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O médico-monstro e os limites do assédio

O caso de Larry Nassar dá uma nova dimensão ao movimento contra o assédio sexual nos Estados Unidos – e bons argumentos para os dois lados do debate

Larry Nassar é um caso extremo. Foi condenado na quarta-feira, dia 24, a 40 ou 175 anos de prisão
DR

Da Redação

Publicado em 1 de fevereiro de 2018 às 12h03.

Última atualização em 1 de fevereiro de 2018 às 12h25.

Quando parecia que o movimento de denúncias de assédio sexual nos Estados Unidos pudesse arrefecer, depois de algumas acusações exageradas e de uma carta pública de cem artistas e intelectuais francesas criticando uma “caça às bruxas” contra os homens, o caso Larry Nassar lhe deu não apenas um redobrado fôlego, mas um senso de prioridade.

Nassar é um caso extremo. Foi condenado na quarta-feira, dia 24, a 40 ou 175 anos de prisão. A alternativa da pena não representa um sinal de dúvida da juíza que o sentenciou, Rosemarie Aquilina. Ao contrário. Ele foi condenado a 40 anos de cadeia, com contagem a ser iniciada após o cumprimento de uma pena de 60 anos em prisão federal em outro julgamento, por pornografia infantil.

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Mas, caso Nassar venha a viver mais do que qualquer expectativa razoável (ele tem 54 anos) ou se beneficie de algum programa de redução de pena… aí passa a valer a troca da sentença: em vez de 40 anos, sua condenação se torna de 175 anos.

“Eu acabo de assinar a sua sentença de morte”, afirmou a juíza, dirigindo-se ao réu.

Uma condenação desse porte era requerida pela enormidade do crime. Nassar bateu recordes de abuso sexual. Durante duas décadas, molestou mais de 150 mulheres. Ou melhor, meninas. Algumas na faixa dos seis anos.

Seu caso é muito pior que o de Roger Abdelmassih, condenado pelo abuso sexual de 91 mulheres em sua clínica de fertilização. Não apenas Nassar atacou mais; ele atacou adolescentes e até crianças. Entre elas, várias atletas olímpicas, que tratava como médico da equipe nacional de ginástica.

Contava com a certeza de que, frágeis, elas não teriam voz para denunciá-lo. As poucas que o fizeram foram desacreditadas.

Só que o tempo passou, e as crianças cresceram. E é aí que entra o movimento #Metoo, das denúncias de assédio. Ele criou um contexto social em que as vozes das vítimas (e uma investigação de 16 meses do jornal Indianapolis Star) ganharam eco.

Primeiro, nas redes sociais. Depois, no tribunal. O julgamento de Nassar estava programado para durar quatro dias, mas se estendeu por sete, porque a juíza Rosemarie permitiu que vítimas que não estavam no processo viessem dar seus depoimentos. Graças ao movimento, elas tiveram coragem de se expor às dezenas (a ação começou com apenas uma mulher, hoje com 32 anos, e uma segunda que corroborou a acusação de forma anônima).

No total, 156 mulheres ficaram frente a frente com o acusado, incluindo a mãe de uma jovem que se suicidou, vítima de uma depressão iniciada ou agravada pelo abuso.

Nassar conseguiu ficar impune durante tantos anos porque sua especialidade – osteopatia – implica a manipulação de músculos, ossos e articulações para aliviar dores. Só que, durante as sessões, Nassar penetrava as jovens com os dedos na vagina e no ânus. Quando surgiam reclamações, ele dizia que suas ações faziam parte do tratamento.

Ele usou este mesmo argumento no julgamento. Numa carta à corte, afirmou que sua técnica era profissional, não sexual, e ele estava sendo mal interpretado porque, durante uma investigação, a polícia encontrou imagens de pornografia infantil em seu computador (que lhe renderam a condenação federal de 60 anos). Obviamente, a “explicação” não convenceu ninguém.

Mas não convenceu porque os tempos são outros. Durante anos, essa desculpa tinha servido para aplacar dúvidas de pais ou pelo menos calar os detratores. Nassar contava com o apoio de praticamente toda a cúpula da Associação Olímpica dos Estados Unidos.

Não à toa, a organização de ginástica americana, USA Gymnastics, confirmou que toda a sua diretoria vai renunciar a seus cargos, provavelmente esta semana.

A organização, baseada em Indianápolis e responsável pela preparação de atletas de todo o país, é acusada de ter acobertado Nassar, direta e indiretamente – com uma cultura machista que incluía, segundo acusações, abusos por parte de técnicos, também.

Já houve até quem comparasse o caso Nassar com o escândalo dos padres pedófilos dos Estados Unidos (protegidos durante décadas pelo arcebispo de Boston).

Um comediante desajeitado ou bruto?

