Vírus Zika pode combater tumores no sistema nervoso de cachorros
Três animais com idade avançada e tumores espontâneos no cérebro foram tratados com injeções virais por cientistas
Victor Sena
Publicado em 12 de março de 2020 às 10h42.
Última atualização em 12 de março de 2020 às 10h43.
São Paulo — Pesquisadores brasileiros acabam de comprovar em cachorros o potencial do vírus zika para combater tumores avançados no sistema nervoso central. Os resultados do estudo foram publicados nesta terça-feira (10/03) na revista Molecular Therapy.
Três animais com idade avançada e tumores espontâneos no cérebro foram tratados com injeções virais por cientistas ligados ao Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP na Universidade de São Paulo (USP).
“Observamos uma reversão surpreendente dos sintomas clínicos da doença, além de redução tumoral e aumento de sobrevida – e com qualidade, que é o mais importante. Além disso, o tratamento foi bem tolerado e não houve efeitos adversos. Estamos superanimados com os resultados”, disse à Agência FAPESP Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do CEGH-CEL.
A capacidade do zika de infectar e destruir células de tumores do sistema nervoso central já havia sido demonstrada pelo grupo em camundongos (leia mais em: agencia.fapesp.br/27676/). Nesse modelo, a formação de tumores humanos é induzida em laboratório, o que só é possível em animais imunossuprimidos. Uma das principais vantagens do novo estudo, segundo os autores, foi a possibilidade de avaliar o efeito da terapia em animais com o sistema imunológico ativo.
“Os resultados confirmam que a terapia atua por meio de dois mecanismos. Por um lado, o vírus infecta as células tumorais, começa a se replicar e acaba levando-as à morte. Por outro, ativa o sistema imune para a presença do tumor. A infecção desencadeia uma reação inflamatória e células de defesa começam a migrar para o local”, contou Carolini Kaid, bolsista de pós-doutorado da FAPESP e primeira autora do artigo.
Segundo Kaid, tumores do sistema nervoso central costumam não responder bem à imunoterapia. Isso porque a barreira hematoencefálica, estrutura que visa proteger o cérebro de substâncias potencialmente tóxicas presentes no sangue, dificulta a migração das células de defesa para o local.
No entanto, análises post-mortem feitas no tecido cerebral dos cães indicaram a presença de linfócitos T, macrófagos e monócitos infiltrados na massa tumoral.
“Essas análises também mostraram a presença do zika apenas nas bordas do tumor. Nenhuma outra célula do cérebro foi afetada. Esse é um achado muito importante, pois nos dá mais confiança de que o tratamento é seguro”, disse Kaid.
Protocolo terapêutico
Os três cachorros tratados pela equipe do CEGH-CEL eram pacientes da médica veterinária Raquel Azevedo dos Santos Madi, que atende em um hospital particular da Granja Viana, na Região Metropolitana de São Paulo. Todos foram diagnosticados por meio de ressonância magnética quando a doença já estava em estágio avançado e os sinais clínicos eram mais evidentes. Nesses casos, a sobrevida média, sem tratamento, costuma ser de 20 a 30 dias.
O vírus foi inserido no líquido cefalorraquidiano dos cães por meio de uma injeção na região da coluna logo abaixo do crânio. Foi usada uma linhagem isolada de um paciente brasileiro (ZIKVBR), purificada e cedida ao grupo por parceiros do Instituto Butantan.
O tratamento foi conduzido no hospital e os animais só foram liberados para casa após três testes negativos para a presença do vírus no sangue e na urina. “Seguimos um protocolo bastante rígido para evitar a contaminação de outras pessoas”, contou Zatz.
O primeiro cão a receber a terapia foi o pit bull Pirata, de 13 anos e 26 quilos (kg). “Ele chegou em estado de pré-coma. Já não ficava em pé e recebia apenas alimentação parenteral. Três dias após a injeção do vírus voltou a comer, conseguiu se levantar e esboçar alguns passos. Permaneceu vivo por 14 dias, mas já estava muito debilitado e teve uma parada cardiorrespiratória. Os donos optaram pela eutanásia”, contou Zatz.
