Economia

Batismo de fogo

O governo Lula passa no teste dos 100 dias, concluem os debatedores do Fórum EXAME. Cumpriu a promessa de conduzir a economia com rigor e austeridade. Restam agora as reformas tributária, da Previdência, trabalhista, a queda dos juros, a volta do crescim

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h05.

Alívio e dúvida. Esses sentimentos contraditórios marcaram os debates da primeira edição do Fórum EXAME, realizado no hotel Renaissance, em São Paulo, no dia 7 de abril, com um tema oportuníssimo -- os 100 dias do governo Lula. O encontro foi aberto pelo presidente do grupo Abril, que edita EXAME, Roberto Civita. "Não devo ser o único nesta sala a deparar com esse aparente paradoxo", disse Civita para uma platéia de empresários e executivos reunidos para ouvir o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, representante do governo no debate. Por que o alívio? "Nesses três meses, o governo Lula está surpreendendo até o mais cético dos brasileiros", disse Civita. "Quem poderia imaginar que a atual administração seria capaz de modernizar em prazo tão curto o pensamento algo ingênuo dos tempos de oposição e de se adequar à dura realidade?" Inicialmente vista por muitos como mera promessa de campanha, a disciplina fiscal e monetária acenada pelo então candidato petista foi traduzida em ações concretas graças à férrea determinação do ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Os resultados estão aí: dólar em queda livre, risco país abaixo de 1 000 pontos e boa vontade dos organismos multilaterais de crédito em relação ao Brasil. Então, está tudo muito bem? Não é assim, pois há muitas dúvidas pela frente. A começar pela capacidade de o governo articular uma base política para aprovar no Congresso Nacional as prometidas reformas tributária e da Previdência ainda neste ano. Esse, aliado a alguns sinais de intenção contraditórios dentro do governo, é um dos pontos de interrogação levantados pelos convidados* de EXAME para discutir os 100 primeiros dias do governo Lula com José Dirceu, que esteve acompanhado do secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa.

José Dirceu

Somos um governo que procura construir uma unidade nacional em torno de algumas questões essenciais, a começar por esta: o Brasil precisa cuidar do Brasil. A experiência dos últimos dez anos demonstra que vamos ter sempre crises. Não tem sido fácil nos últimos anos e não o será nos próximos anos, até pelas conseqüências da guerra do Iraque. Não há caso na história da ocupação de um país como o Iraque que signifique paz. Pelo contrário, vai agravar a situação do Oriente Médio e a situação política internacional. Sendo o Brasil um país dependente de capitais, de tecnologia e de mercados externos, é evidente que seremos afetados. Mas um país com o tamanho de nossa economia tem de apoiar-se sobre as próprias pernas. Por isso, além de manter uma política econômica de bom senso, é preciso começar a discutir um projeto de desenvolvimento industrial para o país e sua inserção no mundo.

O Brasil não poderá se desenvolver internacionalmente se não distribuir renda e expandir seu mercado interno. É a partir dessa expansão que poderá interagir com o mundo lá fora e aumentar sua competitividade e sua produtividade. Por isso, criar as condições para termos poupança nacional deve ser uma obsessão nos próximos anos. Sem isso, não conseguiremos alcançar taxas de desenvolvimento econômico e social compatíveis com os nossos problemas.

Não se faz distribuição de renda só com crescimento econômico. É preciso para isso aprovar as reformas tributária, trabalhista e da Previdência. Além de injusto, o sistema previdenciário dos servidores públicos, hoje inviabilizado nos estados e mais cedo ou mais tarde na União, não contribui em nada para financiar o desenvolvimento. Precisamos de mais fundos de pensão e de um genuíno mercado de capitais para alavancar a economia. Depois da abertura e das privatizações, vários setores necessitam de financiamento para se reorganizar. Caso, por exemplo, da indústria de siderurgia e de papel e celulose. Nossa infra-estrutura também merece atenção, como as áreas de energia, que está em crise, de transportes, hoje sucateada, ou das telecomunicações, que também têm problemas, mas podem dar um segundo salto.

