram prioridade a acordos com países africanos, sul-americanos e asiáticos (Ricardo Moraes/Reuters)
Estadão Conteúdo
Publicado em 4 de novembro de 2018 às 15h07.
Última atualização em 5 de novembro de 2018 às 09h49.
Brasília, Washington e Genebra - O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia - em negociação há quase 20 anos, mas já na reta final - ganhou um novo impulso após as declarações da equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro de que o bloco sul-americano não será prioridade no novo governo. A intenção, segundo o presidente da delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Mercosul, o deputado Francisco Assis, é tentar fechar algum tipo de entendimento comercial ainda durante o governo de Michel Temer.
"Estamos preocupados", disse. "Há uma enorme incógnita sobre qual será o futuro do Mercosul e, portanto, sobre como ocorrerá essa relação de negociação com a União Europeia." Segundo ele, o Mercosul entregou uma proposta aos europeus no dia 24 de outubro. "Haverá uma tentativa por parte da UE de fazer uma contraproposta", disse. A negociação com o Mercosul entrou na pauta da reunião da UE da próxima quarta-feira, com a comissária de comércio Cecília Malmstrom.
O acordo, se confirmado, será o mais importante já assinado pelo bloco europeu. Para levá-lo adiante, no entanto, é preciso vencer resistências dentro da própria União Europeia, já que grupos protecionistas fazem pressão para adiar o acordo.
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro defendeu acordos bilaterais com países desenvolvidos e criticou a política externa dos governos do PT, que deram prioridade a acordos com países africanos, sul-americanos e asiáticos. Na primeira entrevista após o resultado do segundo turno, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a criação do Mercosul foi ideológica e que o bloco não seria prioridade.
Na visão de especialistas em relações internacionais, a ênfase nos acordos bilaterais pode significar uma mudança na tradição diplomática brasileira do multilateralismo. "No fundo, isso faz sentido. Um dos motivos que atrapalham o desfecho nas negociações por livre comércio entre Mercosul e União Europeia é que quando o Brasil avança, a Argentina recua", diz Joaquim Racy, professor de economia da PUC-SP.
Na Europa, existem duas preocupações com o novo posicionamento, que inclui uma aproximação com os Estados Unidos: a substituição de produtos europeus por bens americanos, que entrariam no Brasil em melhores condições; e o fim de um equilíbrio geopolítico na América Latina entre os interesses americanos e europeus.
A última rodada de negociações entre Mercosul e UE, em setembro, foi interrompida sem que os dois lados chegassem a uma conclusão sobre tarifas para produtos agrícolas e industriais, como a carne bovina sul-americana e os laticínios europeus.
Procurado, o Itamaraty não se manifestou.
O pouco que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, já declarou sobre sua política externa deixa claro que ele busca uma virada de 180 graus na área, a partir de uma percepção que o Itamaraty foi "aparelhado" pela esquerda. A mudança de rumo, porém, pode trazer custos para um governo cujo maior desafio é recuperar a economia.
Os chineses, que têm uma carteira de investimentos de US$ 124,5 bilhões no País e um claro objetivo de expandir seus negócios, além de serem o principal destino das exportações brasileiras, fizeram uma dura advertência ao futuro governo na semana passada: um alinhamento com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pode "custar caro" ao Brasil. O alerta foi feito por meio de um editorial do jornal China Daily, principal canal de interlocução do governo chinês com o Ocidente.
Além de não esconder a admiração por Trump, Bolsonaro fez ressalvas a investimentos chineses e visitou Taiwan, nação com a qual o país continental tem uma disputa de décadas por hegemonia territorial. O gesto gerou protesto por parte do governo chinês.
Mesmo advertido por colaboradores que a ideia de mudar a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém poderia prejudicar as vendas aos países muçulmanos, que apoiam a causa palestina, Bolsonaro confirmou seu projeto na última quinta-feira (1).
