A arte de conviver com um vizinho em crise
Crises institucionais, perda de credibilidade e instabildade política: para especialistas, estas características da Argentina exigem que o Brasil tenha jogo de cintura e assuma postura de lider
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
São Paulo - Qualquer fã de futebol gostaria de ver nesta Copa do Mundo um confronto entre Brasil e Argentina. Dependendo dos resultados, em uma das semifinais, ou na final, estas seleções podem protagonizar um espetáculo que contempla a maior rivalidade do esporte em toda a sua história. Entretanto, a relação cheia de faíscas entre os dois países muitas vezes extrapola os gramados e embola o meio de campo político-econômico. Por causa da turbulência, frequentemente o Brasil tem que mostrar, muito mais do que no futebol, uma outra forma de arte: a de conviver com um vizinho em crise.
O maior problema, para os especialistas, é o fato de o parceiro mais importante do Brasil na América do Sul viver mais do que apenas uma fase de maus resultados. "Não poderia dizer que se trata de um momento de crise. É uma situação permanente", diz o pesquisador Alberto Pfeifer, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo. E este caráter perene das dificuldades da Argentina contribui para que o desenvolvimento da região econômica na qual ela está inserida fique muito aquém de seu real potencial.
Parte do cenário do drama argentino é ocupada por uma séria crise de credibilidade. Desde 2007, ano em que Cristina Kirchner sucedeu seu marido, Nestor Kirchner, na presidência da República, o governo vem sendo acusado de manipular os números de diversos indicadores. No ano passado, alguns dos principais economistas do país previam retração de 2,5% a 3% no Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, relatórios oficiais apontavam um crescimento de 1,5%. Com a inflação, a história se repete. De acordo com a agência Bloomberg, os economistas dizem que o índice de preços ao consumidor aumenta mais de 20% ao ano no país. Por outro lado, os números do Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec, na sigla em espanhol - órgão argentino análogo ao IBGE, no Brasil) mostram aumentos anuais de aproximadamente 10%.
Há ainda a agravante da instabilidade institucional que vem abalando a imagem da atual administração. Em janeiro, a presidente Cristina Kirchner emitiu um decreto exonerando o então presidente do Banco Central, Martín Redrado. Segundo declarações de Kirchner, a demissão aconteceu porque ele se opunha à criação de um fundo de 6,5 bilhões de dólares para pagar parte da dívida de 2010, que chega à casa dos 13 bilhões.
As desavenças internas, em si, e a perda da credibilidade não são um problema direto para o Brasil. "Os efeitos são residuais", afirma Alberto Pfeifer. "O Brasil é muito maior, e visto internacionalmente como um país bem estruturado, apesar dos contratempos." A questão é que o clima tempestuoso torna a região do Mercosul muito menos atraente para os outros países. Também fica manchada a relação bilateral entre brasileiros e argentinos. "As decisões do Brasil acabam deixando de ser pautadas por um horizonte comum ao da Argentina."
O pesquisador ressalta que os dois países têm uma importante relação de parceria comercial, mas ela poderia ser mais bem explorada. "O mercado argentino é uma extensão natural da produção brasileira. Mas a falta de interesse do governo argentino em estabelecer, não só com o Brasil, mas com o mundo, um relacionamento estável, limita as potencialidades".
Na avaliação de Pfeifer, a imprevisibilidade da Argentina deveria ser compensada por uma postura mais incisiva do Brasil, tanto na parceria entre os dois países quanto no continente. "O Mercosul hoje anda de lado. Não se sabe onde vai chegar, porque não há um horizonte comum nas decisões. O Brasil é o principal trunfo do bloco e tem que assumir a dianteira, apontar rumos, colocar sobre a mesa os problemas e definir um caminho", declara.
Comércio
Grande parte das desavenças entre Brasil e Argentina se dá no campo das relações comerciais. A parceria entre os países é frequentemente perturbada por desentendimentos sobre tarifas e regras aduaneiras. Entretanto, aqueles que acompanham as jogadas de ambos neste terreno não hesitam em afirmar: no caso de uma dividida, quem leva a melhor é o Brasil.
As discussões mais recentes envolvendo os dois governos começaram em maio, interrompendo um período de trégua de quase seis meses. A administração de Cristina Kirchner decidiu proibir a entrada no país de alimentos importados que possuíssem similares produzidos localmente. A Ideia partiu do secretário de Comércio da Argentina e homem de confiança de Kirchner, Guillermo Moreno, visto por especialistas e pela imprensa como truculento em suas atitudes. O anúncio foi feito depois de uma rodada de reuniões entre brasileiros e argentinos para tentar superar problemas comerciais.
A intenção do encontro era que houvesse avanços nas relações de produção e comércio de uvas e vinho. Na ocasião, o Brasil aplicava ao setor barreiras não automáticas para as importações vindas do país vizinho. Esta medida tornava o processo de entrada das mercadorias argentinas em território brasileiro mais demorada. O governo Lula havia decidido estabelecer as barreiras em 2009, como uma resposta a ações similares por parte da Argentina. O resultado das reuniões não agradou ao governo, que, uma semana depois, anunciou a intenção de pôr em prática o bloqueio comercial.
