Cofre com 8 milhões de moedas na Suíça (Divulgação/JamesEdition)
Da Redação
Publicado em 29 de julho de 2016 às 19h19.
São Paulo - No imaginário popular, os paraísos fiscais servem basicamente para desviar dinheiro de origem criminosa.
Mas eles também são usados por empresas multinacionais e indíviduos super-ricos para evitar ao máximo o pagamento de impostos, como mostraram os vazamentos de contas do HSBC na Suíça e de acordos fiscais em Luxemburgo.
O impacto econômico é grande: cada bilhão desviado de forma sorrateira é um bilhão que escapa de ser taxado - e quem não tem acesso a estas alternativas é que acaba pagando o preço.
É este o tema de "The Hidden Wealth Of Nations" ("A Riqueza Escondida Das Nações", em tradução livre), de Gabriel Zucman, economista francês de 28 anos que já passou pela London School of Economics e hoje dá aula na Universidade da Califórnia em Berkeley.
"É provavelmente o melhor livro já escrito sobre paraísos fiscais e o que podemos fazer em relação a eles", diz o prefácio de Thomas Piketty, economista francês celebrado pelo bestseller "O Capital no Século XXI" e que orientou o doutorado de Zucman na Paris School of Economics.
Por telefone, Zucman conversou com EXAME.com sobre o funcionamento e importância dos paraísos fiscais. Veja a entrevista a seguir:
EXAME.com - Qual é uma boa definição de paraíso fiscal? Quando entrevistei o ministro de Finanças de Luxemburgo, ele negou a classificação porque disse que o país não quebrava nenhum tratado internacional.
Gabriel Zucman – Um paraíso fiscal é um país que rouba receita ao tornar fácil para que indivíduos ou empresas não paguem impostos em seus próprios países. E por essa definição, Luxemburgo é um grande paraíso fiscal.
EXAME.com – Seu cálculo é que 8% da riqueza financeira do mundo está em paraísos fiscais. Como você chegou nesse número?
Zucman – Há dados oficiais do Banco Central suíço sobre quanto os estrangeiros tem nos bancos do país: US$ 2,4 trilhões. E a riqueza nos paraísos fiscais cria anomalias estatísticas nos balanços porque no nível global, você acaba tendo mais passivos do que ativos.
Se a riqueza dos paraísos fiscais é investida, por exemplo, em títulos nos EUA, isso é registrado como passivo lá, mas nenhum outro país registra isso como ativo. Foi somando essas discrepâncias que chegamos aos US$ 7,6 trilhões, ou 8% da riqueza financeira.
EXAME.com – Houve alguma mudança desde a crise de 2008?
Zucman – O estoque de riqueza em paraísos fiscais cresceu 25% desde então, o que pode ser atribuído a dois fatores. O primeiro é o crescimento expressivo das fortunas dos indivíduos com mais de US$ 50 milhões, que são os grandes clientes destes bancos estrangeiros.
A outra são os grandes fluxos dos países em desenvolvimento, da Ásia à América Latina e particularmente da Rússia. Eles mais do que compensaram a pequena queda nos ativos dos principais países europeus, como Alemanha e França.
EXAME.com – Sigilo e evasão fiscal são questões diferentes, mas conectadas. No caso brasileiro, com políticos importantes pegos com contas na Suíça, o segredo tem mais destaque e a cooperação parece ter melhorado. Estou correto?
Zucman – Alguns países que passaram muito tempo se recusando a dividir qualquer tipo de informação agora prometem enviá-las, mas não está claro que o compartilhamento automático será implementado e vai funcionar bem.
Sobre a parte de evitar impostos, há pouco progresso. Nada acontece em Bermudas, por exemplo: não há produção, não há vendas, mas há um montante enorme de lucros sendo registrados como se tivessem origem lá.
Claro que cada país tem o direito de escolher sua própria taxa de impostos, mas nenhum tem o direito de roubar a receita de outros países, facilitar corrupção, permitir que criminosos e elites corruptas escondam sua riqueza ou facilitar com que companhias internacionais evadam impostos ao transferirem artificialmente a origem de seus lucros.
EXAME.com – Seu livro mostra que há coordenação e especialização entre os próprios paraísos fiscais. Como isso acontece?
