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Pesquisa detalha a relação da classe C com o crédito

Após um ano e meio de estudos, socióloga aponta que maior índice de bancarização vem mudando a forma de vida da população das classes mais baixas

Principal questão levantada por Cláudia Sciré é como as pessoas lidam hoje com o que ganham e com os cartões de crédito (ROBERTO SETTON/EXAME)
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Da Redação

Publicado em 1 de junho de 2012 às 11h22.

São Paulo - Muito tem se falado atualmente sobre a chamada Nova Classe C , que obteve um incremento de renda nos últimos anos. No entanto, não foram apenas o aumento do salário mínimo e a implantação dos programas sociais que determinaram este fenômeno, mas, também, um maior acesso às opções de crédito e aos bancos nesta parcela da população.

Este é o assunto debatido pela socióloga e pesquisadora da USP, Cláudia Sciré, no livro “Consumo Popular, Fluxos Globais”, editado pela Annablume. A obra é fruto de um ano e meio de estudos com moradores do bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo.

A principal questão levantada por Cláudia Sciré é como as pessoas lidam hoje com o que ganham e com os cartões de crédito que, na maioria das vezes, oferecem limites superiores às rendas das famílias. “As pessoas hoje possuem vários cartões de crédito, cada um com um limite bem maior do que elas ganham no mês. Alguns lidam muito bem com isso, mas muitos acabam se endividando”, explica a autora.

A pesquisadora aborda ainda os hábitos de consumo dos moradores da periferia e discute sobre a necessidade de se investir em educação financeira. “Muitas pessoas ainda não entendem que o cartão de crédito não deve ser utilizado como um complemento para a renda”, explica. Leia a entrevista na íntegra.

- Como o acesso ao crédito vem impactando na mudança de vida da população das periferias?

Cláudia Sciré: Estamos diante de um processo de dois eixos: de um lado este acesso ao crédito, que proporciona um incremento na renda e o aumento gerado pelo crescimento da economia e dos programas do Governo. Do outro lado temos o fato de as empresas estarem se voltando para o hoje denominado público de baixa renda ou Classe C, e desenvolvendo produtos para atendê-los. O Shopping Campo Limpo é um desses exemplos.


- Quais são as principais facilidades de crédito que essa parcela da população tem hoje?

Cláudia: O que acontece é que antes a Classe C não tinha tanto acesso a estas facilidades porque a taxa de bancarização era menor. Hoje temos um aumento neste índice, o que coloca um maior número de pessoas em contato com os bancos que vão oferecer os serviços básicos de cartões de crédito.

Percebemos que esse limite é, muitas vezes, três ou quatro vezes superior à renda mensal das famílias. Não se trata apenas possuir um crédito, mas ele é muito amplo e isso não apenas através de um canal, que é o banco, mas ainda se tem um formado pelas redes varejistas, que possuem seus próprios cartões e que permitem créditos a mais e possibilidades de parcelar, além das financeiras.

Tudo isso contribui para que elas possam gerir os seus gastos de uma maneira diferente do que era no passado. Antes faziam o uso do carnê, mas o cartão dá a possibilidade de parcelar em muitas vezes sem os juros.

- Como essas pessoas lidam com a sua renda?

Sciré: Por se tratar de um processo novo, é comum que elas ainda estejam aprendendo a lidar com isso. Nós mesmos temos uma imensa dificuldade de entender como é feita a cobrança dos juros nos cartões de crédito. Todo o sistema financeiro, de certa forma, já inibe uma busca maior de informações.

A partir do momento em que se tem esse acesso facilitado, as pessoas começam a usar, porque existe o desejo de consumir. As consequências que observei foram muitos casos nos quais as pessoas se descontrolam. Há aqueles que gerem muito bem as dívidas e vão contornando as situações, ou seja, há meses em que pagam a prestação de um cartão para continuar usando, outros meses pagam a de outro. Há muito desse jogo de cintura, onde elas vão se virando, mas também há aqueles que não conseguem e acabam se endividando.


- Como as pessoas lidam com a questão do nome sujo?

Sciré: O que vemos hoje é que essa questão de sujar o nome já não é uma mácula na vida. Isso porque também é muito fácil limpar. A vida passa por esses estágios onde, uma hora estão com o nome sujo, outra hora com o nome limpo. Quando as pessoas estão com restrições acabam pedindo emprestado o cartão de alguém para continuar dentro desse ciclo de facilidades que o crédito oferece.

