Mercado de 6,7 bilhões de dólares por mês
Um mercado que importa de todo o mundo aproximadamente 6,7 bilhões de dólares por mês, com potencial de expansão, e considerado 'premium' para o Brasil porque necessita de produtos de alto valor agregado. É assim que analistas do setor definem a Argentina. A falta de reservas de dólar pode ser um problema para o país vizinho, mas o Brasil tem se empenhado em buscar soluções de crédito e transações diretas real-peso.
Na última semana, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o argentino Alberto Fernández tiveram uma reunião no Palácio da Alvorada para tratar de questões econômicas. Fernández saiu do encontro com a promessa brasileira de analisar financiamentos de obras via BNDES, dar crédito a empresários brasileiros que comercializam com os hermanos, e até utilizar o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o chamado "Banco dos Brics", para dar crédito ao país vizinho. Mas afinal, o que o Brasil ganha com essa aproximação comercial?
Welber Barral, da consultoria BMJ, e que já foi Secretário de Comércio Exterior do Brasil entre os anos de 2007 e 2011, avalia que o Brasil tem uma liderança regional natural na América Latina. Para que seja reconhecida, é preciso que seja exercida. E os movimentos do presidente Lula são neste sentido, passando por resolver problemas econômicos argentinos.
Balança comercial é favorável ao Brasil
De acordo com dados da Secretaria de Comércio Exterior, as exportações para a Argentina cresceram 38,3% em abril e somaram 1,66 bilhão de dólares. As importações, por outro lado, caíram 8,8% no mesmo período e fecharam em 890 milhões de dólares. A balança teve um superávit de 780 milhões de dólares para o lado brasileiro.
No acumulado dos primeiros quatro meses do ano, o saldo também está positivo para o Brasil, com 1,77 bilhão de dólares. A Argentina é o terceiro maior destino das exportações brasileiras, só atrás da China e dos Estados Unidos (veja o gráfico abaixo).
"A Argentina tem uma crise de dólares enorme. Os empresários que querem importar algo precisam solicitar ao Banco Central e há uma demanda muito alta. Por conta disso, a transação muitas vezes não se concretiza porque o governo argentino atrasa a liberação", explica Thiago Vidal, gerente de macropolítica da Prospectiva.
Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) – sem dólar
Para tentar resolver essa falta de dólar e melhorar a relação comercial entre Brasil e Argentina, no fim de abril o Conselho Monetário Nacional (CMN) aprovou uma resolução que barateia a utilização do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) e amplia os tipos de instituições financeiras aptas a usar o sistema. O Congresso Nacional ainda precisa ratificar as mudanças para que elas tenham validade. O acordo foi um dentre os anunciados durante a viagem do presidente Lula à Argentina, no começo do ano.
O SML funciona como um mecanismo de pagamento internacional administrado pelo Banco Central do Brasil em parceria com o Banco Central da Argentina.
O sistema permite que a transação para a aquisição de bens seja feita diretamente em reais e pesos sem a necessidade de uma moeda intermediária, como o dólar. Para isso, usa apenas a taxa SML como referência para as transações, que é definida diariamente pelos bancos centrais.
Apesar de existir desde 2008, o sistema é pouco utilizado – 50 bilhões de reais desde a criação – por causa de altas taxas cobradas por bancos, poucas instituições financeiras participantes e dificuldade no entendimento técnico do funcionamento, segundo Welber Barral.
De acordo com o chefe-adjunto do Departamento de Assuntos Internacionais do BC, Marcelo Aragão, uma das principais mudanças feitas agora foi a ampliação para permitir que todas as instituições financeiras que operam câmbio possam disponibilizar o SML.
Antes, as transações precisavam passar por uma chamada "conta de liquidação", que seria confusa, na avaliação do BC.
"Nesta atualização, o Banco Central uniformizou procedimentos de controle que permitem a integração com inovações do Sistema de Pagamentos Brasileiro", garante em comunicado o BC.
Para além do SML, o Brasil está em negociação para resolver outros problemas que afetam a relação comercial.
"Nós estamos falando de três acordos diferentes que visam melhorar o relacionamento com a Argentina, que está afetada pela falta de reserva de dólar", diz Welber Barral em entrevista à EXAME.
Abaixo você confere as principais respostas de Barral, que já foi árbitro no Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul e do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio.
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Quais acordos foram discutidos entre Lula e Fernández?
O primeiro tema abordado foi a ideia de financiar compradores brasileiros que vendem para a Argentina. O Brasil já tem feio isso por meio do Programa de Financiamento às Exportações [Proex], que financia empresários brasileiros que vendem para o mundo inteiro. A grande questão é que você tem que ter um fundo garantidor de exportações, que é o Fundo de Garantia à Exportação [o FGE é um fundo vinculado ao Ministério da Fazenda para cobrir o BNDES caso algum credor fique inadimplente, sem dar prejuízo ao banco].
