Eles vão aprontar outra em Wall Street
Nas últimas três décadas, Wall Street funcionou como uma oligarquia que manipulou o governo para aumentar seu poder - quem diz é um ex-economista-chefe do FMI
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
Uma década atrás, a advogada americana Brooksley Born percorreu os corredores de Washington com uma modesta proposta. À época, Brooksley presidia a agência responsável por supervisionar as bolsas de mercadorias e futuros, e a fonte de seu incômodo era o opaco mercado de derivativos - instrumentos financeiros que vinham ganhando espaço de forma acelerada e sobre os quais os governos tinham pouco ou nenhum controle. A proposta de Brooksley era simples: aumentar a transparência do mercado de derivativos para evitar o acúmulo de risco no sistema financeiro. A tese, no entanto, foi bombardeada. Alan Greenspan, então todopoderoso presidente do banco central americano, foi contra. A equipe econômica do governo, liderada por Robert Rubin e Larry Summers, esbravejou. A ideia, afinal, ia de encontro àquilo que parecia uma das origens da prosperidade americana: a celebrada máquina de inovação de Wall Street. "Treze banqueiros estão no meu escritório, e eles dizem que sua proposta pode desencadear a maior crise financeira desde a Segunda Guerra Mundial", disse Summers a Brooksley. Diante dessa reação, a tese acabou na gaveta. E, sem regulação, o mercado de derivativos cresceu exponencialmente e deu bilhões de dólares em lucros aos bancos, até implodir em 2008 e colaborar para aquela que foi - essa, sim - a maior crise financeira desde a Segunda Guerra.
Como o grupo de banqueiros reunidos à frente de Larry Summers conseguiu convencer o país de que aquilo que era bom para Wall Street era bom para os Estados Unidos - quando, na verdade, não era? Esse é o tema do recémlançado 13 Bankers, livro escrito por Simon Johnson e James Kwak. Da enxurrada de livros que abordam a crise financeira de 2008 e suas consequências, 13 Bankers é o mais original. Seu objetivo não é descrever, minuto a minuto, as reuniões que decidiram o futuro da economia mundial - mas sim entender como Wall Street cresceu e acumulou poder a ponto de fazer o governo americano seu refém nos dias do Grande Pânico de 2008. Para os autores, o sistema financeiro americano operou, por mais de três décadas, como uma oligarquia daquelas normalmente vistas em países emergentes: um grupo que "ganha poder político devido a seu poder econômico e usa esse poder político para seu próprio benefício."
A diferença, eles apontam, é de método. Wall Street não usa corrupção descarada ou chantagem, como numa república de bananas, mas ganha influência de maneira muito mais sutil e complexa - garantindo emprego para ex-funcionários do governo, financiando campanhas e, principalmente, criando no público e entre os políticos a convicção de que Wall Street está, na verdade, trabalhando pelo bem comum. "Nos Estados Unidos, gostamos de pensar que oligarquias são problema de outros países", escrevem os autores. "Nós podemos até ter o sistema político mais avançado do mundo. Mas temos também a mais avançada oligarquia." Johnson, execonomista- chefe do Fundo Monetário Internacional e hoje professor do Massachusets Institute of Technology, estudou as crises financeiras dos anos 90 e concluiu que países como Indonésia e Rússia foram levados à crise em razão da influência perniciosa de suas oligarquias. Naquela época, segundo Johnson, os americanos viam com clareza que a estrutura de poder desses grupos tinha de ser quebrada para salvar cada país. Após a crise de 2008, porém, nada foi feito para mudar o perfil de Wall Street, com seus bancos "grandes demais para quebrar" e seu gosto por risco. Caso a inação se mantenha, argumentam os autores, a próxima crise terá exatamente as mesmas origens da última.
Até os anos 70, o mercado financeiro americano era tedioso. Amarrados pela forte regulação criada na ressaca da Grande Depressão, nos anos 30, os bancos assumiam poucos riscos. Era proibido, por exemplo, misturar bancos de investimento (que assessoram empresas em fusões e negociam títulos) com bancos de varejo (nos quais poupadores guardam seu dinheiro). O resultado era um sistema seguro, pouco sujeito a crises cataclísmicas, como a vista em outubro de 1929, e pouco rentável. Mas nos anos 70, após décadas de estabilidade, a intervenção estatal no mercado financeiro começou a sair de moda. Uma onda de inovação abriu espaço para o surgimento de instrumentos financeiros, como os derivativos, com enorme potencial de lucro. Faltava, porém, l ivrar Wall Street das amarras estatais. E, para isso, era preciso vencer no campo ideológico - e a vitória veio aos poucos. Na academia, a tese de que os mercados são eficientes ganhava espaço - e, se eles são mesmo eficientes, Wall Street deve ser livre para fazer o que bem entender. Novos produtos, como títulos lastreados em hipotecas, também ajudaram a lustrar sua imagem, já que os bancos estavam aumentando o acesso ao crédito imobiliário. Finalmente, o Partido Democrata, antigo opositor da liberalização, foi tomado pelas ideias de Robert Rubin, ex-presidente do Goldman Sachs, secretário do Tesouro de Bill Clinton e mentor de seus sucessores Larry Summers e Tim Geithner. Washington passou a compartilhar a visão de mundo de Wall Street. A regulação começou a desmoronar. Para Johnson e Kwak, essa foi a origem da crise de 2008.
Livre, Wall Street inchou. Uma série de fusões criou megabancos como o JP Morgan Chase e o Citigroup. Os novos instrumentos financeiros ajudaram Wall Street a entrar num período de lucros inéditos. A promessa de bônus milionários fez com que o mercado financeiro começasse a atrair os melhores talentos das universidades americanas - de 1980 em diante, os salários de profissionais de finanças descolaram do resto. Escrevem Johnson e Kwak: "Os grandes bancos criaram um clima regulatório que permitiu a eles embarcar numa orgia de inovação e exposição ao risco que criaria a maior bolha da história moderna". Ao fim do processo, os bancos eram tão grandes e o sistema financeiro tão interconectado que os governos não tiveram alternativa senão usar o dinheiro do contribuinte para salválos. Em 1978, os bancos comerciais americanos detinham ativos que correspondiam a 53% do PIB do país. Em 2007, a proporção chegou a 84%.
Para Johnson e Kwak, a quebradeira de 2008 tornou esse estado das coisas ainda pior. Os bancos que sobreviveram estão maiores e mais poderosos. Seu modus operandi também não mudou: o apetite pelo risco segue imenso e os bônus recordes continuam lá. O que fazer, então, para evitar uma nova crise? Depois de aprovar a reforma da saúde, o Congresso americano parece disposto a passar um pacote de mudanças na regulação do sistema financeiro. Para os au tores de 13 Ban kers, porém, as iniciativas defendidas pelo governo Barack Obama pecam pela total timidez. Johnson e Kwak defendem uma saída considerada radical: a criação de limites para o tamanho das instituições financeiras. Nenhum banco comercial poderia acumular ativos superiores a 4% do PIB; o limite para bancos de investimento seria de 2% do PIB. E quem já chegou lá deve ser quebrado em pedaços - a medida atingiria os seis maiores bancos americanos. Bancos com esse tamanho poderiam falir sem levar o resto do sistema junto. Assim, nenhuma instituição financeira operaria com a certeza de que o contribuinte a salvaria em caso de crise, o que forçaria Wall Street a arriscar menos e a se contentar com lucros menores. Washington, porém, não parece cogitar a ideia. Para Johnson e Kwak, essa é uma garantia de que a meia dúzia de banqueiros que sobraram vai acabar aprontando outra.