Precisamos do apoio da oposição para aprovar nossa agenda de reformas, mas não vamos ter dúvidas. Vamos aprová-las de qualquer jeito, porque há respaldo suficiente da sociedade para isso. Foi por isso que o governo constituiu o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social. O que significa isso? Aqui neste auditório onde estamos falando, um partido socialista, de esquerda, está propondo de maneira clara um pacto com o empresariado, para que, a partir de um programa de governo, possa realizar as mudanças necessárias para o país. Não haverá solução para o país sem que o povo brasileiro seja ator dessa mudança. A exclusão social já está trazendo conseqüências ruinosas para a economia. Quero dizer aos senhores e às senhoras que o crime organizado chegou ao Parlamento, ao Poder Judiciário e às estruturas policiais de informação e está se infiltrando nas empresas. Ele hoje forma engenheiros e advogados. Crime organizado e narcotráfico são combatidos com inteligência fundamentalmente. Por isso, o governo começa a assinar convênios com os estados para criar o Sistema Único de Segurança Pública, combater a corrupção, monitorar melhor os portos, os aeroportos e as fronteiras secas do país, além de reorganizar os sistemas de controle para combater a lavagem de dinheiro. Não há como enfrentar esse problema da segurança sem a criação de empregos, particularmente para a juventude. Apesar da gravidade da situação, estamos otimistas. Esse não é o governo do PT. É um governo de coalizão. Queremos negociar acordos capazes de tirar o país dessa situação. Somos especialistas em dialogar, debater, resolver o contraditório e construir maiorias. Por tudo isso, precisamos fazer as transformações que a Europa e o mundo fizeram há 120 anos -- a reforma agrária e também a reforma política. Não basta ser um país que cresça. É preciso ser um país civilizado.

Mendonça de Barros

Fico com uma questão ética muito séria nessa mudança do PT oposição para o PT governo. O ministro foi muito cuidadoso ao tratar da privatização das telecomunicações aqui, em respeito a mim, mas colocou a questão de forma absolutamente correta: "...o segundo salto das telecomunicações..." Infelizmente, não foi esse o tratamento que eu e o ministro Sérgio Motta recebemos no passado. De qualquer maneira, não me surpreendi com essa mudança e gostaria que os senhores tivessem tempo para uma pequena reflexão a respeito da natureza do PT. Ele é um partido cujo objetivo é, primeiro, tomar o poder e, segundo, não sair mais do poder. O PT vai dar agora demonstrações extraordinárias de bom senso e de capacidade de gestão da máquina pública. Ele segue um ensinamento segundo o qual, para chegar ao poder, é necessário estar preparado inclusive para mudanças de pontos de vista e de objetivos. O que ele não vai conseguir é fazer uma fusão entre socialismo à esquerda, pragmatismo ao centro e conservadorismo econômico à direita. No curto prazo, o conservadorismo econômico dará ao governo vitórias importantes, como já deu, e vai dar mais uma, porque a inflação é uma questão resolvida. Espero que tenha bom senso para já iniciar a redução da taxa de juro, talvez a partir de maio. Essa vitória será muito importante para reforçar o otimismo que nós temos na economia. Mas a questão central para todos nós brasileiros, para os quatro anos de governo, para a volta do crescimento e da credibilidade, é como será feita essa fusão que até agora ninguém conseguiu no mundo.

Gianotti

É interessante que o ministro José Dirceu só tenha colocado no final da exposição dele a questão da reforma política. Aí está uma das diferenças entre nós. Ele falou de uma série de problemas a ser resolvidos e disse que vamos resolvê-los e, mais ainda, disse que fará a maioria no Congresso. Como? Porque nós podemos fazer a maioria de várias maneiras. A questão é como. Não se trata só da reforma política, mas da relação do governo com a renovação do sistema político como um todo. O sistema político tem passado por um processo de reforma que é muito importante, já desde o governo Sarney. Nos últimos tempos, tivemos até senadores que perderam o mandato por suposta falta de ética parlamentar. Esse processo de peneiramento do Congresso vai continuar ou a maioria vai ser feita à custa de certa acomodação às forças políticas atuais?