O segundo ponto que foi falado na reunião presidencial é o financiamento, via BNDES, para a Argentina fazer obras no país. Aí são financiamentos para exportadores brasileiros venderem projetos na Argentina. Esse ponto é mais complicado porque a Argentina precisa dar garantias ao banco brasileiro.
Esse modelo era muito usado antes da Lava Jato e parou de ser feito durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O Brasil foi campeão de projetos na África e na América Latina. O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, esteve junto na reunião para discutir justamente este ponto.
A terceira possibilidade que foi debatida foi usar o Banco dos Brics, do qual a ex-presidente Dilma Rousseff é presidente, para financiar projetos na Argentina. Para além disso, o Brasil tem interesse que o país vizinho faça parte do bloco com Rússia, Índia, China e África do Sul.
A falta de dólar é o principal problema que afeta relação com o Brasil?
A Argentina vem de uma longa crise, com vários problemas, mas o último deles foi a seca histórica [a pior dos últimos 60 anos] levando o país a perder cerca de 30 bilhões de dólares em exportações, principalmente soja, milho e trigo. Isso afetou o Brasil porque reduziu as reservas de dólar do país fazendo com que os importadores argentinos não consigam pagar os exportadores brasileiros.
Como uma alternativa, a China, em um acordo bilateral, fez um swap cambial com o Banco Central da Argentina trocando yuan por pesos argentinos. Desta maneira, não há a necessidade de dólar na transação. Um modelo semelhante já existe no Brasil há muitos anos, o chamado SML, mas só 3% das negociações entre Brasil e Argentina são usadas neste modelo.
Só 3% das negociações entre Brasil e Argentina são em moeda local, sem dólar.
Por que o SML é pouco usado?
Tem vários problemas que não são comerciais, mas de mercado. São poucos bancos que operam, com taxas altas, normalmente são operações de curto prazo. Quando tem negociações mais de longo prazo há uma opção pelo dólar. Também há um desconhecimento do lado brasileiro de que o mecanismo já existe. É um conjunto de fatores que desestimulam o uso.
O que o Brasil ganha com uma aproximação comercial com a Argentina?
A Argentina é o terceiro mercado mais importante do Brasil. Para além disso, exportamos produtos de alto valor agregado, como autopeças, maquinário, equipamento, tratores. É um mercado premium. É importante para o Brasil que a Argentina esteja bem, principalmente na área comercial. Há ainda outros pontos de interesse de imigração, fronteiriços, coordenação em bloco perante organismos internacionais.
O acordo com a União Europeia é muito importante para o Mercosul. Tem a possibilidade de atração de investimento de empresas europeias para o Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, mas é uma a negociação que existe há mais de 20 anos. O problema da negociação envolve questões ambientais do Brasil. Claro que o apoio dos outros integrantes para essa negociação é importante, mas o grande tema é mais do Brasil e ele precisa se posicionar. Fechando esses detalhes, isso ajuda indiretamente também a Argentina.
No passado, Lula priorizou a agenda regional, mas o contexto hoje é outro. Há adaptações na estratégia de política internacional?
O que o governo Lula está fazendo a partir de agora é dizer que o Brasil precisa tratar o mundo como bipolar, entre Estados Unidos e China, de forma contrária a um mundo unipolar que tínhamos há 20 anos. Ele está se posicionando de forma ativa, com uma liderança ativa, principalmente regional. O Brasil é um líder natural da América Latina, mas liderança você não declara, você exerce. E é isso que o Lula está tentando fazer: apoiar os países vizinhos em troca de um reconhecimento da liderança brasileira na região.
O Brasil precisa ficar atento às eleições na Argentina previstas para outubro?
A eleição na Argentina está muito indefinida. Não tem uma clareza com relação a quem vão ser os candidatos [há pelo menos seis presidenciáveis]. Um deles é Daniel Scioli, embaixador que está no Brasil e seria bom para a nossa relação, do ponto de vista brasileiro. Mas ao mesmo tempo tem nomes como Javier Milei, que é um candidato quase Bolsonarista, de extrema direita. Ou seja, a eleição tem muita importância e o Brasil precisa acompanhar porque impacta do nosso lado da fronteira.
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Créditos
Gilson Garrett Jr.
Repórter de Lifestyle
Formado pela PUCPR, com especializações em Relações Internacionais, Modelo de Negócios e Mercado de Capitais. Por 9 anos escreveu sobre enogastronomia, cultura e turismo na Gazeta do Povo. Desde 2020 na EXAME, cobre lifestyle.