Anopheles, mosquito que transmite a Malária (iStock/Thinkstock) (iStock/Thinkstock)
Lucas Agrela
Publicado em 10 de julho de 2018 às 11h20.
Uma nova molécula, sintetizada em laboratório, figura como forte candidata para o desenvolvimento de fármaco contra a malária. A possibilidade de um novo medicamento traz esperança a milhares de pacientes infectados pelo Plasmodium falciparum, um dos protozoários causadores da malária, sobretudo pelo fato de os testes mostrarem que a molécula foi capaz de matar, inclusive, a cepa resistente aos antimaláricos convencionais.
A molécula apresenta baixa toxicidade e alto poder de seletividade, atuando apenas no protozoário e não em outras células do organismo do hospedeiro. É derivada da classe das marinoquinolinas, com destacada atividade biológica, e foi desenvolvida no Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP. O estudo também recebeu o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Instituto Serrapilheira.
Em artigo publicado no Journal of Medicinal Chemistry, os pesquisadores descrevem a ação inibitória da molécula na fase sanguínea e hepática do ciclo assexuado do protozoário, responsável pelos sinais e sintomas da doença.
Além dos estudos realizados com cepas de cultivo in vitro, os pesquisadores também testaram a molécula em camundongos. “Nos testes, já no quinto dia de estudo a molécula conseguiu reduzir 62% da quantidade de parasitas no sangue (parasitemia). Ao fim dos 30 dias de teste, todos os camundongos que ingeriram doses da molécula sobreviveram”, disse Rafael Guido, professor no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do artigo, à Agência FAPESP.
Os testes foram realizados em modelo animal infectado por P. berghei, visto que o P. falciparum não infecta camundongos.
A molécula candidata a virar fármaco foi sintetizada tendo como base compostos naturais encontrados em bactérias marinhas, conhecidas como marinoquinolinas, que foram avaliadas quando descobertas contra a malária, doença de chagas e tuberculose. No entanto, os produtos naturais apresentaram apenas ação de moderada a fraca contra os patógenos.
“O núcleo dessas moléculas, conhecido por pirroloquinolina [que contém o núcleo 3H-pirrolo[2,3-c]quinolínico], nos chamou a atenção. Esta é uma estrutura rara dentre produtos naturais e pouco abordada na literatura científica”, disse Carlos Roque Duarte Correia, professor no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 2012, o grupo de pesquisadores da Unicamp publicou uma das primeiras sínteses das marinoquinolinas naturais na literatura.
“Durante o trabalho de síntese percebemos o enorme potencial farmacológico dessas moléculas. Fizemos então novas modificações estruturais na parte pirroloquinolina, empregando eficientes processos catalíticos, e a partir da estrutura obtida criamos uma nova molécula com potência ampliada em centenas de vezes contra o P. falciparum e sem aumentar sua toxicidade”, disse Guido.
Duarte Correia conta que, no estudo, foram testadas as 50 primeiras moléculas desenvolvidas a partir das marinoquinolinas. “Esse trabalho, no entanto, não para nessa publicação. Temos ainda uma série de outros compostos sendo desenvolvidos”, disse.
O grupo está caracterizando ainda o potencial dessa classe para tratar a malária causada por Plasmodium vivax, a forma da malária mais prevalente no Brasil, e está desenvolvendo a parte de farmacocinética do projeto – a reação do organismo ao medicamento.
“Se as propriedades do composto, como solubilidade, absorção, distribuição, metabolismo e excreção não forem adequadas, ele pode ser acumulado no organismo e se tornar tóxico para o paciente, o que inviabilizaria o medicamento. Após terminarmos essa etapa, nosso objetivo é fazer testes pré-clínicos e clínicos”, disse Guido.
Os mecanismos de ação da molécula ainda não são totalmente conhecidos. Sabe-se, porém, que entre eles está uma via clássica de inibição do parasita, conhecida como metabolismo de hemozoína.
Essa estratégia consiste em manter baixa a concentração desse composto que é tóxico para o parasita. Quando o parasita se instala no hospedeiro, ele infecta primeiramente as hemácias (glóbulos vermelhos), pois a hemoglobina presente nessas células é a única fonte de energia que ele tem para consumir. Mas a hemoglobina contém uma molécula de cofator ligada em sua estrutura chamada grupo heme, que na forma livre – quando está desligado da hemoglobina – é altamente tóxico para os parasitas.
Anos de evolução deram ao parasita a capacidade de desenvolver um mecanismo que polimeriza esse grupo, livrando-se assim de sua toxicidade. “Essa estratégia do parasita de obter energia sem se intoxicar funciona mais ou menos como jogar a poeira para baixo do tapete. O grupo heme continua lá, mas em uma forma polimerizada e insolúvel que não é tóxica para o parasita”, disse Guido.
A molécula desenvolvida pelo grupo de pesquisadores do CIBFar atua, entre outros mecanismos, impedindo essa polimerização e, assim, o parasita é intoxicado pelo grupo heme.
“A molécula atua impedindo a formação do polímero hemozoína, que é a forma que o parasita desenvolveu para se livrar da toxicidade do grupo heme. Ao impedir a formação da hemozoína o parasita morre”, disse Célia Regina Garcia, professora na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo e também autora do artigo. Garcia trabalhou em parceria com o CIBFar e foi responsável pelos testes do mecanismo de ação da molécula no parasita.
Outro indicador de que a derivada de marinoquinolina é forte candidata a fármaco está no fato de ela conseguir matar cepas resistentes a três dos principais medicamentos contra a malária: cloroquina, pirimetamina e sulfadoxina.
“A cloroquina tem sido pouco usada para o tratamento da malária falciparum, a malária responsável pelos casos mais graves e fatais da doença, e a expectativa é que a artemisinina siga o mesmo caminho. Atualmente, a artemisinina é o principal fármaco em uso para o tratamento da malária. Embora ainda eficaz, é um fármaco com os anos contados por causa da resistência, e essas cepas resistentes estão se alastrando em toda a Ásia. Existe, portanto, uma preocupação mundial em desenvolver fármacos para a malária e eu acho que o Brasil é um país que tem potencial de emergir nessa área”, disse Garcia.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) a malária mata hoje 445 mil pessoas por ano. “Se hoje, com o medicamento eficaz, temos um número tão alto de mortes, se não houver o desenvolvimento de novos fármacos no futuro a malária pode matar muito mais. É a parasitose que mais mata no mundo ainda que atualmente tenha tratamento relativamente eficaz”, disse Guido.
O artigo Discovery of Marinoquinolines as Potent and Fast-Acting Plasmodium falciparum Inhibitors with in Vivo Activity (doi: 10.1021/acs.jmedchem.8b00143), de Anna Caroline Campos Aguiar, Michele Panciera, Eric Francisco Simão dos Santos, Maneesh Kumar Singh, Mariana Lopes Garcia, Guilherme Eduardo de Souza, Myna Nakabashi, José Luiz Costa, Célia R. S. Garcia, Glaucius Oliva, Carlos Roque Duarte Correia e Rafael Victorio Carvalho Guido, pode ser lido no Journal of Medicinal Chemistry em https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acs.jmedchem.8b00143 .
*Este conteúdo foi originalmente publicado no site da Agência Fapesp