Uma segunda questão fundamental é rever a postura que o PT tem tido hoje de voltar à sociedade para discutir seus problemas. Como é que se fará o apelo ao povo sem cair no populismo tradicional? Nosso problema não é falar ao povo. É como construir um sistema político eficaz, capaz de representar as diversas correntes e, assim, criar um país que tenha capacidade de se olhar no espelho. O sistema político atual não tem sido capaz de refletir o que o Brasil mais tem, ou seja, uma massa de população que é flutuante, que está nos interstícios da nossa sociedade. Como seremos capazes de criar sistemas políticos integrados com essa população? Eu vejo com certa dúvida a construção do Conselho de Desenvolvimento Econômico, porque não é um sistema de formação de entidades políticas, mas simplesmente um sistema de chamar, pela voz da Presidência, os nossos amigos, para que eles encontrem uma solução para problemas que só podem discutir de fora. Se o Brasil votou no presidente Lula, foi porque apostou no sistema. Portanto, não vejo como possa haver uma delegação de representação para outros conselhos que não seja pelo meu voto e pelo voto de todos. Não vejo essa questão ser discutida pela atual equipe política, que está caindo numa espécie de fanatismo da conjuntura. Não há possibilidade de pensar um novo sistema político brasileiro sem colocar a questão da representação, fundamental para a construção da democracia brasileira.

Secches

É difícil falar representando o lado real da economia, porque, enquanto o Brasil pula de crise em crise, ficamos discutindo questões conjunturais normalmente ligadas ao mercado financeiro e à política. Ouvimos nas ruas pessoas comuns discutindo o risco Brasil, como se isso fosse muito importante. Não vejo ninguém discutir, por exemplo, questões estruturais prementes, como o sistema de inspeção sanitária no Brasil. Essas questões fundamentais, que dizem respeito à qualidade dos alimentos que consumimos todos os dias, não são tratadas com a profundidade necessária. Relegados a segundo plano, esses problemas costumam ser discutidos de maneira enviesada. Política industrial, por exemplo, virou uma expressão maldita. O ministro José Dirceu usou a expressão "projeto de desenvolvimento industrial", que também é adequada e aponta para o que nós precisaríamos começar a pensar. Temos de iniciar agora pelo menos o debate de um plano estratégico para o Brasil.

Construímos grandes indústrias de insumos básicos nas décadas de 60, 70 e 80. De lá para cá, fizemos otimizações, reduzimos gargalos e continuamos crescendo, embora a taxas extremamente modestas. Se planejamos ter um processo de crescimento maior do país, certamente vamos perder esse saldo comercial e -- muito rapidamente -- vamos ter problema de suprimento no mercado interno. Nosso processo de crescimento acelerado terá de ser feito necessariamente com importação de capitais do exterior.

A experiência sempre mostra que, nesses processos de crescimento econômico, é preciso estimular o investimento no insumo básico. Não estou falando de subsídios. Falo de um norte para a economia, da necessidade de definir quais setores são estratégicos para ter no comando o empresariado nacional e quais setores não são tão estratégicos e aos quais os investimentos e as companhias estrangeiros seriam bem-vindos.

