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Quando um plebeu viaja em uma mansão dos ares

O escritor Fernando Morais embarcaou na primeira classe do maior avião do mundo, de Nova York para Dubai num voo de 14 horas

Num voo de 14 horas, o escritor fez o impossível para não dormir – e ainda desceu de banho tomado (AFP/AFP)

Num voo de 14 horas, o escritor fez o impossível para não dormir – e ainda desceu de banho tomado (AFP/AFP)

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Da Redação

Publicado em 20 de junho de 2012 às 12h59.

São Paulo - Ao transpor a porta de entrada do segundo andar do avião, fica fácil entender o que levou o príncipe saudita Alwaleed bin Talal al Saud a batizar de “Palácio Voador” seu Airbus A380 particular. O modelo da Emirates Airlines que me leva de Nova York a Dubai não tem salões de jogos e banheiras de hidromassagem, como o de sua alteza, mas certamente oferece uma primeira classe anos-luz à frente daquelas a que os plebeus como eu estão habituados. Salvo os jatos executivos de alto luxo ou os aviões de nababos, não se tem notícia de que alguma outra aeronave ofereça a suntuosidade do A380.

A imagem que vem à memória, ao pisar no corredor do maior avião civil do mundo, é das minhas primeiras viagens como repórter, no final dos anos 1960. O único meio de transporte para se chegar à inóspita e desconhecida Amazônia, naquela época, eram os velhos C47 da Força Aérea Brasileira e do Correio Aéreo Nacional. Depois de esperar dias, à vezes semanas na fila para conseguir um lugar, o fotógrafo e eu nos instalávamos nos bancos de ferro soldados das laterais do aparelho.

Em meio a dezenas de índios, garimpeiros e caboclos que transportavam porcos, galinhas e sacos de víveres, passávamos horas intermináveis sobre o tapetão verde-escuro da selva. O serviço de bordo, claro, era zero. Quem não levasse uma providencial garrafa de água mineral ou um sanduíche estava condenado a viajar com sede e de barriga vazia. Como íamos todos de costas para as janelinhas da aeronave, espiar a mata implicava em voltar a cabeça para trás – o que garantia uma visão deslumbrante e quase sempre um incômodo torcicolo. Jamais passaria pela minha cabeça que menos de 50 anos depois eu embarcaria em um avião com cama, televisão, serviço de hotel cinco estrelas e chuveiro quente.

A aventura de viajar nesse palácio voador começa três horas antes da decolagem, quando um veículo estaciona na porta da casa (ou do hotel) do passageiro para levá-lo ao aeroporto. Não se trata de uma dessas vans que recolhem as pessoas em vários endereços, mas de um Cadillac Escalade preto, com motorista de terno azul-marinho, exclusivamente para você. Na entrada do aeroporto, outro funcionário pega a bagagem, o passaporte e a passagem, faz o checkin e acompanha o felizardo até a sala VIP. Quando os alto-falantes anunciam a hora da partida, reaparece para conduzi-lo até a porta superior que dá acesso ao avião.


Por se tratar de uma aeronave com dois andares e capacidade para transportar mais de 800 passageiros, dependendo de sua configuração, o A380 só pousa em aeroportos equipados com fingers duplos, novidade ainda inexistente no Brasil. “Seria uma loucura embarcar e desembarcar as 517 pessoas deste voo por uma única porta”, explica a paranaense Daniela, uma das 120 brasileiras contratadas para trabalhar na frota de 21 aparelhos operados pela Emirates.

Devidamente instalado, o viajante novato leva algum tempo para descobrir os requintes a que a passagem (de cerca de 19 400 dólares) lhe dá direito. Para começar, a viagem não será feita em uma confortável poltrona reclinável. Revestidas de nogueira, as catorze suítes destinadas à primeira classe têm cerca de dois metros de comprimento e 90 centímetros de largura cada uma, espaço concebido para receber confortavelmente pessoas de qualquer estatura e peso. Sobretudos, paletós, pastas e pequenos volumes podem ser depositados no guarda-roupa individual embutido na coluna que separa uma cabine da outra.

Uma tela do tipo touch screen do tamanho de um tablet permite que, sem sair do assento, o passageiro abra e feche a porta de correr, uma garantia de privacidade quase total durante o voo. Para quem viaja acompanhado, recomenda-se escolher as duas suítes do corredor do avião, cujas paredes divisórias podem ser recolhidas, duplicando o espaço. O mesmo controle touch screen que abre e fecha as portas regula a luz do abajur e dos dois refletores de leitura, além de ejetar o minibar embutido sob a janela contendo água mineral Perrier, sucos e refrigerantes e, ao lado dele, uma cesta com chocolates suíços. É também com um toque no tablet que se acende o monitor de plasma de 21 polegadas, por meio do qual o passageiro pode escolher entre mais de 1 200 canais de jogos e filmes, além de sintonizar um canal especial que exibe ao vivo as principais manchetes da BBC-TV.