De acordo com dados da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, as exportações brasileiras para os países árabes totalizaram US$ 5,1 bilhões na primeira metade deste ano. Eles são grandes clientes de carnes bovina e de frango, mas a lista também contempla produtos industrializados, como automóveis e autopeças.
Além do potencial prejuízo econômico, há um abalo na imagem do País. Com a mudança, o Brasil estará descumprindo a Resolução 478 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e abandonando uma posição de equilíbrio mantida nos últimos 60 anos. O presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, Rubens Hannun, já advertiu que os países árabes, um mercado de US$ 13 bilhões, podem abrir para concorrentes do Brasil um espaço que hoje eles não têm. Além disso, há risco de ser abortada uma tentativa de trazer para o Brasil os recursos dos fundos soberanos dos países árabes.
Por outro lado, o pragmatismo comercial parece ter sido levado em consideração no caso do agronegócio. Bolsonaro declarou na quinta-feira (1) que está reavaliando a ideia de unir as pastas da Agricultura e do Meio Ambiente. A intenção era reduzir o peso das exigências ambientais na produção. Isso, porém, é malvisto no mercado internacional.
Preocupado, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, divulgou uma nota alertando que a medida, se adotada, "trará prejuízos ao agronegócio brasileiro, muito cobrado pelos países da Europa pela preservação do meio ambiente." O diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio, Luiz Cornachionni, informou que a medida colocaria em risco exportações anuais de US$ 100 bilhões do agronegócio. Diversas outras entidades do setor se posicionaram contra.
O mercado europeu é o que mais faz exigências relacionadas ao meio ambiente e às condições de produção do agronegócio, disse o consultor Welber Barral, da Barral MJorge. Mas, explicou, outros países acabam seguindo os padrões de exigência dos europeus. Um experiente executivo do setor diz que o conflito entre o agronegócio e o meio ambiente já foi "resolvido" com a edição do Código Florestal.
A indústria também expressou preocupação com outro sinal, dessa vez emitido pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele afirmou que o Mercosul "não é prioridade" para o próximo governo. Em reação, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) emitiu nota alertando que, se isso for levado adiante, as exportações chinesas para o mercado sul-americano é que serão beneficiadas. "O único ganhador é a China, que já vem tomando o mercado brasileiro em toda a América do Sul", diz a nota. "Pequenas e médias empresas, que exportam mais para esses países, serão as mais afetadas."
O entorno de Jair Bolsonaro critica o Mercosul por ele haver se convertido em um foro político durante os governos do PT. O Estado questionou alguns integrantes da equipe do presidente eleito, mas não obteve resposta.
No provável cavalo de pau que o futuro governo de Jair Bolsonaro deve dar nas relações comerciais internacionais do País, o risco de um estremecimento com a China é o que traz maior potencial de perdas para a economia brasileira. O país é o principal destino das exportações brasileiras, com vendas de US$ 47,2 bilhões só entre janeiro e setembro deste ano. E, embora importe praticamente só produtos básicos, o país asiático quer diversificar suas compras.
Na próxima semana, será realizada uma megafeira em Xangai cujo objetivo é aumentar as importações da China, num esforço de abertura comercial. A ministra conselheira para comércio da embaixada da China no Brasil, Xi Xiaoling, disse que o País tem muitos produtos industrializados de interesse dos chineses, como os carros flex e alimentos industrializados, como o "melhor chocolate do mundo". Calçados Melissa e sandálias Havaianas fazem grande sucesso entre os chineses. O país vai importar US$ 10 trilhões nos próximos cinco anos.
Mas a parceria estratégica entre Brasil e China vai muito além disso. Do ponto de vista brasileiro, o principal ponto de interesse são os investimentos. Segundo boletim publicado pelo Ministério do Planejamento, a carteira de projetos no Brasil soma US$ 124,5 bilhões, dos quais US$ 54,1 bilhões já foram confirmados e US$ 70,4 bilhões são investimentos anunciados. Os dois países mantêm um fundo de financiamento em comum, que está prestes a aprovar seu primeiro projeto, no valor de US$ 4 bilhões.
