Infância: com a pandemia, Brasil perdeu uma década de progresso no Índice de Capital Humano (ICH) do Banco Mundial (Jonne Roriz/Bloomberg/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 9 de julho de 2022 às 08h00.
Última atualização em 9 de julho de 2022 às 11h50.
Uma criança brasileira nascida em 2019, ao completar 18 anos, terá aproveitado somente 60% de seu capital humano potencial, em média. O número deve cair ainda para perto de 50% com os efeitos da pandemia, com o Brasil voltando ao patamar que tinha em 2009.
Esse é o resultado principal de um novo estudo do Banco Mundial divulgado nesta semana, que aponta que o produto interno bruto (PIB) do Brasil poderia mais que dobrar se as crianças desenvolvessem seu potencial ao máximo e o país chegasse ao pleno emprego. O desafio passa não só por mais oportunidades e melhor qualidade na educação, mas pelo aproveitamento de fato dos talentos nacionais — mulheres, por exemplo, até acumulam mais capital humano que homens, mas não conseguem ter esse potencial absorvido pelo mercado de trabalho.
O argentino Pablo Acosta, líder de Desenvolvimento Humano do Banco Mundial no Brasil, e o brasileiro Ildo Lautharte Junior, economista de Prática Global de Educação da instituição, falaram à EXAME sobre os alertas do índice — e o que governos e empresas podem fazer para diminuir as lacunas. A boa notícia: o Brasil já tem um arsenal de boas políticas e dados para chegar lá. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
O que vocês destacariam dentre os resultados do Índice de Capital Humano (ICH) do Brasil? Algo surpreendeu nesse sentido?
ACOSTA — Algo com o qual fiquei surpreso foram as disparidades. Muitos relatórios já falavam sobre como o Brasil tem muita desigualdade, mas é sempre importante ter essa medida sobre o quanto. Em particular, eu diria que as diferenças por grupos raciais é bastante notória, não somente nos níveis atuais, mas no progresso ao longo da última década (veja no gráfico abaixo). E regionalmente, também: há municípios com indicadores de capital humano parecidos com os da Europa, enquanto temos municípios com indicadores iguais aos dos mais pobres do mundo.
LAUTHARTE — Também me impressionou que o Brasil, além de desenvolver só uma parte do potencial de capital humano, tem muita dificuldade em absorver os talentos. Quando se considera participação no mercado, o indicador de capital humano sai de 60% e chega a 32%, e isso considerando o mercado não só formal, mas informal também. A mensagem vai em linha com o argumento de que os países desenvolvidos têm sucesso não só em promover talentos dos indivíduos e fazê-los florescer em diversos contextos, mas também em conseguir alocar bem esses talentos.
Vocês mencionam no relatório como o Brasil teve sucesso em ampliar o acesso à educação nas últimas décadas. Por que isso não tem sido suficiente?
ACOSTA — Há uma história satisfatória no Brasil na acumulação do capital humano, com melhorias na educação, redução da mortalidade infantil, melhorias em nutrição… O que acontece é como esse capital humano é aproveitado. As mulheres, por exemplo, acumulam mais capital humano que os homens, mas são penalizadas de alguma maneira quando chegam ao mercado de trabalho, porque o capital humano usado dos homens é maior. São inúmeros fatores que explicam isso, e não só no Brasil, como em todo o contexto da América Latina, o trabalho informal, muitas mulheres tendo de cuidar da família, a discriminação. O mesmo acontece nos grupos afrodescendentes, quando vão buscar trabalho depois da graduação.
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LAUTHARTE — Eu diria que existem desigualdades de barreira na entrada e na saída. Muitas começam já no útero, com menos visitas de pré-natal, maior probabilidade de prematuridade… E vão se acumulando. Quando culmina no mercado de trabalho, todas essas dificuldades ao longo do processo afloram. O Brasil evoluiu muito nisso: a política de cotas é estudada no mundo inteiro como forma de tentar suprir essas barreiras institucionais e históricas que o Brasil teve. Mas é todo um processo político de engajamento, discussão, cuidado das famílias.
Temos falado muito sobre a "fuga de cérebros". É possível melhorar os indicadores de capital humano do Brasil mesmo na atual crise econômica duradoura, com falta de empregos até para quem está formado?
