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Quem é a brasileira entre os 100 negros mais influentes do mundo

Kenia Maria estará em Nova York ao lado de nomes como Chadwick Boseman, de Pantera Negra, e a duquesa Meghan Markle – e tem muito a dizer. Veja a entrevista

Kenia Maria: "As mulheres não negras precisam entender o abismo socioeconômico que existe entre nós" (Daniel Chiacos/Divulgação)

Kenia Maria: "As mulheres não negras precisam entender o abismo socioeconômico que existe entre nós" (Daniel Chiacos/Divulgação)

Júlia Lewgoy

Júlia Lewgoy

Publicado em 1 de setembro de 2018 às 07h00.

Última atualização em 1 de setembro de 2018 às 07h00.

São Paulo - Quando a escritora e ativista Kenia Maria criou o canal no YouTube "Tá bom pra você?", em 2013, para questionar a falta de representatividade negra na publicidade, ela ouvia que isso era coisa de "negros raivosos". Cinco anos depois, uma família negra protagonizou um comercial do Boticário, mas a propaganda ainda foi alvo de ataques de ódio na internet.

É por isso que seu papel ainda se faz necessário –  e que ela é a brasileira da prestigiada lista dos 100 negros mais influentes do mundo, segundo o Mipad, a premiação mundial para afrodescendentes.

Na cerimônia em Nova York, em 30 de setembro, Kenia será homenageada ao lado dos brasileiros Rene Silva e Érico Brás, seu marido. Eles estarão com nomes como Chadwick Boseman, a estrela do filme Pantera Negra, e a duquesa Meghan Markle. 

Aos 41 anos, a carioca atua há mais de 20 anos para combater o racismo e o machismo. Ela integrou blocos afro e trabalhou com meninas vítimas de violência. Hoje, além de youtuber, Kenia é defensora na ONU Mulheres e acabou de lançar o livro infantil “Flechinha, o príncipe da floresta”, para dar um novo lugar para os negros nos livros didáticos. 

Na entrevista a seguir, Kenia diz que se percebeu militante na escola, quando não podia contar sobre sua casa ou religião, o candomblé, e que hoje faz política com o próprio corpo, quando usa as contas de orixás e não permite que a interrompam. "Não ser o seu lugar de fala não te exclui da responsabilidade de combater o racismo", deixa o recado. 

Para combater o racismo institucionalizado, você escreveu livros, criou um canal no YouTube e se tornou defensora da ONU Mulheres. Em que momento você se percebeu uma militante, com a responsabilidade de se posicionar?   

Quando chegou a adolescência e eu quis namorar, o racismo dificultou a minha vida. A escola, enquanto instituição, não te diz: “Oi, bem-vindo, você está em uma instituição racista”. Ela não diz que você é inferior. O racismo já é a regra e não precisa ser discutido, dentro dessa lógica  das instituições desagregadoras. Isso não é explícito, mas existe.

Na escola, aprendi que não seria a rainha de nada, que nenhum menino me acharia bonita, que eu estava fora de um padrão estabelecido. As meninas não seriam minhas amigas e a professora olharia pra mim com pena. Aí nasceu uma militante, aos 14 anos.

Como quem não é escritor, youtuber ou integrante da ONU pode ser um antirracista?

É simples. Racismo é crime, como roubo, assassinato, sequestro. Você não precisa escrever um livro para discordar e lutar contra. Para evitar a morte de uma mulher negra, por exemplo, às vezes é preciso "meter a colher", sim. É simples.

Não adianta ter o melhor amigo negro e não contratar negros para cargos de chefia da sua empresa. Ter um amigo ou avô negro não te faz menos racista. Você precisa estar disposto a rever privilégios. Não precisa ser negro, escritor, youtuber ou artista, basta ser cidadão.