Schwartsman

Compartilho a sensação de alívio e apreensão a respeito desses 100 dias de governo. O alívio vem do lado da política macroeconômica e a apreensão de praticamente todo o resto. Como diz uma antiga piada acadêmica: um artigo pode ter coisas novas e coisas muito boas. Infelizmente, as coisas novas não são boas, e as coisas boas não são novas. Aplicar isso ao governo Lula seria um julgamento duro demais, mas minha tese é que o PT chegou ao poder sem um projeto de governo. Aquele que todos nós conhecíamos, e temíamos, foi total ou parcialmente abandonado. O que existe hoje é um processo de construção de um novo projeto. Isso ajuda a entender a falta de articulação observada nestes primeiros 100 dias, que é a razão de minha apreensão -- exceção feita, é claro, à atuação da equipe econômica, nada menos do que primorosa até agora. A adoção de uma política fiscal extremamente apertada e o aumento do superávit primário previsto para 2003 foram uma surpresa positiva. Quanto à política monetária, manteve o ciclo de aperto iniciado no ano passado. Não sei se a inflação está deixando de ser um problema, mas certamente o temor experimentado no ano passado de que ficasse fora de controle deixou de existir. Quanto à política cambial, nada do que temíamos a respeito de controle de câmbio foi implementado. Tivemos a votação do ar tigo no 192, a proposta da Lei de Falências e das reformas previdenciária e tributária. É um conjunto de boas propostas. Mas lembro que a proposta da Lei de Falências foi gestada no Banco Central ainda no período Armínio Fraga. Não temos ainda uma reforma tributária nem sabemos o que vai ser. Há bons balões de ensaio, coisas herdadas do governo anterior. Há um ponto que surgiu nesse governo que eu considero uma mudança importantíssima: a discussão da mudança de contribuição patronal. Importantíssima porque deixa de tributar o fator mais abundante no país, que é o trabalho. A reforma previdenciária, que em larga medida é uma herança do governo passado, talvez seja o melhor exemplo do que é um partido chegar ao poder sem projeto. A proposta inicial, que nem chegou a ser debatida durante a campanha, mas apareceu imediatamente após a posse, foi devidamente escanteada. O PT mudou, e mudou para melhor. Algumas idéias foram abandonadas. Outras estão sendo adotadas. Onde havia coincidências com o que já se desenvolvia antes, tivemos uma transição tranqüila. E onde não havia nada, e agora as idéias estão tendo de sair da prancheta, o que se vêem são exemplos de desencontro e de falta de articulação. Mas penso que foram 100 dias que nos deixam bastante otimistas com o que virá até o final do ano.

Lisboa

Enfrentar a questão da retomada do crescimento, que passa pela retomada do investimento privado e do acesso financeiro mais barato, é parte fundamental da estratégia da política econômica. O Estado tem sido um despoupador, que retira dinheiro da sociedade para se financiar via inflação elevada ou via uma relação dívida e PIB crescente. Entre 1994 e 1998, por exemplo, a poupança pública foi negativa em 2,2% do PIB. Um dos esforços iniciais da equipe foi recalcular as estimativas de receitas deste ano. Contar com receitas extraordinárias não é uma forma de resolver a questão fiscal. Se uma parcela significativa dos recursos for obtida por meio de receita extraordinária, é possível fechar a conta neste ano, mas no ano que vem o problema reaparece. Isso conduz ao encurtamento da dívida pública e ao aumento de prêmio de risco, da taxa de juro e da volatilidade nas variáveis macroeconômicas. Por isso, buscamos fazer um ajuste fiscal de fato, via corte de gastos. É fundamental liberar recursos para o setor privado, retomar o investimento público, sobretudo de infra-estrutura, e preparar o país para uma nova fase de crescimento. Se não prepararmos o país para a retomada do crescimento, a economia esbarrará numa série de pontos de estrangulamento que o setor privado não será capaz de resolver. O Brasil tem hoje apenas 23% do PIB de crédito do setor privado. É uma das relações mais baixas do mundo. Somos um país com graves e antigos problemas estruturais. Resolver isso requer uma série de medidas. Algumas já tramitavam no Congresso. Outras estão hoje em estudo ou são medidas provisórias que têm de virar projetos de lei, entre as quais a Lei de Falências, a de Alienação Fiduciária e a instituição de um marco institucional que permita, de fato, a criação de um mercado de imóveis capaz de retomar o financiamento habitacional no país. Um segundo ponto fundamental na estratégia de crescimento é devolver ao Estado a capacidade de investir em projetos de infra-estrutura e em ciências e tecnologia. O país tem hoje uma imensa vantagem comparativa na área de agricultura graças a pesquisas em tecnologia e a uma parceria mais próxima dos centros de pesquisa com o setor produtivo. Foi essa parceria que permitiu um aumento do volume de comércio internacional do país, a variável que mais reduz nossa vulnerabilidade externa. Há, por fim, a área social, que tem papel fundamental na retomada do processo de crescimento de longo prazo. A renda de longo prazo cresce quando se aumentam o nível de escolaridade e os indicadores de saúde. Um aumento de um ano de escolaridade gera um impacto médio de 6% a 8% de aumento na renda permanente de longo prazo. Números semelhantes são obtidos pelos indicadores de saúde.