LAUTHARTE — Essa questão vai ao centro de por que estamos falando de capital humano, de por que é importante aumentar o indicador, por que queremos fazer ser igual ao do Japão, que é 81%. Enquanto os indivíduos vão acumulando habilidades, evidências mostram que estão relacionadas com maior renda futura, maior estabilidade. Mas, também, estão relacionadas a resolver problemas que a sociedade enfrenta, questões nas empresas, propostas de negócios novos que começam a surgir. Isso é essencial exatamente para o país se desenvolver e superar crises, principalmente em um mundo tão dinâmico.
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Mas a grande dificuldade no Brasil, ao menos no nível educacional, é que temos uma massa de pessoas que ainda não apresenta os níveis mais fundamentais de aprendizado e habilidade. Temos um indicador de pobreza de aprendizagem no Banco Mundial, por exemplo: o quanto uma criança de 10 anos consegue ler um parágrafo adaptado para sua idade. O Brasil sempre fica em 50%, 60%. Não tem nenhum país europeu com mais de 8%. Ou seja, quando a gente está em um nível tão básico, não se consegue fazer com que uma grande massa do talento nacional passe para outros estágios. E assim, não conseguimos acumular as habilidades que realmente fazem as coisas se movimentarem.
O relatório fala bastante sobre educação como uma via de saída para aproveitar esse capital, mas não há limitações nisso para famílias muito pobres? O quanto o Brasil precisa apostar também em outras políticas, resolvendo questões sociais, de pobreza, saúde?
ACOSTA — Esse é o principal desafio, e aqui temos o debate sobre como fazer isso em um contexto de mais dificuldade de recursos, em que eficiência será fundamental. O Brasil tem um bom histórico em aumentar a sobrevivência infantil, por exemplo, questões de nutrição hoje não são um problema tanto quanto em outros países. Há outras questões no horizonte, como ter um sistema de saúde mais eficiente para uma população envelhecendo. Mas o Brasil tem muito a dizer, sendo um país com transferências condicionadas, o Bolsa Família, que virou modelo para outros países do mundo, reformas no mercado de trabalho… Embora ainda haja muito mais para fazer.
O relatório aponta várias boas iniciativas, como a educação em vários municípios da região Nordeste. Que outros exemplos funcionaram no Brasil para reduzir essa lacuna?
ACOSTA — Falando de educação, temos toda a reforma do Fundeb [fundo de financiamento da educação básica], que permite ter recursos para municípios que têm menos possibilidade de consegui-los através dos tributos. Também toda a cultura do Brasil de medir coisas, documentar, é muito importante: temos o Ideb [um dos indicadores de qualidade na educação], Cadastro Único, um monte de instrumentos que funcionam como um termômetro. Ao final do dia, é o que você precisa para fazer política. Do lado da saúde, também há o SUS, que chega em toda parte. Tem de melhorar a qualidade, melhorar o acesso, torná-lo mais eficiente; mas o sistema existe, não é preciso inventar tudo de novo. Acho que os brasileiros têm de ter muito orgulho de muitas políticas. O relatório tenta mostrar isso também a nível subnacional, como outros municípios podem aprender com políticas que deram certo.
Que mensagem fica para as prioridades do Brasil em recuperar esse atraso, tanto da pandemia quanto os desafios que já existiam antes?
LAUTHARTE — O objetivo principal do relatório é colocar as pessoas no centro do debate. Trazer a criança para o centro do processo de desenvolvimento, em uma ideia de recomposição dos impactos da pandemia. O relatório deixa isso bastante claro: tentar pensar só em uma bala de prata não vai dar o resultado esperado. A formação de talentos e habilidades é um processo. Não podemos deixar de lado todo um histórico de desigualdade com o qual temos de lidar para fazer esse talento ser fornecido.
O Brasil tem uma boa bagagem que outros países da América Latina não têm. Ainda assim, comentamos que são muitas crises empilhadas. O objetivo é voltar para 2019. E em 2019 a gente já tinha um nível baixo. É preciso voltar de forma mais sólida, mais consistente. Estamos trabalhando para que esse desperdício de talento não seja o caso para gerações futuras. O relatório faz uma fotografia do futuro — o potencial que uma criança vai perder em 20 anos se tudo ficar como está hoje. O objetivo é, até lá, mudar essa fotografia.