Mesmo sem dispor de um notebook ou de um celular, pode-se navegar na Internet, enviar e receber e-mails e torpedos e telefonar para qualquer parte do mundo ou para algum passageiro – ou passageira, claro – do próprio voo. Basta digitar um teclado alfanumérico do tablet e as mensagens aparecem no monitor de 21 polegadas – certamente mais confortável que em um notebook comum. A tarifa para o envio ou a recepção de e-mails, sem anexos, é de um dólar por mensagem. Já o preço dos telefonemas depende do país chamado. Os valores são cobrados após a introdução de algum cartão de crédito internacional na fenda existente ao lado do monitor. Ao leve toque de um botão emerge, ao lado da tela da TV, uma pequena penteadeira cuja iluminação faz lembrar, em miniatura, o espelho de um camarim. Sob as luzes, o viajante encontrará uma seleção de cremes hidratantes e removedores de maquiagem.


As diferenças em relação ao palácio voador do príncipe Talal diminuem após a decolagem, quando a primeira taça de champanhe Cuvée Dom Pérignon 2003 é servida pelo jovem e sorridente comissário Christian, nascido na Argentina. Ele faz parte dos 30 membros da tripulação, composta por dois pilotos, dois copilotos, 11 comissários para atender à classe turística, nove para a executiva e seis para a primeira.

Além de Christian e da brasileira Daniela, os demais comissários da primeira classe deste voo são naturais de Malta, Malásia, Filipinas e Coreia do Sul. Raramente se veem comissários nascidos em Dubai nos voos internacionais da Emirates. Mulheres, em hipótese alguma. Junto com o champanhe, Christian traz um nécessaire de couro contendo creme e aparelho de barbear, escova e pasta de dentes, um par de meias, chinelos e… um confortável pijama cinza-claro.

Duas horas e algumas taças de Dom Pérignon depois, cada passageiro recebe o cardápio e a carta de vinhos. Salvo o serviço de porcelana inglesa e os talheres de prata Robert Welch, o que faz a diferença do menu não são os pratos tradicionais – carne, massa, frango ou peixe –, mas a lista de entradas, onde refulge uma iguaria, esta, sim, digna de príncipes: caviar malossol. Mesmo se tratando de um luxo de preço estratosférico, cujo quilo começa a ser cotado a partir de 8 mil reais, as porções servidas são muito generosas – e repetidas tantas vezes quantas desejar o passageiro.

Uma breve consulta ao Google, a 12 mil metros de altitude, revela que em importadoras brasileiras os vinhos oferecidos para acompanhar as refeições podem custar de 135 reais (o norte-americano Goldeneye Pinot Noir 2006 – Anderson Valley) a 700 reais (o francês Château Pontet Canet 2000 – Pouillac). Submetida via Internet em pleno voo ao brasileiro Breno Raigorodsky, juiz internacional de vinhos, a minicarta é aprovada com louvor e aplausos.

“Nem todos são top de linha, mas nenhum deles frequenta a vala dos comuns” assegura o enófilo. “Sem dúvida, esta é a melhor carta de vinhos que já vi voar.” Após a sobremesa, o passageiro pode escolher entre o porto Graham’s 1991 Vintage (243 reais a garrafa, em importadoras paulistas) e o Château Rieussec 2003 – Sauternes (127 reais).


Pela primeira vez em minha longa trajetória de passageiro aéreo, com um carnê de milhares de horas de voo, eu me esforçava para não dormir. A insônia permitirá desfrutar dos dois bares existentes nos extremos da primeira classe, ambos com serviço permanente de bebidas, refrescos, canapés e jornais do dia.

Apesar das tantas tentações porém, o sono acaba batendo. Nessa hora, o passageiro verá o encosto, o assento e o descansa-pés da poltrona se transformarem em um colchão confortável até para grandões, sobre o qual a comissária estende um lençol branco de algodão egípcio e um travesseiro de plumas. Confesso que dormi como se estivesse na cama king-size de um hotel de luxo.

Quando as primeiras luzes de Dubai aparecem no horizonte, catorze horas após a decolagem em Nova York, é chegada a hora de desfrutar de um luxo nunca visto em aviões comerciais: um reconfortante banho quente, disponível nos dois banheiros destinados aos passageiros da primeira classe.

Com as paredes recobertas de nogueira e pias de mármore, o espaço de três metros por dois permite que o prazer seja compartilhado por “no máximo duas pessoas”, conforme informa a plaquinha afixada na porta de entrada. Cada passageiro – ou casal – pode permanecer ali por 20 minutos. Instalada dentro de um box de acrílico transparente, este também capaz de comportar duas pessoas, a ducha se desliga automaticamente depois de cinco minutos de uso, não sem que o passageiro receba antes um aviso. Após o banho, o viajante terá à disposição toalhas felpudas, secador de cabelo, cremes para a pele e águas de colônia.

Após o pouso no monumental aeroporto de Dubai, um funcionário de jaqueta vermelha recolhe a bagagem na esteira, acompanha o passageiro durante os trâmites burocráticos e o leva até o Mercedes-Benz que aguarda na saída do aeroporto para transportá-lo ao hotel.

O sonho chegou ao fim. Nesta hora é inevitável pensar que o celebrado repórter e escritor Gabriel García Márquez tinha razão ao afirmar que o jornalismo é a melhor profissão do mundo.

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