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Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
A questão de um terceiro mandato para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser vista, hoje, de duas maneiras. Ou essa história toda não tem a menor importância, porque Lula deixará mesmo a Presidência no dia estabelecido pela Constituição, como tem prometido todas as vezes que toca no assunto; em tal caso, ninguém mais se lembrará, em 2010, de que essa era uma das discussões mais notáveis do remoto ano de 2008, junto com as despesas com os cartões corporativos do governo federal (tipos A e B), as dúvidas sobre a existência ou não de obras do PAC e o estado de nervos da ministra Dilma Rousseff. Ou, então, tem importância demais, porque o presidente, daqui até lá, terá conseguido e decidido se candidatar mesmo à re-reeleição; em tal caso, é possível que continue no cargo até 2014 ou sabe-se lá até quando. Vai ou não vai? Não dá, realmente, para saber ao certo. Haverá muita conversa, muito palpite e muita consulta à ciência política, mas o fato é que nem o próprio Lula, hoje, sabe se quer ou não ficar e, no caso de acabar querendo, se pode. Por enquanto tudo é chute -- e, chute por chute, melhor chamar os universitários.
Presidentes da República sempre têm diante de si uma lista muito grande de situações onde são tentados, entre as diversas decisões possíveis, a tomar a pior de todas. O terceiro mandato, no caso de Lula, é um clássico do gênero. Se terminar seu governo, no dia 31 de dezembro de 2010, com um balanço geral de resultados mais ou menos semelhante ao que pode mostrar hoje, tem grandes chances de deixar no esquecimento tudo o que aconteceu de errado nos últimos anos e ser reconhecido, ao final das contas, como um presidente que deu certo. Se quiser ficar, tem chances maiores ainda de arrumar um desastre, para si próprio e para o país. Já será muito ruim se tentar e não conseguir. Pior ainda será se ele sair mesmo candidato -- aí se entra em território desconhecido para uma viagem sem mapa, na qual tudo o que tende a dar errado vai provavelmente acabar dando errado.
O problema, nessa maneira de ver as coisas, é o ponto de vista. Do ponto de vista de Lula, a situação pode muito bem parecer diferente. Ser reconhecido como um presidente de sucesso depois que sair do governo? Pelo jeito, não se trata de algo capaz de deixá-lo realmente animado. Afinal, isso ele já acha que é há muito tempo; na verdade, pelo que diz, está convencido de que ninguém fez um governo melhor que o dele no Brasil ao longo dos últimos 500 anos. Ao mesmo tempo, não está nem um pouco convencido de que qualquer figura de seu partido tenha chances reais de ganhar as eleições de 2010. Vive dizendo o contrário, é claro, mas sabe muito bem que o único líder político do PT que cresceu durante seus anos no Palácio do Planalto foi ele mesmo; todos os demais nomes supostamente fortes do partido sumiram de cena ou diminuíram de tamanho, e não apareceu ninguém para substituí-los. É pouco provável, também, que acredite que algum companheiro ou aliado, uma vez sentado em sua cadeira, passe os quatro anos seguintes trabalhando todo dia para fazê-lo voltar à Presidência.
Em compensação, Lula tem certeza de que não existe, entre os 190 milhões de brasileiros, um único cidadão com força para ganhar dele caso seja candidato a mais um período. Talvez possa estar enganado nisso, mas acha que não está -- não com a popularidade cada vez maior que as pesquisas lhe atribuem. Quanto a suas convicções pessoais em relação a questões como processo democrático, alternância no poder e outras virtudes existentes no mundo das idéias, não dá para ver com verdadeira segurança o que o presidente, no fundo, acha disso tudo. Um dia diz uma coisa, outro dia diz o contrário; garante que não aceita mudanças na lei em benefício próprio, mas deixa que cada vez mais gente à sua volta fique propondo exatamente isso, quando é óbvio que essa história toda nem sequer teria começado se ele não tivesse permitido que começasse. Seria muito simples, também, encerrar de uma vez por todas o assunto; basta, para tanto, que Lula mostre aos pregadores do terceiro mandato que está falando sério em seu discurso de reprovação ao continuísmo. Mas acontece justamente o contrário. Atribuiu-se ao presidente, dias atrás, a afirmação de que iria "romper com o PT" se o partido desse seu apoio a propostas de modificar a Constituição de forma a permitir-lhe a tentativa de buscar mais um mandato. Ninguém acreditou. Todo mundo teria acreditado, é claro, se fosse mesmo para acreditar. Sendo o presidente, na sua própria definição, uma "metamorfose ambulante", é mais prático esperar até que ele decida para onde vai; enquanto isso, nem o mais crédulo dos petistas ou dos membros da "base aliada" acha que vai ganhar boa nota, no boletim pessoal de Lula, falando contra o terceiro mandato.