Há ainda os casos em que elas esperam que a dívida expire. Quando se trata de uma rede varejista, é do próprio interesse dessas empresas de que a pessoa volte a consumir. A vida passa a ser gerida com base nesses compromissos que têm com o mercado e com esse jogo de cintura para administrar esse crédito super ampliado.

- As pessoas usam o cartão de crédito como um complemento de renda?

Sciré: O cartão sempre estoura o que elas ganham, porque com um ou dois salários mínimos, que era o que os meus entrevistados ganhavam na época, não é possível sobreviver, então, eles lançam mão do cartão de crédito para dar conta dessas inúmeras demandas que possuem e ter uma vida digna.

- Até que ponto esse crescimento da Classe C é um aumento de renda real e, até que ponto, está ligado à ampliação da oferta de crédito?

Sciré: Houve um incremento da renda que não pode ser negado, por conta do aumento do salário mínimo, dos programas sociais que o governo Lula ofereceu. Tudo isso estimula a renda e faz a economia crescer. Só que, mais do que isso, um outro motor desse processo é a ampliação do crédito. O que precisamos questionar é: as pessoas estão consumindo, mas também estão se endividando e isso tem conseqüências futuras que ainda não sabemos bem quais são.


- Como são as práticas de consumo entre os jovens?

Sciré: Metade da minha mostra era de jovens de 16 a 18 anos. Muitos deles já trabalham ou já têm filhos. São pessoas que começaram cedo no mercado de trabalho e que também se deparam com esse mundo de maravilhas prometido pelo cartão de crédito. Muitas vezes eles já ingressam tendo que abrir uma conta bancária.

Muitos mencionaram que foram ao banco e foram questionados se queriam um cartão de crédito e aceitaram. Isso faz com que os jovens ganhem uma maior independência na hora de negociar com a família. Os filhos sempre ajudaram nas despesas da casa, mas, a partir do cartão de crédito, eles têm um controle maior da renda e também podem assumir gastos, como seus pais, que superam o valor do que ganham.

Eles gastam muito com roupas e com calçados, com saídas à noite. Trata-se de uma série de desejos reprimidos e os jovens chegam com essa ânsia de ter as coisas. Alguns dizem que se tornaram pessoas somente após terem um cartão de crédito.

- O que significa o cartão de crédito para essa parcela da população?

Sciré: Ele significa, primeiro, a chave de acesso a um mundo de facilidades do consumo que o carnê não permite, porque a pessoa pode comprar de uma forma facilitada. Hoje se pode ter tudo, independente da renda. Vejo o cartão hoje como um artefato que circula dentro das próprias famílias e que altera as redes relacionamento entre as pessoas.

Ele reconfigura esses relacionamentos. Pessoas emprestam seu nome a outras para comprar e isso afeta o jogo de relações no mundo popular, porque, muitas vezes, os compromissos não são honrados e muitos sujam os nomes de outros, ocasionando uma quebra nas relações.


- Quais foram as principais alterações de hábitos de consumo que a senhora percebeu neste estudo?

Sciré: Primeiramente, o que mudou foi o acesso aos bens de consumo e uma rotatividade, ou seja, as pessoas trocam seus móveis e eletrodomésticos com uma maior facilidade do que trocavam antes. O que vemos hoje são as casas super bem equipadas, embora por fora as fachadas ainda estejam em construção.

Mais do que isso, temos uma reconfiguração na própria maneira de viver a vida. As pessoas pautam as suas ações futuras com base nos compromissos assumidos com o mercado. Trabalha-se para pagar as dívidas. É uma realidade que está lado a lado com o que está acontecendo em todo o país. Vivemos em uma sociedade de consumo, onde o mercado lança estímulos e as pessoas cedem a eles. O que acontece é que hoje quase tudo é possível.

- Quais são as principais prioridades que as pessoas dão para gerir o orçamento doméstico?

Sciré: A primeira coisa é pagar as contas em dia, de água, luz, alimentação. As pessoas raramente compram alimentos a prazo, porque, por se tratarem de artigos de consumo imediato, raramente são comprados para pagar mais tarde.

Logo depois disso vêm as faturas do cartão de crédito, cada uma dentro da sua prioridades. Em alguns casos é usado o crédito rotativo. Todas as pessoas estão pagando ao menos um eletrodoméstico. Depois do cartão, a prioridade é para o pagamento de empréstimos bancários.

- É comum a utilização dos empréstimos para tapar o buraco que o cartão de crédito faz no orçamento?

Cláudia Sciré: Muitos utilizam os empréstimos nas financeiras para pagar suas dívidas. Com isso, acabam se endividando cada vez mais e a situação se transforma em uma bola de neve.