A maior sobrevida foi observada no boxer Matheus, de oito anos e 32 kg, que permaneceu vivo por 150 dias após a terapia. Nesse caso, por meio da ressonância magnética, foi possível observar uma redução de 35,5% da massa tumoral.
A dachshund Nina, de 12 anos e 6,4 kg, foi a terceira paciente tratada. Nesse caso, a sobrevida foi de 80 dias e a redução da massa tumoral foi de 37,92%.
“Ao contrário do que ocorre no caso da quimioterapia, os animais não apresentaram nenhuma reação negativa ao tratamento. Começamos com uma dose bem baixa e, como foi bem tolerada, aplicamos uma segunda dose 10 vezes maior”, contou Zatz.
Terapia versátil
O tipo tumoral de cada cão só foi confirmado nas análises de histopatologia feitas após a morte. No boxer foi encontrado um oligodendroglioma e, na dachshund, um meningioma intracranial. “No pit bull não foi possível fazer a identificação, pois não encontramos células do tumor. Aparentemente ele foi eliminado, pois era pequeno”, contou Kaid.
Nos ensaios feitos com camundongo, o zika mostrou-se capaz de combater linhagens de meduloblastoma e de tumor teratoide rabdoide atípico (TTRA) – dois tipos de câncer do sistema nervoso central de origem embrionária que acometem crianças. Nos testes in vitro, os pesquisadores haviam observado o potencial do vírus para infectar e destruir células de glioblastoma e de ependimoma.
Na avaliação de Oswaldo Keith Okamoto, professor do IB-USP e membro do CEGH-CEL, os dados sugerem que a terapia viral poderia ser aplicável para vários tipos de câncer no sistema nervoso central – tanto em pacientes pediátricos como em pessoas acima de 60 anos. “Esses dois grupos são os que apresentam com maior frequência tumores agressivos e para os quais não há hoje um tratamento efetivo”, disse.
O pesquisador investiga há mais de 15 anos estratégias para destruir células tumorais que apresentam características similares às das células-tronco. Embora não sejam capazes de se transformar em qualquer tipo celular, essas “células-tronco tumorais” tornam a doença mais agressiva e difícil de tratar (leia mais em: agencia.fapesp.br/21884/).
Nos estudos in vitro, o grupo do CEGH-CEL comparou como o vírus interage com as “células-tronco tumorais” e com as células progenitoras neurais sadias, uma espécie de célula-tronco cerebral que dá origem tanto a neurônios como a astrócitos, a oligodendrócitos e demais células nervosas.
“Quando infectamos as células progenitoras neurais, o zika interrompe a proliferação e algumas delas morrem. Mas as esferas [formadas por um agrupamento de células progenitoras em cultura 3D] permanecem relativamente intactas. Já no caso da célula-tronco tumoral a destruição é bem mais proeminente. Os ensaios in vitro também mostraram que o vírus não infecta células nervosas maduras, como os neurônios. O que é um resultado muito bom”, contou Kaid.
Segundo Okamoto, grupos do Reino Unido e da Grécia estão interessados em conduzir projetos colaborativos voltados a entender melhor o mecanismo de ação do zika sobre as células-tronco tumorais.
Paralelamente, o grupo do CEGH-CEL está reformando uma parte do canil existente no IB-USP para instalar uma unidade de terapia intensiva que será usada nos novos estudos. “Aprendemos muito com esses três cachorros e agora pretendemos iniciar um novo estudo pré-clínico com um número maior de animais. Um dos objetivos é descobrir a dose ideal do vírus para o tratamento. Se funcionar será uma esperança de tratamento tanto para os cães quanto para nós. Mas para isso precisamos de mais verbas e buscamos parcerias”, disse Zatz.