Zucman – Para indivíduos, o primeiro passo é a criação de empresas, fundos ou holdings que não tem beneficiários diretos identificados. Nestes territórios é muito fácil criar empresas de forma rápida e barata e sem exigência de identificação.
O segundo passo é o envio de fundos para os bancos tradicionais na Suíça, Hong Kong ou Singapura. O dinheiro que chega é investido através de fundos em mercados globais, e muitos desses fundos estão incorporados em países como Luxemburgo ou Irlanda.
No caso de empresas que querem evitar impostos, geralmente há vários paraísos fiscais envolvidos, o que permite a elas se beneficiarem das inconsistências nos tratados de taxação dupla ou nas definições de lucro e residência nos diferentes países.
Um exemplo famoso é o do Google, que transferiu sua propriedade intelectual para sua subsidiária nas Bermudas e utiliza uma subsidiária na Irlanda para coletar seus lucros na Europa. Essa subsidiária irlandesa manda os royalties para a holding nas Bermudas através de uma corporação compartilhada na Holanda. Mas cada empresa tem um esquema específico.
EXAME.com – Se os paraísos fiscais tem tantos perdedores e tão poucos ganhadores, por que é tão difícil promover mudanças?
Zucman - Os grandes vencedores são os indivíduos ricos e os acionistas das empresas que conseguem pagar muito pouco imposto.
Os grandes perdedores são o resto de nós, porque os impostos que eles evitam tem que ser compensados por impostos mais altos sobre a classe média ou pela menor disponibilidade de serviços públicos como educação, saúde e infraestrutura.
É esta a razão pela qual é tão difícil fazer progresso. Há muita gente interessada em manter esse status quo, seja por razões políticas ou econômicas.
EXAME.com – Na sua opinião, o que está certo e o que está errado com as últimas propostas do G20 e da OCDE para combater o problema? Há quem diga que o princípio da reciprocidade acaba trabalhando contra os países mais pobres.
Zucman – Você está certo: a grande limitação do compartilhamento automático de informação bancária, que será implementado até 2017/2018, é que ele só vale para alguns países, principalmente ricos. Muitos países em desenvolvimento não vão se beneficiar, e esta é uma das razões pelas quais a riqueza continua saindo deles.
Esta ideia de que você pode apenas pedir educadamente para que os banqueiros de outros territórios revelem sinceramente seus clientes é muito ingênua. Estas são pessoas que ajudaram na evasão por décadas e ficaram muito ricas no processo.
O que você precisa é mudar incentivos, tornando muito custoso e muito arriscado participar destas atividades. O grande limitador da abordagem da OCDE é que não há sanções claramente definidas para países, instituições e banqueiros que não colaborem ou não apliquem o acordo corretamente. Mais importante do que tratados e acordos é mudar os incentivos.
EXAME.com – E como fazer isso?
Zucman – Uma forma é com sanções financeiras, como reter impostos em dividendos globais ou pagamentos de juros. É o que os EUA fez através do ato FATCA [Foreign Account Tax Compliance Act].
Outra forma é aplicando tarifas extras de comércio sobre um paraíso fiscal não colaborativo que sejam proporcionais ao custo que eles estão impondo sobre outros países.
É importante ter sanções a bancos condenados por ajudar na evasão fiscal. Os EUA tem aplicado multas em vários, mas deixa que eles continuem operando. É um problema, e bancos que violam a lei nessa escala não deveriam poder continuar fazendo negócios.
EXAME.com – Mas como resolver isso politicamente? Tarifas comerciais não iriam contra as regras da OMC, por exemplo?Um país minúsculo como Luxemburgo tem conseguido se safar mesmo dentro de um bloco forte como a União Europeia.
Zucman – Mesmo na lógica da OMC, uma empresa ou pessoa que evade impostos ou fere a legislação do próprio país está ganhando uma vantagem competitiva indevida. Se você tem um território onde leis não se aplicam e isso prejudica outros, você pode pedir compensação.
A noção de que grandes países como Brasil ou França não podem fazer nada contra territórios minúsculos como as Ilhas Marshall é difícil de entender.
Há 10 anos, os grandes especialistas em impostos lhe teriam dito que a troca automática de informações era algo utópico, impossível, que nunca aconteceria, e que Suíça e Luxemburgo nunca concordariam em cooperar. Os progressos na OCDE e de leis como a americana mostram que dá para fazer muito em pouco tempo; a chave é colocar pressão real.