VINHEDOS DA GUASPARI: vinícola paulista inverteu o ciclo da colheita e está produzindo premiados Syrahs / Germano Lüders
Rafael Kato
Publicado em 19 de junho de 2017 às 09h34.
Última atualização em 23 de junho de 2017 às 19h44.
Dos campos de Bordeaux, na França, ao Vale de Napa, nos Estados Unidos, uma máxima é repetida à exaustão por todo vinicultor: “o vinho começa no vinhedo”. Nem os mais modernos tanques de aço inox ou tampouco os barris de carvalho poderão salvar um vinho feito a partir de uma uva ruim. A região sudeste do Brasil, conhecida historicamente como local dos piores vinhos do país, levou o ditado a sério e, agora, após o uso de uma nova técnica de manejo dos vinhedos, está produzindo alguns dos melhores vinhos tintos e brancos do país.
A expoente dessa revolução no campo é a Vinícola Guaspari. Localizada na cidade de Espírito Santo do Pinhal, distante 200 quilômetros da capital paulista, a vinícola produz premiados rótulos a partir da uva Syrah. Seu Vista do Chá 2012, por exemplo, ganhou a medalha de ouro na competição organizada pela revista especializada britânica Decanter em 2016. O rótulo Vista da Serra 2012 ficou com a medalha de bronze na mesma competição. Mas como foi possível produzir vinhos de qualidade internacional no estado conhecido por vinhos tintos de mesa adocicados e para paladares menos exigentes?
A resposta está na inversão da colheita com o uso de uma técnica conhecida como dupla poda. Desenvolvida pelo pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais Murillo Regina, com apoio do CNPq e da Fapemig, a inversão do ciclo da colheita é feita com um corte dos ramos em agosto e outro corte em janeiro. Com isso, em vez de se colher a uva no verão, como acontece normalmente no país, o período de colheita para os meses de julho e agosto. “Isso possibilita uma maturação ideal da uva, pois ela crescerá numa época de dias ensolarados, noites mais frias e pouca chuva. Tudo o que o vinhedo gosta e precisa”, afirma Regina. Nos testes realizados até agora, as uvas do tipo Syrah, Cabernet Sauvignon e Sauvignon Blanc foram as que mais se adaptaram à técnica.
Com a dupla poda foi possível emular as condições climáticas de grandes regiões vinícolas do mundo, como Bordeux, Napa e Mendoza, na Argentina. Como a outra característica desses lugares é a altitude elevada, a expansão do vinho no sudeste brasileiro acontece na antiga região produtora de café de altitude. Não é coincidência, portanto, que o primeiro vinhedo de dupla poda tenha surgido na cidade de Três Corações, em Minas Gerais, nos anos 2000. O Syrah Primeira Estrada, da vinícola Estrada Real, foi o primeiro vinho do sudeste a se destacar pela sua qualidade. “Eu já sabia do potencial da região, mas é o vinho na garrafa que convence o investidor e não artigo na revista Nature”, afirma Regina.
O investimento de peso veio com a Guaspari. Com 43 hectares de plantação, a propriedade é uma antiga fazenda de café de 1800. De acordo com consultores ouvidos por EXAME, o investimento na produção de vinho foi de 15 milhões de reais, excluindo aí a aquisição da terra. O curioso é que a vocação vinicultora da fazenda foi descoberta por acaso. Os atuais proprietários, donos de minas de ferro, cobre e ouro no Brasil e na América Central, estavam em busca de uma atividade agrícola para tornar a fazenda produtiva. A primeira ideia — que chegou a ser implantada – foram macadâmias. No entanto, como o ciclo produtivo era longo demais, cerca de sete anos, começaram a pesquisar sobre outras variedades de cultivo. Até que se depararam com os estudos de Regina na Epamig. O que começou como um teste em 2005, hoje é um negócio que deverá produzir, em 2017, 100.000 garrafas — a mais barata sai por R$ 82 (Vale da Pedra — Branco) e a mais cara por R$ 186 (Vista da Serra). “No começo, falavam que éramos loucos. Agora, nos chamam de visionários”, afirma Fabrizia Zucherato, diretora executiva da Guaspari.
A formação de um terroir no sudeste também é uma oportunidade para profissionais da área — para um enólogo seria como descobrir o Eldorado. “Fazer um vinho em São Paulo não há modelo a se seguir, como acontece em grandes regiões produtoras, como o Brunello di Montalcino, na Itália”, diz Marcelo Copello, curador do Rio Wine and Food Festival e publisher do Anuário Vinhos do Brasil. “Esse é um projeto que estará maduro em dez anos”.
Foi essa possibilidade criativa que atraiu o chileno Cristian Sepúlveda, enólogo residente da Guaspari. “Aqui tenho a oportunidade de descobrir e criar algo novo aqui”, diz Sepúlveda, que acumula uma passagem anterior pela gaúcha Miolo. Além dele, a vinícola conta com as consultorias do engenheiro agrônomo português Paulo Macedo — famoso por desenvolver vinhos no Vale do Douro — e do enólogo americano Gustavo Gonzalez, que trabalha no Vale de Napa.
A expectativa de melhora crescente tem animado o setor. Atualmente, o Brasil importa 90% de todo o vinho tinto fino que consome. Um mercado que movimenta, ao ano, um bilhão de reais. Ao melhorar a produção, as vinícolas nacionais têm maiores chances de entrar nesse mercado. “Ainda vamos ver muitos bons vinhos saindo da Guaspari. Isso se aplica a outros produtores dos arredores, tanto em São Paulo quanto em Minas Gerais, que têm feito excelentes vinhos com a inversão do ciclo das videiras, como a Casa Verrone, Estrada Real e Maria Maria”, afirma o sommelier Diego Arrebola.