O televisionamento do julgamento de Nassar, que divulgou a postura impecável da juíza e a coragem das vítimas (várias recusaram este termo, apelidaram-se de sobreviventes), deu uma nova dimensão ao movimento contra o assédio.

Mas o caso Nassar alimenta com semelhante força os argumentos dos dois lados do debate. Para as ativistas que querem dar um basta definitivo à discriminação contra as mulheres, ele mostra o horizonte para o qual a cultura machista aponta.

Como disse Petula Dvorak em sua coluna no Washington Post, “é verdade que Nassar era um predador determinado, mas seu sucesso dependeu de uma nação de co-conspiradores bem versada em desacreditar as mulheres”.

Não é mera retórica. Garotas muito jovens foram forçadas a continuar o tratamento com um médico que as molestava, às vezes na frente dos pais (tampando a visão deles com seu corpo), sem coragem de reclamar ou não recebendo crédito quando o faziam.

Nassar é um extremo, mas de uma situação que se repete. Depois da primeira ação contra o comediante Bill Cosby, mais de 50 mulheres tomaram coragem para acusá-lo; só 12 anos depois do primeiro alerta de assédio contra o produtor de cinema Harvey Weinstein, as acusações contra ele se disseminaram (com mais de 80 mulheres reportando abusos).

O presidente do país, Donald Trump, foi flagrado num vídeo gabando-se de que, como celebridade, podia “agarrar as mulheres pela b…”. O vídeo, exibido durante a campanha eleitoral, não impediu que ele fosse eleito.

Por outro lado, Nassar é também um símbolo para os que condenam exageros na campanha anti-assédio. Porque ele explicita uma clara distinção entre crime e deslize.

Na semana anterior à condenação de Nassar, o caso de assédio (ou suposto assédio) mais discutido nos Estados Unidos era o relato de uma moça anônima que acusava o comediante Aziz Ansari de molestá-la.

A acusação aprofundou as divisões entre ativistas. Para começar, Ansari recebeu no início do mês o prêmio de melhor ator de comédia no Globo de Ouro, pela série Master of None (senhor de ninguém, em tradução livre), da Netflix – e recebeu o prêmio ostentando um broche com a inscrição Time’s Up (esse tempo acabou), de apoio ao fim do assédio e da discriminação contra mulheres.

Foi então que sua acusadora decidiu dar uma entrevista relatando os maus bocados que passou num encontro com ele. Os dois foram para seu apartamento, Ansari fez avanços indelicados, ela se sentiu constrangida, deu a entender que não estava gostando, mas não foi clara o suficiente. Ele afirmou que achava ter se envolvido em atividades consensuais, ela afirmou ter se sentido molestada (quando finalmente saiu da casa dele, chorou no trajeto de volta).

Esta é a típica situação que não se pode afirmar ser preta nem branca – há bem mais do que 50 tons de cinza nas relações sentimentais.

Alguns ativistas contra o assédio afirmam que é preciso combater uma cultura que faz com que as mulheres tenham medo de dizer não com mais clareza. Ou que os homens precisam aprender a se comportar melhor.

Foi este o ponto que originou a crítica das francesas. A carta aberta, divulgada no início do ano, diz que “a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não pode existir sem a liberdade de importunar”, e as mulheres devem aprender a responder aos importunos “de outras maneiras que não se fechando no papel de presas”.

A reação à carta não demorou. Na própria França, o jornal Libération questionou: “Liberdade de expressão ameaçada? Sério?”, sob a foto de três das signatárias: a atriz Catherine Deneuve, a escritora Catherine Millet (que escreveu um livro sobre sua vida sexual) e Brigitte Lahaie, apresentadora de TV e ex-atriz pornô.

A ministra francesa Marlène Schiappa lamentou que partes da carta são chocantes e falsas. “Nós já temos uma tremenda dificuldade de convencer jovens mulheres de que se um homem esfrega seu membro em seu corpo no metrô sem o seu consentimento, isso é assédio sexual, punível com até três anos de cadeia e uma multa de 75.000 euros”, disse.

É possível, como disse a correspondente da revista The Atlantic na França, Rachel Donadio, que a carta encabeçada por Catherine Deneuve represente menos uma diferença cultural entre uma França libertária e uma América puritana e mais a reação de uma geração mais velha, acostumada ao status quo que permitiu, por exemplo, que o ex-diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn tivesse protagonizado inúmeros casos de assédio (até ser preso nos Estados Unidos por molestar uma empregada do hotel).

Nesse sentido, o ator David Schwimmer, que ficou conhecido como o Ross da série Friends, se uniu à diretora e roteirista Sigal Avin para criar uma série de pequenos filmes educativos, chamada

#ThatsHarassment (isso é assédio).

A ideia é mostrar situações que até pouco tempo atrás eram toleradas, mas que agora, cada vez mais e em cada vez mais lugares, tendem a ser denunciadas.

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