Os colaboradores de Bolsonaro reconhecem que o Brasil não pode prescindir dos investimentos e do comércio com a China. E creem que será possível preservá-los, dentro da lógica do novo governo. Um teste ocorrerá esta semana, quando Bolsonaro deverá reunir-se com um integrante da diplomacia chinesa.
Brasil e China estão juntos, por exemplo, nos Brics, bloco que integram ao lado de Rússia, Índia e África do Sul. Neste ano, o Brasil deve assumir a presidência rotativa do bloco, e também do banco formado com recursos dos sócios. "Nós temos uma relação bem fundamentada do ponto de vista político e institucional com a China", diz a diretora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Anna Jaguaribe.
Enquanto a China acena com mais comércio e mais investimentos, os EUA vão, de certa forma, na direção contrária. No mês passado, o presidente dos EUA se queixou das dificuldades de comércio com o Brasil, o que gerou temores de novas restrições. Para Marcos Troyjo, professor em Columbia e um dos colaboradores de Bolsonaro, a fala de Trump pode ser entendida como um convite para melhorar as relações.
O governo americano vê com otimismo a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Identificado como "Trump tropical" na imprensa estrangeira, o presidente eleito desperta atenção na Casa Branca com discurso que o aproxima do americano nos campos políticos e comercial. Na União Europeia, no entanto, há quem tema que as posições até agora isoladas de Donald Trump possam ganhar eco no discurso de Bolsonaro. Por isso, o bloco econômico corre para fechar acordos com o Brasil o quanto antes.
A interlocutores, dois assessores do governo Trump afirmaram que o republicano foi sincero quando anunciou no Twitter que a conversa com Bolsonaro ao telefone, no dia do resultado da eleição, foi "excelente" e que há um clima de otimismo com o novo governo.
Os Estados Unidos intensificaram a aproximação com o Brasil com visitas de Estado, como a do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, em junho. Na ocasião, Pence deixou clara ao governo Michel Temer uma das pautas da política externa americana com relação ao Brasil: o endurecimento das relações com a Venezuela. Com Bolsonaro, a tendência é que esse caminho em relação ao país sul-americano seja seguido.
No campo comercial, há um longo caminho a ser percorrido. Os americanos veem chance de aprofundar as relações no campo de indústria de defesa e na negociação do uso da Base de Alcântara, no Maranhão, para lançamento de foguetes.
Ex-conselheiro da Casa Branca, Fernando Cutz sugeriu, em entrevista ao Estado, que Bolsonaro buscasse um acordo de livre comércio com os EUA. Para um integrante do governo, primeiro o Brasil precisa mostrar que deixou de ser um "País fechado" para que uma agenda de "interesse comum" possa ser implementada.
Integrantes da equipe de Bolsonaro sabem, no entanto, que Trump entrará na segunda metade de seu governo e que dificilmente ele gastaria seu capital político internamente para liberar, via Congresso, um grande acordo com o governo brasileiro.
No início de outubro, Trump criticou a dificuldade de fazer negócios com o Brasil. Para o governo americano, para melhorar as relações comerciais, o País precisará "fazer a lição de casa". O mesmo serve para que os EUA apoiem a adesão do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) - solicitada há mais de um ano pelo País, sem sucesso. A medida é vista como uma possibilidade de aumentar investimentos.
A União Europeia já se prepara para ter de mudar estratégias diplomáticas em caso de uma aliança estratégica entre Trump e Bolsonaro. "Há percepção em Pequim de que poderemos ver uma mudança importante na relação entre EUA e Brasil, com repercussão em diversos fóruns internacionais", afirmou um diplomata chinês na ONU. Um dos prejudicados poderia ser o grupo Brics, bloco formado por grandes países emergentes e que foi um dos instrumentos de política externa do governo Lula.
China, UE e países árabes já se mobilizam para impedir que Bolsonaro adote uma aliança total com Washington. Para isso, já planejam pressões e mesmo uma aceleração de acordos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.