Bernard Appy: teto flexível no curto prazo pode dar condições políticas para reformas
Um dos signatários de documento com propostas para um próximo governo, Bernard Appy defende que Brasil tem formas de aprimorar o Estado de bem-estar social sem colapsar com risco fiscal
Carolina Riveira
Publicado em 6 de agosto de 2022 às 08h30.
Bernard Appy é figura obrigatória no debate sobre reforma tributária no Brasil . Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e da Secretaria Extraordinária de Reformas Econômico-Fiscais no governo Lula, o economista é hoje diretor do Centro de Cidadania Fiscal e mentor de uma das propostas de reforma no Congresso, a PEC 45. Seus elementos principais também foram aproveitados na PEC 110, a mais avançada na tramitação, e hoje são base de mudanças propostas na tributação do consumo, um dos principais gargalos no Brasil.
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Foi com essa bagagem de anos (e um entendimento profundo dos desafios de se aprovar reformas no Brasil) que Appy e outros pesquisadores da sociedade civil organizaram um documento divulgado nesta sexta-feira, 5, com propostas para o próximo governo. A tributação mais eficiente, a especialidade de Appy, termina sendo uma das bases para que todo o resto possa andar melhor. Mas o texto trata também de assuntos tão diversos quanto proteção social, informalidade, sustentabilidade ambiental e fortalecimento das instituições.
Também assinam o documento, de caráter apartidário, o jurista Carlos Ari Sundfeld, os economistas Francisco Gaetani, Marcelo Medeiros e Pérsio Arida e o cientista político Sérgio Fausto.
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Dentre as propostas, está a manutenção do teto de gastos como âncora fiscal, mas com possibilidade de usar temporariamente até 1% do PIB fora do teto em frentes prioritárias, como gastos sociais e investimento em ciência, tecnologia e inovação ( veja aqui ).
"É uma política fiscal até relativamente dura na proposta: manteria um teto de gastos, com exceção de um programa especial de gastos temporários. E sinaliza claramente que são fundamentais medidas que reduzam despesas obrigatórias para aumentar o crescimento de longo prazo", diz Appy, que afirma que essa certa flexibilidade no teto também é uma forma "para que o governo tenha condições políticas" de implementar outras reformas.
À EXAME, o economista falou sobre o documento divulgado nesta semana e sua visão sobre o que deve ser prioridade no Brasil nos próximos anos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Por que os senhores decidiram divulgar essas propostas agora?
O trabalho começou ainda no ano passado, em caráter pessoal dos envolvidos. O objetivo foi montar um conjunto de propostas que atendesse a duas diretrizes fundamentais: redução de desigualdades com maior proteção dos mais pobres e medidas que contribuam para um crescimento mais robusto da economia brasileira. É uma contribuição da sociedade civil para o próximo governo.
A renda mínima é colocada como uma prioridade no texto, assim como outros programas sociais. O Brasil tem condições de fazer isso sem outras reformas para financiar o incremento do gasto?
O programa de renda mínima é um redesenho do programa atual. O grosso do financiamento viria do que já está hoje no Auxílio Brasil. Claro, se só ampliar despesa, sem ter política de crescimento, há risco de reação do mercado, alta de juros e o efeito final pode ser até negativo. Se você faz o conjunto das medidas, isso deve dar um desenho melhor. O que não quer dizer que as medidas não possam ser tratadas individualmente. Obviamente, não precisa implementar todas, são propostas sugeridas. Mas faz sentido atuar nas duas linhas simultaneamente, com distribuição de renda e crescimento econômico.
Como fica o equilíbrio fiscal?
Se formos analisar, uma taxa de juros real em 6% é indicador de falta de confiança na solvência fiscal do Brasil. O Brasil está numa situação fiscal que não é confortável. Mas a avaliação do grupo é que também não está à beira da falência.
É uma política fiscal até relativamente dura na proposta: manteria um teto de gastos, com exceção de um programa especial de gastos temporários. E sinaliza claramente que são fundamentais medidas que reduzam despesas obrigatórias para aumentar o crescimento de longo prazo.
Pode ser vista como ousada por alguns, como as pessoas que defendem que tem de manter o teto [como está]. Mas, na verdade, entende-se como uma forma de que o governo tenha condições, inclusive políticas, de implementar reformas que no longo prazo contribuam para ter o setor público solvente.
Muito do debate termina sempre voltando às formas de financiamento via tributação, a parte do documento em que o senhor é uma das referências. O que das propostas de reforma no documento já estão endereçadas no Congresso e o que é novidade?
Faz sentido reformar tributação do consumo, como já está nas PECs do Congresso [45 e 110], e simultaneamente fazer reforma da tributação da renda. Porque elas são complementares. A primeira atuando sobre crescimento e a segunda sobre distribuição.
Já tem muita coisa no Congresso, mas o que é novidade nesse conjunto de propostas: a desoneração da fatia da renda referente ao primeiro salário mínimo, poderosa do ponto de vista distributivo e para o crescimento da economia via formalização. Há também a ideia de reduzir tributação do lucro das empresas e passar a tributar mais para a pessoa física, como sócios. E uma novidade nessa proposta é tributar de forma progressiva na pessoa física.
A maior formalização é uma das bases para várias propostas. Como fazer isso em um paíscom 40% de informalidade?
Temos no conjunto de propostas um programa de renda mínima e a Poupança Seguro Família - que não é invenção nossa, vem de um trabalho no Centro de Debate de Políticas Públicas que reaproveitamos. E um conjunto de medidas que se complementam: desoneração do salário mínimo, proposta de que toda renda declarada passe a ser base para contribuição de Previdência e mecanismo compulsório de contribuição de trabalhadores por conta própria.
Não vamos conseguir acabar com o trabalho informal do dia para a noite. Mas um dos objetivos é estimular a formalização não só do trabalho, mas da renda. A proposta que fizemos ajudaria muito trabalhadores de baixa renda e a evitar essa substituição do trabalhador formal por MEI. Mas também, do outro lado, estimula a formalização da renda dos informais, da diarista, do motorista de Uber, porque na medida que ele declara essa renda, passa a ter cobertura de proteção social.
Essas questões não podem ser vistas como simplesmente ampliação de gastos? Por que são entendidas pelo grupo como prioritárias?
Não podemos ter duas "qualidades" de brasileiros, uns com direitos, outros não. Essas medidas combinadas têm um potencial muito grande de ampliar a proteção para um número maior de brasileiros, sobretudo a previdenciária. Porque saúde já é universal, idosos já têm proteção razoável, mas falta ainda as pessoas em idade ativa. Aí acho que avançaria muito. Isso é um passo importante rumo a um Estado de bem-estar social que alcance mais brasileiros.
Para os autores, o que fica de mensagem desse conjunto de propostas? Elas são um passo além de reformas como a trabalhista, da Previdência e administrativa que já foram discutidas nos últimos anos?
Propomos um conjunto de reformas estruturais que têm um efeito simultaneamente positivo sobre distribuição de renda e crescimento econômico. O foco é em tornar o setor privado mais produtivo e o Estado mais produtivo.
Ali tem uma consolidação de medidas que vão muito além da reforma administrativa, por exemplo. É uma reforma do Estado, reforma do processo orçamentário, da forma de fazer politica pública e de cobrar mais resultado, com mais dados, transparência e mecanismos de controle. É um conjunto de reformas estruturais voltadas simultaneamente a reduzir a desigualdade, proteger as pessoas de menor renda e aumentar o potencial de crescimento da economia.
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