A articulação em favor do terceiro mandato vai continuar viva enquanto o principal interessado tiver esperanças de que o Congresso venha a aprovar, mais adiante, a mudança indispensável para isso. Se chegar à conclusão de que não dá ou de que os riscos da aventura são altos demais, a articulação morre. É o que poderia acontecer de melhor. O Brasil já tem, no momento e para o futuro, uma quantidade de problemas mais do que suficiente. Não há nenhuma necessidade, portanto, de inventar um problema que até agora não existe.
Bolsa-dossiê
A funcionária pública Erenice Guerra, secretária executiva da Casa Civil e assessora de confiança da ministra Dilma Rousseff, é uma dessas pessoas que muito pouca gente conhece, até que muita gente fica conhecendo -- e, quando isso acontece, em geral é porque alguma coisa deu errado. Erenice tornou-se conhecida porque foi ela a responsável pela produção do dossiê (ou, como quer o governo, banco de dados, ferramenta de trabalho, estudo, levantamento ou qualquer outra palavra que não seja "dossiê") reunindo informações sobre as despesas feitas pela Presidência da República no governo anterior e pagas com cartão de crédito corporativo e dinheiro do Erário. Tornou-se ainda mais conhecida, dias atrás, quando se informou que fora nomeada para uma vaga no Conselho Fiscal do BNDES, em que receberá 3 500 reais a cada 30 dias pelo trabalho de fazer-se presente às reuniões mensais do órgão. Vai receber, também, o reembolso das despesas que terá em suas viagens de Brasília ao Rio de Janeiro, onde são realizadas as reuniões.
É realmente um problema. O BNDES é obrigado por lei a manter um Conselho Fiscal; o Conselho Fiscal tem de se reunir uma vez por mês; as pessoas que participam dessas reuniões têm de ser pagas, pois não seria realista esperar que aceitassem comparecer de graça e, menos ainda, que pagassem do próprio bolso os gastos para ir até lá. Ao mesmo tempo, pela lógica do cidadão comum, fica difícil achar que essa remuneração não seja, simplesmente, um prêmio mensal para quem a recebe. Trabalho, com certeza, não é. O presidente da República, que até os 29 anos de idade foi operário e se orgulha de conhecer melhor do que ninguém, neste país, o significado do verbo "trabalhar", jamais descreveria como "trabalho" o ato de ir uma vez por mês a uma reunião no Rio, com ar-condicionado, água gelada e cafezinho, e na qual a única obrigação de quem vai é entrar mudo e sair calado. Menos ainda diria que isso vale 3 500 reais -- não na vida de um trabalhador de verdade, em São Bernardo do Campo ou em qualquer lugar do mundo.
Prêmio por quê? O governo alega que a nomeação da secretária executiva da ministra Dilma foi decidida antes de se conhecer sua obra na montagem do dossiê -- ou banco de dados etc. Não se sabe bem, nesse caso, por que só foi anunciada depois. Talvez, como insiste o governo, os 3 500 reais extras que a funcionária vai receber por mês não sejam um presente por serviço prestado -- mas é algo tão parecido com isso que não dá, realmente, para perceber qual é a diferença. Do jeito que as coisas ficaram, a impressão é que acaba de ser criado o bolsa-dossiê. Vale a pena. Com ele, Erenice vai consumir, sozinha, o equivalente a 35 bolsas-família.