Os planos de bloqueio de Moreno envolviam, além da atuação aduaneira, enviar inspetores aos supermercados, armazéns e lojas de conveniência, para verificar se estavam sendo vendidos alimentos importados com similares nacionais. Logo, produtos brasileiros como frutas, milho, tomate e enlatados deixariam de entrar no território argentino. Em maio, oito caminhões carregando estes itens, além de frango e derivados de suínos foram barrados na fronteira com a Argentina. As restrições estavam inicialmente previstas para entrar em vigor em definitivo em junho, embora a presidente Kirchner tenha negado, durante reunião com o governo brasileiro, a intenção de levar o bloqueio adiante.
"É sempre difícil conviver com um vizinho em crise, e ambos perdem com esta troca de ataques", avalia o presidente da Associação Brasileira de Comércio Exterior (Abracex), Roberto Segatto. Ele diz que, embora o Brasil seja superavitário, há um grande fluxo de mercadorias entre os dois, e uma série de medidas restritivas traria problemas a ambos. Dados da Secretaria de Comércio Exterior do governo brasileiro exemplificam a intensidade do comércio bilateral. Considerando apenas o setor de alimentos, centro da atual discussão, o Brasil exportou 182,4 milhões de dólares em produtos para a Argentina entre janeiro e abril de 2010. As importações revelam a ligeira vantagem numérica dos brasileiros: foram 107,3 bilhões de dólares no período.
Segatto diz que a Argentina não tem do que reclamar, considerando a quantidade de alimentos que o Brasil importa. "Nós compramos até óleo de soja, mesmo produzindo isto em grande quantidade aqui. Importamos 13 milhões de dólares em uva e derivados, e aproximadamente 400 milhões de dólares de trigo, entre janeiro e abril. Eles perdem se arrumarem problemas comerciais, porque não têm para onde escoar estes produtos se não exportarem para o Brasil."
Por outro lado, ainda que as barreiras comerciais do secretário Guillermo Moreno não tenham se confirmado, a simples possibilidade traz alguns efeitos à economia brasileira. O titular da Câmara de Comércio Argentino-Brasileiro, Jorge Aparício, afirmou ao jornal argentino "Clarín", em maio, que os comentários de Moreno já repercutiram de forma negativa. "Ninguém (na Argentina) vai comprar produtos sem ter certeza de que, depois, sua entrada na alfândega será permitida", declarou Aparicio
Mais um capítulo
A situação complicada é apenas um dos capítulos da novela estrelada pelos dois países. O professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Sennes explica que há mais de uma década a situação entre Brasil e Argentina vive altos e baixos. "A Argentina teve um período de forte abertura comercial nos anos 1990. Barreiras comerciais foram retiradas e o país se comportou de modo agressivo na expansão das relações comerciais. Entretanto, veio a crise de 1999 a 2001 que reverteu o quadro todo. As barreiras, tanto implícitas quanto explícitas, voltaram", afirma.
A partir daí, começaram os movimentos de idas e vindas dignos de um tango. Sennes critica o fato de que a Argentina, ao longo da década, adotou um modelo de operar imprevisível. Tal característica ficou mais evidente nos governos de Néstor e Cristina Kirchner (2003-2007). As inúmeras sequências de criação e retirada de restrições se tornaram uma das maiores dificuldades no diálogo entre os dois países. "O Brasil não é dos melhores parceiros comerciais do mundo. Derrubamos barreiras tarifárias, mas impomos barreiras técnicas. Às vezes, dificultamos a vida de outros países, mas fazemos isso com muito mais charme que os argentinos."
O professor, que também atua em um escritório de consultoria em relações internacionais, lembra que, ao longo da década passada, a diferença de competitividade entre os países aumentou, enquanto as relações comerciais se deterioravam. "Nos anos 1990, a Argentina passou por uma fase de câmbio supervalorizado, e isso matava a competitividade de seus produtos. Nós aproveitamos essa fase e nos tornamos grandes exportadores de produtos dos setores automobilístico, de eletro-eletrônicos e de produtos químicos e farmacêuticos. Depois, houve um desmonte do estado argentino, afetando as políticas públicas, o crédito, o desenvolvimento tecnológico. O Brasil cresceu nessas áreas e a Argentina foi a zero."
Atualmente, mesmo com uma situação cambial mais favorável, o governo argentino encontra dificuldades para exportar e reage defendendo os setores de sua economia. Mas faz isso de uma forma inadequada, na opinião de Roberto Troster, economista e conselheiro da Câmara de Comércio Argentino-Brasileiro em São Paulo. "Acompanho o relacionamento entre Brasil e Argentina há mais de três décadas. Os argentinos fazem muito barulho, muito show, mudando seu modo de agir a todo instante", afirma. Troster vê como imaturas algumas decisões tomadas do lado de lá da fronteira. "Há uma miopia na política macroeconômica argentina. Eles sacrificam o bem-estar no longo prazo por benefícios imediatos que são pequenos, como no caso das ameaças ao Brasil."
Troster defende que a Argentina repense suas estratégias, de olho no futuro, caso não queira ver os mercados fechados para seus produtos por causa dos danos que a instabilidade causa à sua imagem. "Brasileiros e argentinos têm grandes complementaridades na estrutura produtiva, e deveriam se concentrar nisto, visando um grande ganho no longo prazo. Nós pagamos parte do ônus dessa fraca política econômica argentina, e esta situação deve mudar." Quanto ao futuro, Troster provoca: "se eles ganharem a Copa, aí é que as restrições comerciais vão aparecer de verdade. Quem sabe um bloqueio econômico total?".
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