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O valor da bagunça

“Messy: The Power of Disorder to Transform Our Lives” Autor: Tim Harford Editora: Riverhead Books 304 páginas. ——————– David Cohen É provável que você não se lembre do discurso em que o pastor americano Martin Luther King, dirigindo-se a dezenas de milhares de pessoas em Washington, disse “normalidade, nunca mais”. Provavelmente porque essa frase, burilada e […]

JACKSON POLLOCK: pintor americano, da corrente expressionista abstrata, era conhecido por seus métodos caóticos de produção / "Convergência", de 1946 / Reprodução
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Da Redação

Publicado em 16 de dezembro de 2016 às 18h34.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h49.

“Messy: The Power of Disorder to Transform Our Lives”
Autor: Tim Harford
Editora: Riverhead Books
304 páginas.

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David Cohen

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É provável que você não se lembre do discurso em que o pastor americano Martin Luther King, dirigindo-se a dezenas de milhares de pessoas em Washington, disse “normalidade, nunca mais”. Provavelmente porque essa frase, burilada e ensaiada várias vezes por Luther King para marcar o momento mais importante da campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos naquele ano de 1963, nunca foi proferida. Em certo ponto de seu discurso, o pastor se desviou do que havia escrito, sentindo que a multidão tinha uma expectativa diferente. E começou a tatear outro caminho. Seus amigos mais próximos em cima do palanque perceberam que ele estava titubeando, procurando o que dizer. Foi então que a cantora Mahalia Jackson gritou: “fale sobre o sonho, Martin”.

Do meio até o final do discurso, Luther King foi criando seu texto na hora: “Eu tenho um sonho, profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai estar à altura de viver o verdadeiro significado de seu lema, de que todos os homens são criados iguais (…) Eu tenho o sonho de que meus quatro filhos vão um dia viver numa nação em que eles serão julgados não pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. É provável que desse discurso você se lembre. “Eu tenho um sonho” entrou para a história como uma das mais importantes peças de retórica do século 20, que moldou o movimento por direitos civis – até então dividido em inúmeras facções – como uma luta pacífica, porém intransigente e incessante.

De forma semelhante, foi de uma situação desconfortável que nasceu uma das peças de maior sucesso do jazz, o Concerto de Colônia, de Keith Jarrett. Este álbum vendeu 3,5 milhões de cópias, um feito inigualado para solos de jazz. Mas quase não aconteceu.

Jarrett havia sido convidado para tocar na casa de ópera da cidade alemã e, ao chegar para o ensaio, encontrou um piano ridiculamente pequeno para o tamanho da sala. Além disso, estava desafinado e algumas teclas falhavam. Bastaram alguns minutos para que o pianista americano desse seu veredito: com aquilo não dava para tocar. Os ingressos já estavam vendidos, o concerto seria dali a poucas horas e uma desesperada produtora, implorando-lhe na rua, sob a chuva, conseguiu que ele voltasse atrás. “Nunca se esqueça”, disse-lhe Jarrett. “Só vou fazer isso por você.”

Obrigado a extrair algo de um instrumento muito aquém de seus padrões, Jarrett passou a criar sons diferentes, adaptando-se à incapacidade de produzir um volume adequado e à necessidade de se ater às teclas centrais. O resultado foi uma obra-prima, o maior sucesso de sua carreira.“Nós frequentemente sucumbimos à tentação de fazer uma abordagem certinha, mas nos daríamos melhor se assumíssemos um certo grau de bagunça”, escreve o economista Tim Harford, colunista do jornalbritânico Financial Times, em seu novo livro, Messy: The Power of Disorder to Transform Our Lives (“Bagunçado: o poder da desordem para transformar nossas vidas”, numa tradução livre).

A tese é razoavelmente simples: um tanto de bagunça é fundamental para a criatividade, para a produtividade, até para a nossa segurança. Não chega a ser uma ideia revolucionária, especialmente para leitores brasileiros, acostumados a progredir em meio a uma certa desordem – apesar do lema estampado em nossa bandeira. O que torna o livro interessante é a quantidade de facetas que Harford consegue apresentar para um tema que, à primeira vista, parece restrito. Ele identifica uma crescente tentativa de ordenar a vida, presente na automação, nas metas que regem o mundo do trabalho, no trânsito… Não se trata de defender o caos. Ocorre que o mundo de hoje pende demais para o lado da ordem, da higiene, do controle. Por isso é necessário, segundo Harford, levantar a bandeira da bagunça.

O perigo da automação

Seu exemplo mais dramático é o desastre do voo 447, da Air France, que ia do Rio de Janeiro para Paris e caiu no meio do oceano. O inquérito demonstrou que os dois co-pilotos inexperientes que dirigiam o avião se atrapalharam quando o sistema automático sofreu um defeito, e o que deveria ter sido um problema de pouco significado (o sistema voltou a funcionar ainda durante o voo) se tornou fatal para 228 pessoas. De acordo com Harford, esse é um caso claro do paradoxo da automação: quanto melhores os sistemas, mais eles cuidam de tudo, e menos prática os humanos terão para intervir quando for necessário.

O paradoxo tem três níveis, diz Harford. Primeiro, o sistema é tão fácil de operar que não afasta os pilotos incompetentes. Em segundo lugar, mesmo os operadores eficientes vão aos poucos se tornando inábeis, pela falta de prática. Finalmente, os sistemas costumam falhar em situações incomuns – justamente aquelas que exigiriam maior habilidade dos humanos para serem resolvidas. A conclusão, obviamente, não é que devemos desistir de sistemas automáticos, e sim que temos de permanecer atentos enquanto eles “trabalham”. Porque o mundo é muito mais caótico do que supõem os algoritmos e, embora eles nos facilitem a vida na maioria das vezes, sempre surgirá algum momento não previsto que pode se tornar bastante desagradável.

A confusão das metas

O campo em que a defesa da desordem está mais bem estabelecida é o da criatividade. Aqui, Harford oferece uma explicação simples e convincente para “adotar um certo grau de confusão”. Soa um pouco como o clichê de “sair da zona de conforto”, mas este é apenas um aspecto da recomendação de Harford. Numa visão mais abrangente, a ideia é de que a bagunça favorece novas associações, cria oportunidades.

Essa era a estratégia do militar alemão Erwin Rommel. Nas duas guerras mundiais, ele se notabilizou por táticas de guerra inesperadas, que surpreendiam seus superiores, mas também confundiam o inimigo. O atual campeão de xadrez, o norueguês Magnus Carlsen, usa tática semelhante. Seus movimentos não são os mais perfeitos, de acordo com análises de computador. Mas ele é especialista em criar situações confusas, fora dos padrões. O jogo fica mais complicado para ele – e ainda mais para o seu oponente.

É claro que nós nem sempre estamos no papel do general nazista ou do prodígio norueguês. Tampouco temos, na maioria das vezes, a bagagem retórica de um Martin Luther King ou o talento musical de um Keith Jarrett. Em outras palavras, se tudo o que você quer é um desempenho aceitável – medíocre, na acepção não pejorativa do termo – faz sentido recorrer à apresentação em Power Point ou a uma mensagem de Natal padronizada. É isso o que significa, afinal, a padronização: criar uma média, que não raro nivela por baixo.

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