Tive entrevistados com dívidas que ultrapassavam os R$ 20 mil por causa desse descontrole. O que falta no país também são políticas públicas de educação financeira. As pessoas, muitas vezes, não entendem que o cartão de crédito não é um complemento da renda.

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São Paulo - Muito tem se falado atualmente sobre a chamada Nova Classe C , que obteve um incremento de renda nos últimos anos. No entanto, não foram apenas o aumento do salário mínimo e a implantação dos programas sociais que determinaram este fenômeno, mas, também, um maior acesso às opções de crédito e aos bancos nesta parcela da população.

Este é o assunto debatido pela socióloga e pesquisadora da USP, Cláudia Sciré, no livro “Consumo Popular, Fluxos Globais”, editado pela Annablume. A obra é fruto de um ano e meio de estudos com moradores do bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo.

A principal questão levantada por Cláudia Sciré é como as pessoas lidam hoje com o que ganham e com os cartões de crédito que, na maioria das vezes, oferecem limites superiores às rendas das famílias. “As pessoas hoje possuem vários cartões de crédito, cada um com um limite bem maior do que elas ganham no mês. Alguns lidam muito bem com isso, mas muitos acabam se endividando”, explica a autora.

A pesquisadora aborda ainda os hábitos de consumo dos moradores da periferia e discute sobre a necessidade de se investir em educação financeira. “Muitas pessoas ainda não entendem que o cartão de crédito não deve ser utilizado como um complemento para a renda”, explica. Leia a entrevista na íntegra.

- Como o acesso ao crédito vem impactando na mudança de vida da população das periferias?

Cláudia Sciré: Estamos diante de um processo de dois eixos: de um lado este acesso ao crédito, que proporciona um incremento na renda e o aumento gerado pelo crescimento da economia e dos programas do Governo. Do outro lado temos o fato de as empresas estarem se voltando para o hoje denominado público de baixa renda ou Classe C, e desenvolvendo produtos para atendê-los. O Shopping Campo Limpo é um desses exemplos.


- Quais são as principais facilidades de crédito que essa parcela da população tem hoje?

Cláudia: O que acontece é que antes a Classe C não tinha tanto acesso a estas facilidades porque a taxa de bancarização era menor. Hoje temos um aumento neste índice, o que coloca um maior número de pessoas em contato com os bancos que vão oferecer os serviços básicos de cartões de crédito.

Percebemos que esse limite é, muitas vezes, três ou quatro vezes superior à renda mensal das famílias. Não se trata apenas possuir um crédito, mas ele é muito amplo e isso não apenas através de um canal, que é o banco, mas ainda se tem um formado pelas redes varejistas, que possuem seus próprios cartões e que permitem créditos a mais e possibilidades de parcelar, além das financeiras.

Tudo isso contribui para que elas possam gerir os seus gastos de uma maneira diferente do que era no passado. Antes faziam o uso do carnê, mas o cartão dá a possibilidade de parcelar em muitas vezes sem os juros.

- Como essas pessoas lidam com a sua renda?

Sciré: Por se tratar de um processo novo, é comum que elas ainda estejam aprendendo a lidar com isso. Nós mesmos temos uma imensa dificuldade de entender como é feita a cobrança dos juros nos cartões de crédito. Todo o sistema financeiro, de certa forma, já inibe uma busca maior de informações.

A partir do momento em que se tem esse acesso facilitado, as pessoas começam a usar, porque existe o desejo de consumir. As consequências que observei foram muitos casos nos quais as pessoas se descontrolam. Há aqueles que gerem muito bem as dívidas e vão contornando as situações, ou seja, há meses em que pagam a prestação de um cartão para continuar usando, outros meses pagam a de outro. Há muito desse jogo de cintura, onde elas vão se virando, mas também há aqueles que não conseguem e acabam se endividando.


- Como as pessoas lidam com a questão do nome sujo?

Sciré: O que vemos hoje é que essa questão de sujar o nome já não é uma mácula na vida. Isso porque também é muito fácil limpar. A vida passa por esses estágios onde, uma hora estão com o nome sujo, outra hora com o nome limpo. Quando as pessoas estão com restrições acabam pedindo emprestado o cartão de alguém para continuar dentro desse ciclo de facilidades que o crédito oferece.

Há ainda os casos em que elas esperam que a dívida expire. Quando se trata de uma rede varejista, é do próprio interesse dessas empresas de que a pessoa volte a consumir. A vida passa a ser gerida com base nesses compromissos que têm com o mercado e com esse jogo de cintura para administrar esse crédito super ampliado.

- As pessoas usam o cartão de crédito como um complemento de renda?