Quantidade X Qualidade
Se tiver sorte e persistência, São Paulo poderá repetir o roteiro de outras regiões vinicultoras do mundo que passaram a trocar a quantidade pela qualidade da produção. Mendoza, na Argentina, começou este trabalho nos anos 1970, ao procurar terrenos mais elevados. Na França, o Languedoc-Roussillon, conhecido historicamente por seus vinhos de garrafão, passou a inverter a equação na década de 1980. Recentemente, um vinho dessa região — o rótulo Coteaux-du-Languedoc,— foi eleito o vinho jovem com melhor custo-benefício da França.
Esse mesmo desenho está acontecendo a 70 quilômetros da capital paulista, no município de São Roque, onde a Góes tem uma história comum às históricas vinícolas brasileiras. O negócio começou no início do século 20 por imigrantes europeus — no caso, portugueses — que se estabeleceram no interior e plantaram feijão, batata, milho. E uvas. Nos anos 30, a criação de um curso de enologia no município fez a produção de vinho dar um salto qualitativo, e motivou vários agricultores da região a abraçar de vez o vinho. Foi assim que surgiu a Vinícola Góes, em 1938. Nos primeiros anos, o vinho, feito com uvas Niágara e Isabel, boas para suco e resistentes ao clima quente e às chuvas da região, era envasado em barris de 100 litros e despachado de trem para São Paulo.
Os Góes rapidamente viraram os maiores produtores de vinho de São Roque e ganharam influência política — Claudio Góes, bisneto do fundador Dito Góes e presidente da companhia, foi eleito prefeito no ano passado. Para suprir a demanda crescente, a família comprou em 1989, um vinícola em Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul, em parceira com a família Venturini. Mas em todo esse tempo o carro-chefe da companhia eram os vinhos doces, que compõem o grosso do mercado nacional, mas são quase intragáveis para os bebedores um pouco mais exigentes. Até hoje os vinhos doces representam 80% do mercado brasileiro e são responsáveis pela maior parte dos 30 milhões de reais de faturamento da Góes. A Góes tem 200 funcionários e vendeu 7 milhões de garrafas em 2016, principalmente para o estado de São Paulo.
Com a Venturini os Góes tiveram a primeira incursão em vinhos finos. Mas as uvas viníferas mais usadas no mundo só foram chegar às duas propriedades paulistas da vinícola em 2000. A família achou por bem não pecar pela timidez: em uma área experimental, já testou 40 tipos de uvas, como Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Syrah, Arinto, Pinot Noir, Alicante. A estratégia é descobrir, com calma, aquelas mais resistentes ao clima e ao solo da região. A mais bem sucedida delas foi a francesa Cabernet Franc, uma prima mais suave da conhecidíssima Cabernet Sauvignon. A variedade é encontrada em praticamente todos os países grandes produtores de vinho e era uma das uvas finas mais usadas no Rio Grande do Sul até os anos 80, quando perdeu espaço por sua baixa produção. Mas em São Paulo a Cabernet Franc se adaptou como nenhuma outra, e hoje já ocupa sete dos 20 hectares da Góes. É usada, por exemplo, no Philosophia, vendido por 68 reais no site da vinícola.
A mais nova aposta da Góes é uma uva mais conhecida no Brasil, a Malbec, principal matéria prima dos onipresentes tintos argentinos. Depois de sete anos de teste, a Malbec finalmente foi colhida em 2017, e deve chegar aos mercados dentro de dois ou três anos. A cada nova variedade, a Góes faz testes para descobrir se o melhor método de colheita é a tradicional, nos meses de verão, ou a de inverno, entre maio e agosto. O método, reconhecem os empresários, foi inspirado na inovação da Guaspari, na divisa com Minas. A poda de inverno, iniciada há cinco anos, é usada hoje em um quarto das terras da vinícola. Na Cabernet Franc consegue adicionar 30 gramas de açúcar por litro de suco. A maior amplitude térmica entre o dia e a noite ainda dá mais cor ao vinho. “Essa inovação vai por o Sudeste e o Centro-Oeste na linha de frente do vinho nacional”, diz Willian Triches, professor de enologia do Instituto Federal de Educação em São Roque.
Como a produção de uvas viníferas ainda caminha em São Roque, a companhia também compra uvas de Minas Gerais para produzir vinhos como o Míneres, feito de Syrah. No Rio Grande do Sul, em parceria com a família Venturini, produz brancos, tintos e espumantes. A companhia ainda aposta na proximidade com São Paulo para estimular o turismo. Todas as semanas, a companhia recebe 3.000 visitantes, que visitam as instalações e almoçam em seu restaurante. “São Roque tem ótimos restaurantes e vinhos que melhoram a cada ano”, afirma Cláudio Góes.
Para relembrar das dificuldades de se produzir vinho de ponta no Brasil, a Góes precisou lidar, nos últimos dois anos, com efeitos meteorológicos inclementes. Ano passado um tornado destruiu parte da sede e do restaurante da propriedade. Este ano, as chuvas acima da média que caíram no inverno dificultaram a colheita. “Desenvolver a cultura do vinho no Brasil é uma cruzada”, diz Luciano Lopreto, diretor comercial da companhia. Natural de São Roque, ele passou por empresas como Ambev e Natura antes de voltar à cidade para tentar impulsionar a cultura dos vinhos finos em São Paulo. Trabalho, como se vê, não falta.