Não ser o seu lugar de fala não te exclui da responsabilidade de combater o racismo. Se incomode com a ausência de negros na sua universidade, na reunião de negócios, nos espaços econômicos. É preciso entender a ponto de se incomodar com a ausência de pessoas negras  dentro dos espaços de poder. A ausência de pessoas negras nesses espaço é um sinal de violência e a violência não é um problema da população negra.

Recentemente, muita gente questionou a "falta de representatividade branca" em um comercial do Boticário com uma família negra. Como dialogar com quem pensa assim?

É complicado dialogar com quem se nega a entender que a diversidade  é importante. A falta de representatividade negra está presente nas milhares de estátuas colocadas na cidade em homenagem às personalidades brancas, na história, na literatura, na dramaturgia, no cinema. O padrão é o mesmo. E é violento.

Ausência do negro nos espaços de poder é violência, portanto, precisamos falar sobre como resolver um problema que já foi diagnosticado. Não se trata de achismo. Um amigo americano de Los Angeles me disse que o Rio de Janeiro  se comporta como nos anos 50 em relação a questão racial. Isso é bizarro. Existe um interesse, uma escolha na atitude de quem se nega a aceitar a diversidade na publicidade.

Você criou o canal do YouTube "Tá bom pra você?" em 2013, a pedido da sua filha, Gabriela. Como tem sido essa experiência? Você vê uma transformação na forma como questões raciais são encaradas pelo público?

Tem um grupo que escolheu não mudar porque acha cômodo como está. Mas também tem gente muito incomodada, negros e não negros. Ações coletivas e manifestações de protesto lideradas por jovens negros estão presentes nas redes sociais.

Hoje, uma campanha publicitária racista já não passa sem ser notada. Lembro que quando criei o "Tá bom pra você?", questionar a publicidade era coisa de negros radicais, raivosos. Minha mãe e alguns amigos me pediam para falar de outra coisa, achavam polêmico demais questionar a publicidade publicamente.

Eu não conseguia, a publicidade me incomodava muito e ainda incomoda. Me orgulho muito ter criado o canal e de ver que ele cresce muito e que até virou um movimento virtual.

Na ONU Mulheres, você é defensora das mulheres negras. Como é seu trabalho lá e onde você quer chegar?

Participo de ações que promovem a igualdade de gênero. Estamos na década do afrodescendente, criada pela ONU, onde 194 países se comprometeram a combater o racismo. Lutar pela equidade de gênero e contra o racismo são causas que carrego desde os 14 anos. Nessa época, descobri dentro da escola que sou uma mulher negra e que não devia falar que era candomblecista e que morava em uma comunidade, para ser melhor aceita.

Quando decidi dizer de onde eu venho e que não sou cristã, a exclusão aumentou. Percebi que meu corpo é um corpo político. Eu faço política com meu corpo preto e minhas contas de orixás no pescoço e não permitindo ser interrompida. Quero contar novas histórias. Escrever pode curar tudo isso.

Como as mulheres que não são negras podem contribuir com a luta das mulheres negras?

Mulheres negras ainda estão em condições muito desfavorecidas. Mulheres negras, por exemplo, não têm direito ao aborto seguro enquanto ele não for legalizado. A lei Maria da Penha não contempla mulheres negras, pois a violência doméstica ainda não é filmada por câmeras de segurança onde o existe o abandono do estado.

Portanto, as mulheres não negras precisam entender o abismo socioeconômico que existe entre nós e se incomodar lutando conosco.

Você acabou de lançar um livro infantil para dar um novo lugar para os negros nos livros didáticos. Como falar com as crianças sobre consciência racial?

Criança é bem mais fácil. Ela simplesmente não nasce racista. Antes de um adulto racista ensinar uma criança branca a ser racista, ela nem sabe o que é cor de pele.

Criança quer ouvir histórias que estimulem sua imaginação. Ela precisa do mundo encantado  e não tem problema nenhum se ele for yoruba, grego, persa ou indiano. Ela só precisa se ver naquele mundo. A criança entende a necessidade da representatividade quando descobre com um sorriso que o cabelo dela é igual ao da rainha e ao da heroína.

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