O estudante que desafiou Piketty com um comentário em blog
Com apenas 26 anos, estudante do MIT coloca em xeque uma das principais teses de Piketty e defende que explicação para desigualdade está no setor imobiliário
João Pedro Caleiro
Publicado em 1 de abril de 2015 às 19h18.
São Paulo - "O Capital no Século XXI", do francês Thomas Piketty, virou um best-seller improvável com seu retrato do aumento da desigualdade nas últimas décadas.
A tese da obra é que a concentração de renda se retroalimenta porque os mais ricos têm mais capital (como ações e imóveis) e o retorno sobre ele tende a ser maior do que o retorno sobre o trabalho (a já famosa fórmula "r > g").
Em uma madrugada de abril do ano passado, o doutorando do MIT Matt Rognlie, de 26 anos, topou com um post do blog de economia Marginal Revolution sobre o livro e resolveu deixar um comentário.
Rognlie escreveu que a obra do francês negligencia um "ponto sutil, mas absolutamente crucial": a importância da depreciação. Um computador vai se tornar obsoleto e funcionar pior daqui a poucos anos; é um capital que perde valor com o tempo, exatamente o oposto do que ocorre na fórmula básica de Piketty.
O erro, segundo ele, foi simplesmente supor que a maior parte do capital se valorizava com o tempo, quando na verdade esse processo está limitado ao setor imobiliário e não aos outros fatores da produção capitalista, como fábricas e patentes.
Quanto mais importante fica a tecnologia para a produção, mais forte é este efeito. Pense num empresário que precisa reinvestir cada vez mais apenas para se manter atualizado - seu capital tem menos, e não mais, valor ao longo do tempo.
Aqueles que buscavam na automatização e nos robôs uma explicação para o declínio da participação do trabalho na renda precisariam olhar para outro lugar. A parcela do capital está subindo, sim, mas só porque os terrenos se valorizaram demais.
A narrativa básica de Piketty continua válida: há uma parcela de privilegiados que está se apropriando do capital e bloqueando mudanças. O que muda é o alvo.
"Em outras palavras, são os proprietários de terras, e não os líderes corporativos, que estão sugando a riqueza na economia", escreve Noah Smith na Bloomberg.
Isso sugere que um front importante da luta contra a desigualdade pode ser a política urbana. Na medida em que a riqueza flui para os proprietários de terrenos centrais, se torna importante estimular a construção de novas unidades para aumentar a oferta (liberando o zoneamento, por exemplo) ou criar um imposto sobre terrenos para balancear este efeito. A cidade de São Francisco é um exemplo quase perfeito dessa dinâmica.
Repercussão
Depois da atenção dada a seu comentário, Matthew teve a oportunidade de ampliar sua crítica em um trabalho comissionado pelo prestigiado instituto Brookings - provavelmente a primeira vez que isso aconteceu a partir de um comentário de blog.
Os resultados já estão na web e serão apresentados nesta sexta-feira diante de gente como Robert Solow, prêmio Nobel de Economia, que fará uma crítica da análise - outra rara honra para um estudante que ainda nem terminou o doutorado.
O caso lembra o episódio quando um aluno da Universidade de Massachusetts Amherst encontrou erros básicos nos dados de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff que, supostamente, provavam a relação entre alto endividamento e crescimento lento.
Tudo isso não significa, também, que o trabalho de Piketty perdeu relevância de uma hora para a outra. Seu trabalho empírico, apesar de também ter sido alvo de críticas pontuais, tem um alcance inédito. A dúvida é não sobre o que a obra diz sobre o passado, e sim onde sua análise desemboca: em uma concentração cada vez maior da riqueza. Rognlie sugere um futuro menos sombrio.
Poucos contestariam hoje que a desigualdade está, sim, aumentando de forma expressiva, assim como a parcela do capital. O fato de que a concentração de riqueza vem principalmente dos imóveis não muda o fato de que ela é, efetivamente, uma concentração de riqueza.