Agnelli

Temos de parabenizar o governo Lula por aquilo que fez até aqui. O ano passado foi difícil para todos nós. Nesses primeiros 100 dias, o governo Lula pelo menos acendeu a luz. Há quantos anos ouvimos falar de reforma da Previdência, reforma tributária, reforma trabalhista, educação, problemas sociais? No mínimo há 20, 30 anos. Só que, até aqui, não conseguimos fazer nada disso. Tivemos vários ensaios e grandiosas frustrações no passado, pagamos um preço elevado, mas a sociedade brasileira evoluiu.

Falando como empresário, diria que o principal ponto que temos de olhar é o custo de capital. É aí que reside boa parte de nossos problemas de competição nesta economia globalizada. São várias as frentes que temos de enfrentar simultaneamente: restabelecer a credibilidade, ter um direcionamento, ter uma visão de longo prazo. Esses são desafios para o governo e para toda a sociedade. Como é que vamos querer enfrentar esses problemas? Vêm aí reformas que são marcos para aclarar um pouco essa visão de futuro no médio e longo prazo. Se isso tudo for feito, o custo de capital deve cair. No ano passado viajei praticamente o mundo inteiro e escutei um só tipo de pergunta: "E agora, o que vai acontecer com o país? Não vai pagar a dívida? O PT, governo de esquerda, não vai honrar os contratos? Vai dar o calote?" Começo a sentir exatamente o movimento con trário. Todos dizem: "Que coisa boa, o país está bem, vai crescer, o capital começa a voltar, as linhas de financiamento começam a estar disponíveis".

José Dirceu

Não é razoável dizer que nós não agimos com transparência. O presidente Lula, quando candidato, firmou uma carta-compromisso e foi à televisão discuti-la durante 8 minutos. Quando representei a candidatura do presidente Lula numa viagem aos Estados Unidos, falei em Nova York para investidores e credores do Brasil. Eles diziam abertamente que o país precisava reestruturar a dívida, e nós resistimos a essa proposta. Não se pode chamar uma política econômica de A ou B se ela era a única que podíamos fazer, pois o risco Brasil estava chegando a 3 000 pontos, o dólar a 4 reais e as linhas de crédito cortadas em 20 bilhões de dólares, além do que a inflação era e ainda é bem real. Fizemos o que devíamos ter feito, sem nenhuma vergonha.

Não vejo como se possa dizer agora que estamos aplicando uma política -- econômica ou em qualquer área -- que não tenha sido prometida ao país. Fomos bastante transparentes e não temos de fazer autocrítica sobre nada, além de isso ser uma absoluta perda de tempo para o país. Não dissemos que queríamos ser eleitos para fazer uma mudança no sistema capitalista do Brasil ou para construir o socialismo no Brasil. Falamos que queríamos combater a corrupção, combater a pobreza, retomar o crescimento com distribuição de renda, aprofundar a democratização do país. Ou não foi isso que falamos para o país? Por acaso nos comprometemos com outra agenda? Temos problemas graves evidentemente dentro do governo, na articulação dos partidos e em alguns ministérios. Mas não aceito colocar em dúvida o caráter democrático do PT, porque somos parte da construção da democracia brasileira. Ela não existiria sem nós. Sem o PT, o Brasil estaria vivendo uma situação social gravíssima. A violência, inclusive, talvez já fosse política. Não aceito a insinuação de que temos projeto para ficar 20, 30 anos no poder. Temos o projeto de ficar quatro anos em Brasília. Já demos prova de que saímos, sim, do governo, que vamos para a oposição com humildade e trabalhamos para voltar, como aconteceu aqui em São Paulo, a maior cidade do país. Perdemos a eleição em 1992 e voltamos em 2000, oito anos depois.