Sciré: O cartão sempre estoura o que elas ganham, porque com um ou dois salários mínimos, que era o que os meus entrevistados ganhavam na época, não é possível sobreviver, então, eles lançam mão do cartão de crédito para dar conta dessas inúmeras demandas que possuem e ter uma vida digna.

- Até que ponto esse crescimento da Classe C é um aumento de renda real e, até que ponto, está ligado à ampliação da oferta de crédito?

Sciré: Houve um incremento da renda que não pode ser negado, por conta do aumento do salário mínimo, dos programas sociais que o governo Lula ofereceu. Tudo isso estimula a renda e faz a economia crescer. Só que, mais do que isso, um outro motor desse processo é a ampliação do crédito. O que precisamos questionar é: as pessoas estão consumindo, mas também estão se endividando e isso tem conseqüências futuras que ainda não sabemos bem quais são.


- Como são as práticas de consumo entre os jovens?

Sciré: Metade da minha mostra era de jovens de 16 a 18 anos. Muitos deles já trabalham ou já têm filhos. São pessoas que começaram cedo no mercado de trabalho e que também se deparam com esse mundo de maravilhas prometido pelo cartão de crédito. Muitas vezes eles já ingressam tendo que abrir uma conta bancária.

Muitos mencionaram que foram ao banco e foram questionados se queriam um cartão de crédito e aceitaram. Isso faz com que os jovens ganhem uma maior independência na hora de negociar com a família. Os filhos sempre ajudaram nas despesas da casa, mas, a partir do cartão de crédito, eles têm um controle maior da renda e também podem assumir gastos, como seus pais, que superam o valor do que ganham.

Eles gastam muito com roupas e com calçados, com saídas à noite. Trata-se de uma série de desejos reprimidos e os jovens chegam com essa ânsia de ter as coisas. Alguns dizem que se tornaram pessoas somente após terem um cartão de crédito.

- O que significa o cartão de crédito para essa parcela da população?

Sciré: Ele significa, primeiro, a chave de acesso a um mundo de facilidades do consumo que o carnê não permite, porque a pessoa pode comprar de uma forma facilitada. Hoje se pode ter tudo, independente da renda. Vejo o cartão hoje como um artefato que circula dentro das próprias famílias e que altera as redes relacionamento entre as pessoas.

Ele reconfigura esses relacionamentos. Pessoas emprestam seu nome a outras para comprar e isso afeta o jogo de relações no mundo popular, porque, muitas vezes, os compromissos não são honrados e muitos sujam os nomes de outros, ocasionando uma quebra nas relações.


- Quais foram as principais alterações de hábitos de consumo que a senhora percebeu neste estudo?

Sciré: Primeiramente, o que mudou foi o acesso aos bens de consumo e uma rotatividade, ou seja, as pessoas trocam seus móveis e eletrodomésticos com uma maior facilidade do que trocavam antes. O que vemos hoje são as casas super bem equipadas, embora por fora as fachadas ainda estejam em construção.

Mais do que isso, temos uma reconfiguração na própria maneira de viver a vida. As pessoas pautam as suas ações futuras com base nos compromissos assumidos com o mercado. Trabalha-se para pagar as dívidas. É uma realidade que está lado a lado com o que está acontecendo em todo o país. Vivemos em uma sociedade de consumo, onde o mercado lança estímulos e as pessoas cedem a eles. O que acontece é que hoje quase tudo é possível.

- Quais são as principais prioridades que as pessoas dão para gerir o orçamento doméstico?

Sciré: A primeira coisa é pagar as contas em dia, de água, luz, alimentação. As pessoas raramente compram alimentos a prazo, porque, por se tratarem de artigos de consumo imediato, raramente são comprados para pagar mais tarde.

Logo depois disso vêm as faturas do cartão de crédito, cada uma dentro da sua prioridades. Em alguns casos é usado o crédito rotativo. Todas as pessoas estão pagando ao menos um eletrodoméstico. Depois do cartão, a prioridade é para o pagamento de empréstimos bancários.

- É comum a utilização dos empréstimos para tapar o buraco que o cartão de crédito faz no orçamento?

Cláudia Sciré: Muitos utilizam os empréstimos nas financeiras para pagar suas dívidas. Com isso, acabam se endividando cada vez mais e a situação se transforma em uma bola de neve.

Tive entrevistados com dívidas que ultrapassavam os R$ 20 mil por causa desse descontrole. O que falta no país também são políticas públicas de educação financeira. As pessoas, muitas vezes, não entendem que o cartão de crédito não é um complemento da renda.

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