A divergência principal é (e sempre foi) sobre as origens desta dinâmica, para onde ela está caminhando e quais políticas públicas poderiam (ou não) reverter esse processo - mas este é um desafio tão político quanto acadêmico.
São Paulo - "O Capital no Século XXI", do francês Thomas Piketty, virou um best-seller improvável com seu retrato do aumento da desigualdade nas últimas décadas.
A tese da obra é que a concentração de renda se retroalimenta porque os mais ricos têm mais capital (como ações e imóveis) e o retorno sobre ele tende a ser maior do que o retorno sobre o trabalho (a já famosa fórmula "r > g").
Em uma madrugada de abril do ano passado, o doutorando do MIT Matt Rognlie, de 26 anos, topou com um post do blog de economia Marginal Revolution sobre o livro e resolveu deixar um comentário.
Rognlie escreveu que a obra do francês negligencia um "ponto sutil, mas absolutamente crucial": a importância da depreciação. Um computador vai se tornar obsoleto e funcionar pior daqui a poucos anos; é um capital que perde valor com o tempo, exatamente o oposto do que ocorre na fórmula básica de Piketty.
O erro, segundo ele, foi simplesmente supor que a maior parte do capital se valorizava com o tempo, quando na verdade esse processo está limitado ao setor imobiliário e não aos outros fatores da produção capitalista, como fábricas e patentes.
Quanto mais importante fica a tecnologia para a produção, mais forte é este efeito. Pense num empresário que precisa reinvestir cada vez mais apenas para se manter atualizado - seu capital tem menos, e não mais, valor ao longo do tempo.
Aqueles que buscavam na automatização e nos robôs uma explicação para o declínio da participação do trabalho na renda precisariam olhar para outro lugar. A parcela do capital está subindo, sim, mas só porque os terrenos se valorizaram demais.
A narrativa básica de Piketty continua válida: há uma parcela de privilegiados que está se apropriando do capital e bloqueando mudanças. O que muda é o alvo.
"Em outras palavras, são os proprietários de terras, e não os líderes corporativos, que estão sugando a riqueza na economia", escreve Noah Smith na Bloomberg.
Isso sugere que um front importante da luta contra a desigualdade pode ser a política urbana. Na medida em que a riqueza flui para os proprietários de terrenos centrais, se torna importante estimular a construção de novas unidades para aumentar a oferta (liberando o zoneamento, por exemplo) ou criar um imposto sobre terrenos para balancear este efeito. A cidade de São Francisco é um exemplo quase perfeito dessa dinâmica.
Repercussão
Depois da atenção dada a seu comentário, Matthew teve a oportunidade de ampliar sua crítica em um trabalho comissionado pelo prestigiado instituto Brookings - provavelmente a primeira vez que isso aconteceu a partir de um comentário de blog.
Os resultados já estão na web e serão apresentados nesta sexta-feira diante de gente como Robert Solow, prêmio Nobel de Economia, que fará uma crítica da análise - outra rara honra para um estudante que ainda nem terminou o doutorado.
O caso lembra o episódio quando um aluno da Universidade de Massachusetts Amherst encontrou erros básicos nos dados de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff que, supostamente, provavam a relação entre alto endividamento e crescimento lento.
Tudo isso não significa, também, que o trabalho de Piketty perdeu relevância de uma hora para a outra. Seu trabalho empírico, apesar de também ter sido alvo de críticas pontuais, tem um alcance inédito. A dúvida é não sobre o que a obra diz sobre o passado, e sim onde sua análise desemboca: em uma concentração cada vez maior da riqueza. Rognlie sugere um futuro menos sombrio.
Poucos contestariam hoje que a desigualdade está, sim, aumentando de forma expressiva, assim como a parcela do capital. O fato de que a concentração de riqueza vem principalmente dos imóveis não muda o fato de que ela é, efetivamente, uma concentração de riqueza.
A divergência principal é (e sempre foi) sobre as origens desta dinâmica, para onde ela está caminhando e quais políticas públicas poderiam (ou não) reverter esse processo - mas este é um desafio tão político quanto acadêmico.