Quero deixar claro também que este governo fez, pela primeira vez, uma transição sem os partidos hegemônicos do Brasil. O PFL e o PMDB passaram por todos os governos desde 1985. O PSDB permaneceu três anos no governo do presidente Itamar Franco, de quem o presidente Fernando Henrique Cardoso foi duas vezes ministro. É surpreendente que tenhamos feito essa transição tão ampla sem descontinuidade administrativa para o país. Evidente que assumimos o governo sem muitos instrumentos para fazer política. As Câmaras Setoriais, fundamentais para um governo operar, fechar acordos, direcionar investimentos e fazer política industrial, tecnológica e comércio exterior, não existiam praticamente mais. À exceção da Camex, com seus altos e baixos, e da Câmara de Política Econômica -- ou melhor, de política monetária e fiscal --, que durou oito anos, nenhuma outra câmara a rigor funcionou no país. Temos de reorganizar os instrumentos institucionais e os fundos de investimento do país, público e privado. Dizer que não temos política de desenvolvimento para o país é nos subestimar. Vamos ter de, sim, debater e construir essa política com o empresariado, com os sindicatos, com as ONGs e com a sociedade, porque isso é um pacto que nós queremos construir.

PERGUNTA

Qual o papel efetivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e como o governo pretende usar suas recomendações?


O papel é construtivo. Isso ficou claro em vários países do mundo onde essa experiência existe, inclusive escrita na Constituição. Não considero que o Conselho seja governista. Basta ler o nome de seus integrantes. Uma parte importante deles é formada por figuras reconhecidamente simpatizantes do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-senador José Serra. O objetivo do Conselho é assessorar o presidente da República nos debates que o país fará sobre questões importantes, inclusive sobre a reforma política ou sobre política industrial do ponto de vista tecnológico. Não vejo no Conse lho nada que não seja importante para a sociedade brasileira avançar na democracia, no diálogo e na construção de um contrato social. Também não escondemos isso da sociedade. Falamos na campanha eleitoral que queríamos construir um pacto social, dada a gravidade da situação internacional e dada a gravidade dos problemas do país.

PERGUNTA

Não é contraditória a atitude do governo, que promete dar autonomia legal ao Banco Central, mas parece incomodado com a autonomia das agências reguladoras?


Não. O problema das agências reguladoras é que elas passaram a traçar a política, além de regular e fiscalizar. Não achamos isso razoável. O país e o governo precisam traçar as políticas, e as agências devem regular e fiscalizar. Estão fazendo muita tempestade nesse copo dágua aí, mas vamos organizar essa discussão de maneira sensata. Agora mesmo o setor elétrico está pedindo 48% de aumento na revisão tarifária qüinqüenal, se não me engano. Mas como é que nós ficamos? Há apenas 30 dias, a inflação era um risco real para o país. O governo tem a clareza de que as empresas precisam ter equilíbrio econômico financeiro e rentabilidade. Agora, elas apostaram, correram riscos, apostaram no dólar 1 por 1 e apostaram no sistema de termo-elétricas. O país fez uma opção pela privatização e perdeu o controle sobre um insumo determinante que hoje está dolarizado. Isso é uma tragédia. Nossos insumos sendo dolarizados sem termos uma mediação. Isso significa que a nossa competitividade sempre estará sujeita à política lá de fora. Todos dirão: mas sempre estará por causa da globalização. Sempre estará, mas a França, os Estados Unidos, a Inglaterra, a Alemanha, o Japão tomam todas as medidas para mediar isso e preservar sua competitividade. Com relação ao setor de telecomunicações, não erramos tanto quanto o fez o setor de energia, mas também cometemos erros. Isso é página virada. Trata-se agora de ver como vamos reorganizar esse e outros setores -- o siderúrgico e o petroquímico -- dos pontos de vista institucional e financeiro para que o país tenha transmissão de dados, uma indústria de transporte etc. Temos de resolver o problema, porque o país tem pressa de crescer. Vamos respeitar os contratos, mas vamos tencionar. Não vamos deixar um processo de aumento tarifário na Petrobras ou em qualquer empresa que seja. Isso pode levar ao descontrole da inflação e tornar as empresas inviáveis. O que fazemos com as empresas de ce râmica, de siderurgia e todas as que estão usando o gás da Bolívia? Vão passar a usar lenha? Esse contrato foi um equívoco que o país cometeu e que agora temos de consertar.

