Economia

Direito adquirido não será empecilho a reforma da Previdência, dizem juristas

A reforma da Previdência apresentada como prioridade para o primeiro ano do governo Lula ressuscitou um velho argumento contra mudanças: o respeito aos direitos adquiridos. Ele serviu, durante os oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, como escudo para quem era contra as reformas da Previdência e trabalhista. Mas o que diz a Constituição sobre […]

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h28.

A reforma da Previdência apresentada como prioridade para o primeiro ano do governo Lula ressuscitou um velho argumento contra mudanças: o respeito aos direitos adquiridos. Ele serviu, durante os oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, como escudo para quem era contra as reformas da Previdência e trabalhista. Mas o que diz a Constituição sobre o direito adquirido? Quem e em quais situações pode se proteger na lei?

O artigo 5º, no inciso XXXVI, afirma: "A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Quer dizer? "Uma lei nova não pode afrontar o que foi garantido por outra anteriormente, e este princípio se estende para todos os brasileiros", diz o jurista Manuel Alceu Affonso Ferreira. "Mas só é visto como direito adquirido aquele que, cumpridas as exigências da lei, já se incorporou ao patrimônio da pessoa."

A tradução disso para o caso da reforma da Previdência é a seguinte: a Constituição garante aposentadoria integral somente para quem já cumpriu os requisitos de tempo de serviço ou idade mínima, de acordo com o artigo 40 (que versa sobre os servidores públicos). Quem está na ativa e ainda não cumpriu os requisitos estaria sujeito às mudanças na Previdência, afirma Affonso Ferreira.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio de Mello, foi um dos primeiros a recorrer ao argumento do direito adquirido para defender a manutenção das regras da aposentadoria do servidor público. Embora seja visto como uma voz isolada do Supremo, ele declarou que só uma revolução mudaria o direito do funcionalismo de receber aposentadoria integral. Marco Aurélio de Mello levantou a polêmica: "É justo mudar a regra no meio do jogo?". Respeitada a Constituição, a resposta é sim. O que ele vê como direito adquirido tem outra definição na visão de juristas ouvidos pelo Portal EXAME. "Isso é expectativa de direito, não direito adquirido", afirma Ives Gandra da Silva Martins. "A expectativa do direito é o contra-ponto do direito adquirido, já que ele ainda depende de um acontecimento futuro", diz Affonso Ferreira. "Não há na Constituição, nenhum artigo que estabeleça regras para o direito potencial."

Os argumentos de Marco Aurélio de Mello não têm força nem mesmo entre seus colegas, os demais ministros do Supremo. "Admiro muito o Marco Aurélio de Mello, mas ele é voto vencido no Supremo", diz Ives Gandra. Os ministros do STF definiram, em decisões passadas, que só os servidores aposentados, isto é, que já cumpriram as exigências da lei, podem se valer do direito adquirido. "O Supremo não mudaria de posição agora", afirma Gandra.

Para por fim ao mal-entendido levantado por Marco Aurélio de Mello, Ives Gandra compara a reforma da Previdência às mudanças que o novo Código Civil impôs à sociedade desde 11 de janeiro desde ano, quando entrou em vigor. Houve, por exemplo, alteração na lei sobre heranças: a esposa passou a ter o mesmo direito dos filhos sobre o espólio do marido. Até 10 de janeiro, de acordo com o código antigo, uma herança, numa família de quatro filhos, seria dividida em quatro partes iguais. Com o novo Código, é necessário incluir a mãe na conta e dividir o espólio por cinco. "Mudou-se a regra e ponto", diz Ives Gandra. "Se fosse adotado o raciocínio do presidente do STF, a lei só poderia valer para os filhos que nascessem a partir de 11 de janeiro, já que os demais teriam crescido com a expectativa de ganhar mais depois da morte do pai."

Governo cedeu demais

De acordo com os juristas, o governo Lula já foi bem condescendente com o setor público. "A proposta é benevolente e cedeu demais aos servidores", diz Gandra. A reforma defendida pelo ministro Ricardo Berzoini estabelece um critério de proporcionalidade para os servidores da ativa. "De acordo com a Constituição, ele poderia simplesmente mudar a regra para quem não se aposentou ainda", afirma o jurista. Na avaliação de Affonso Ferreira, o governo quis suavizar o impacto da reforma ao criar o mecanismo de compensação para os servidores da ativa.

A proposta do PT prevê que o benefício será calculado com base nas duas regras, a antiga e a nova, de acordo com o tempo de serviço. Quem já está perto de pendurar as chuteiras no serviço público teria direito a um salário bem próximo ao integral; quem ingressou há pouco tempo no funcionalismo receberia, no futuro, uma aposentadoria muito parecida com a do sistema privado.

Militares e magistrados

Entre as vozes que surgiram requerendo tratamento especial na reforma da Previdência, apenas o pedido dos militares teria respaldo da Constituição. "Não vejo problema em tê-los em regime diferenciado. Há brecha na lei", diz Ives Gandra. O artigo 142, inciso X, permite, segundo o jurista, tal interpretação. Diz o texto constitucional: "a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra".

Pode até parecer ironia, mas os juízes não conseguem encontrar na lei as garantias para o tratamento especial. "Moralmente, os magistrados merecem um regime próprio, mas não há base legal", diz Affonso Ferreira. A carreira de juiz, explica o jurista, assim como a de militar, faz restrições de conduta e proíbe outra atividade profissional, engajamento político ou sindical. Mas a Constituição estabelece que os magistrados estão sujeitos às mesmas regras do funcionalismo público civil. Está no artigo 92, inciso VI: "a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no artigo 40 (que trata sobre as regras dos servidores civis)."

Reivindicações e chiadeiras à parte, o governo Lula tem a Constituição e a jurisprudência do STF a seu favor, mesmo que faça a concessão de tratamento diferenciado já prometido para os militares. Aprovar a reforma da Previdência, portanto, é antes de tudo um desafio político. Dificilmente se tornará um drama jurídico para o presidente.

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