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Um poema que fez história

One Toss of the Dice: The Incredible Story of How a Poem Made Us Modern Autor: R. Howard Bloch. Editora: Liveright. 320 páginas. ————————– Joel Pinheiro da Fonseca A poesia não está exatamente em alta. Qual foi a última vez que você comprou um livro de poesia? Pois é. A literatura em prosa vai relativamente bem […]

BIBLIOTECA PÚBLICA DE NOVA YORK: reconectar-se à poesia é redescobrir espaços da alma que raramente ousamos explorar / Drew Angerer/ Getty Images
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Da Redação

Publicado em 4 de março de 2017 às 08h00.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h29.

One Toss of the Dice: The Incredible Story
of How a Poem Made Us Modern

Autor: R. Howard Bloch.
Editora: Liveright. 320 páginas.

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Joel Pinheiro da Fonseca

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A poesia não está exatamente em alta. Qual foi a última vez que você comprou um livro de poesia? Pois é. A literatura em prosa vai relativamente bem – e falo não só de vendas, como na influência cultural dela. Já a poesia jaz esquecida no passado. Nem sempre foi assim. Em diversos momentos da história, era justamente a poesia que ocupava a linha de frente da inovação estética, literária e até do pensamento de maneira geral. E era reconhecida como tal.

Desde o início do Romantismo no século 18 até meados do século 20, a poesia ocupava um lugar de destaque. One Toss of the Dice: The Incredible Story of How a Poem Made Us Modern, de Howard Bloch, professor da Universidade de Yale, nos coloca num momento crucial desse período, elegendo um poema que revolucionou o mundo das letras; e talvez muito além dele.

“Un coup de dés jamais abolira le hasard” (Um lance de dados jamais abolirá a sorte), de Stephane Mallarmé, que morreu em 1898, um ano depois da publicação do poema, marcou uma guinada não só poética como teve impacto em diversas outras artes. A começar por sua estrutura: um texto espalhado de maneira singular por vinte páginas curtas, disposto de tal forma que uma linha pode seguir tanto para a linha logo inferior, como num livro normal, ou para a linha adjacente da página ao lado. Não há uma ordem clara de leitura – o título, por exemplo, é apresentado em pedaços ao longo das páginas. Sua única indicação é o tamanho da fonte. Aliás, alterações de estilo, tamanho e letras maiúsculas e minúsculas completam.

Ajuda ter como guia alguém como Bloch para destrinchar o texto, que é antes uma disposição de palavras no espaço do que uma progressão cronológica. Completamente mergulhado no simbolismo literário, o poema tem palavras que puxam outras por meio da associação psicológica ou pelo significado simbólico, sendo muitas vezes difícil entender o sentido literal. Basicamente, o poema descreve a cena de um naufrágio, no qual um homem solitário faz um lance de dados; em algum momento, surge uma sereia.

O poema representa, assim, uma quebra radical com a tradição que chegara até ali, com todos os cânones literários e com a forma de se escrever poesia. Mallarmé se liberta das amarras da forma (e mesmo conceituais) para expressar de maneira mais direta o que jaz na profundeza da alma. A morte (talvez simbolizada pelo gigantesco JAMAIS no meio do texto), o desespero humano em meio ao naufrágio – podemos pensar aqui no fim das certezas culturais e teológicas, que Nietzsche chamara de a morte de Deus -, a vã tentativa de impor ordem ao caos, que é o que faz nosso pensamento.

É, ademais, um poema sobre o desespero individual perante o absurdo e sobre a ilusão do tempo e do sentido na vida. Bloch traça também relações com a própria vida do poeta, que são interessantes, além de uma sugestiva hipótese de que a composição de ‘Un coup de dés’ tenha sido influenciada pelo advento do cinema e dos irmãos Lumière.

Curiosamente – e diferentemente de tantos outros poetas – a vida de Mallarmé foi regrada e pacata. Embora menos famoso que seu quase contemporâneo Baudelaire, ele se tornou célebre já em seu tempo pelos salões de terça-feira, nos quais recebia a nata da classe artística francesa de sua época (como Verlaine, André Gide, Degas). Assim, o impacto de sua poesia foi enorme, continuando nas gerações que se lhe seguiram.

Bloch traça uma enorme teia de artistas e criadores influenciados pelo poema revolucionário de Mallarmé, mas exagera o ponto. Sem dúvida, ele teve muitas repercussões no fazer artístico dos europeus, mas ver nele um precursor da teoria da relatividade e até da internet é demais para nossa credulidade. Sem dúvida, há elementos que fazem uma perfeita analogia com a relatividade, e pode-se mesmo falar de um hipertexto (de modo que certas palavras fazem referência a outras em outras páginas), mas falar de uma influência causal beira o inacreditável. Por mais que queiramos recuperar a honra perdida da poesia, esse não é o caminho.

O que é o caminho, e isso Bloch faz muito bem, é o de nos recontextualizar com um importante movimento literário e nos colocar para ler e analisar uma obra-prima de nossa tradição recente. Mallarmé pode não ter criado a modernidade, mas certamente foi uma peça em nosso aprendizado sobre como pensá-la e senti-la. Reconectar-se à poesia é redescobrir espaços da alma que raramente ousamos explorar. Mallarmé é uma janela aberta para essa nova visão.

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