Mendonça de Barros

Eu gostaria de fazer duas observações. Em relação às agências reguladoras, é muito bom o ministro abaixar a bola da esquerda. No setor de telecomunicações, saímos do monopólio estatal para um sistema de concessão privada, buscando a competição. É evidente que nem Jesus Cristo seria capaz de chegar a um desenho de coisas que não estivesse falho. Mas a esquerda do seu governo, inclusive o ministro das Comunicações, em vez de criar um ambiente de discussão, resolveu partir para a radicalização. Uma questão tão importante não poderia ter sido colocada pelo governo de tal maneira. Fico satisfeito que agora o governo coloque isso dentro de certa racionalidade. A segunda questão me preocupa muito: o spread bancário. O que o secretário repetiu aqui eu já ouvi ad nauseaum no governo Fernando Henrique. É uma questão importante, mas não é condição necessária para resolver o problema. Vou dar um exemplo do setor agrícola, o único que cresceu sistematicamente nos últimos anos. Trata-se do único setor que tem um crédito dirigido. O governo vai pegar um abacaxi tremendo pela frente nessa área de crédito por causa desse processo de fusão bancária. Essas questões da Aneel, da Anatel vão ser fichinha perto disso. O ministro está preocupado com a competição da telefonia fixa. Acho melhor o senhor começar a se preocupar com a competição bancária.

PERGUNTA

Como o governo espera resolver o problema do enorme spread bancário entre as taxas de juro para o tomador e para o aplicador, fundamental para resolver o nó da poupança?


O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, tratou desse assunto num texto que escreveu para a revista EXAME e que acabei de ler. É fundamental restabelecer a credibilidade e a confiança no país. Todas essas reformas institucionais que vamos fazer contribuem para isso. Mas o sistema bancário brasileiro tem uma gordura. Tem margens para reduzir uma parcela da taxa de juro. Um terço do problema pode ser resolvido mediante as reformas. Outro terço mediante a recuperação da credibilidade e da confiança no país, que se consegue com o aumento de nosso superávit primário e a redução, se possível a zero, do nosso déficit em conta corrente nesse momento. Não quer dizer que tenha de ser sempre assim. Mas é preciso também pactuar entre o sistema bancário, o sistema produtivo e o governo determinadas linhas de financiamento para certos setores que podem levar o país a crescer. Até porque a redução da inadimplência, justamente uma das razões alegadas para esse aumento dos juros, depende de o país retomar o crescimento econômico. Vamos falar de maneira bastante transparente. Será que os usineiros têm mesmo de exportar o açúcar e não produzir álcool? O presidente Lula convidou para um diálogo o setor sucro-alcooleiro e chegamos a um meio-termo de um acordo. Podemos taxar as exportações de açúcar ou não? Ou não se faz mais política no país? Veja o problema do aço, que está afetando o setor industrial brasileiro. Que saídas temos para resolver isso? Diminuir o juro, fazer reforma tributária, mas será que só se pode fazer isso? Será que não há engenharias institucionais ou acordos setoriais que possam ser feitos em determinados momentos? Não são coisas permanentes, mas sim medidas pontuais destinadas a impedir que a inflação tencione mais o país ou que o setor produtivo perca competitividade internacional por causa do aumento do preço do aço. Precisamos enfrentar essas questões.

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