‘Medida Provisória’, um filme distópico sobre o racismo no Brasil
A liberação do filme para o público geral depende da Ancine, que há mais de um ano não dá retorno conclusivo aos recursos submetidos pela produção, segundo sua assessoria.
AFP
Publicado em 19 de dezembro de 2021 às 14h21.
"Como a gente deixou chegar nesse ponto? Como a gente riu disso?", questiona um personagem no longa " Medida Provisória", uma distopia na qual o governo brasileiro ordena o "retorno" das pessoas negras para a África sob o pretexto de reparar o passado escravocrata.
Estreia do ator Lázaro Ramos na direção, o filme segue sem previsão de lançamento comercial, em meio a dificuldades com a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Foi exibido pela primeira vez no Brasil durante o 23º Festival Internacional de Cinema do Rio, com uma calorosa recepção.
A liberação para o público geral depende da Ancine, que há mais de um ano não dá retorno conclusivo aos recursos submetidos pela produção, segundo sua assessoria.
Desde que o imbróglio veio à público, a agência tem sido acusada de censura velada ao filme, em especial por opositores ao governo do presidente Jair Bolsonaro.
"Não vou dizer se é burocracia, ou censura, qualquer um dos dois é um entrave para a cultura", declarou Lázaro Ramos em debate posterior a uma exibição no festival.
Em abril, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, de promoção da cultura afro-brasileira, pediu boicote ao longa, descrevendo-o como "pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente".
'Sensibilizar'
A obra já rodou o mundo em festivais, com uma ótima recepção pela crítica e prêmios no Indie Memphis Film Festival, no Pan African Film (ambos nos Estados Unidos), no Festival de Huelva (Espanha) e no Festin Festival (Lisboa).
"O propósito do filme é sensibilizar. Quero que a pessoa assista, chore e pense que ela é capaz de fazer alguma coisa na luta antirracista. Quero que a pessoa sorria e se sinta forte", disse à AFP o diretor, que apontou que a narrativa brinca com sua linguagem, passeando entre o drama, a comédia e o thriller.
No Festival do Rio, o elenco e a equipe viram pela primeira vez a reação do público brasileiro. "Foi muito emocionante", contou à AFP a atriz Taís Araújo. Ela interpreta a médica Capitu, casada com o advogado Antônio, papel do anglo-brasileiro Alfred Enoch, conhecido por "Harry Potter" e "How to Get Away with Murder".
Sua personagem é uma "mulher negra que inicialmente não está a fim de falar sobre racismo, só quer se dar o direito de viver, mas a vida chama e ela precisa mergulhar" no tema, explicou.
"Medida" é uma adaptação da peça "Namíbia, não!", de 2011, também dirigida por Lázaro Ramos e escrita por Aldri Anunciação, que também é ator e corroterista do longa.
'Filtro'
A Ancine alega que o projeto está em "fase de análise do pedido de investimento para a sua distribuição em salas de cinema" e segue o "trâmite normal".
A produção rebateu, detalhando que o que impede o lançamento é "a demora da Ancine em concluir os trâmites necessários para a troca de distribuidora do filme", pedido feito no final de 2020.
A área técnica do órgão público não encontrou nenhum obstáculo e já deu sinal verde, mas ainda falta aprovação final de sua Superintendência de Fomento, segundo a advogada do filme.
Assim, a data de estreia já precisou ser alterada duas vezes. Por ter recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) investidos em sua produção, esclareceu ela, o primeiro destino comercial do longa precisa ser o cinema.
O caso lembra o ocorrido com "Marighella", sobre o guerrilheiro Carlos Marighella, morto pela ditadura militar. Dirigido por Wagner Moura, o filme teve dois recursos negados pela Ancine em 2019.
Em julho do mesmo ano, Bolsonaro havia expressado o desejo de filtrar produções do cinema nacional.
"Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, ou extinguiremos", afirmou o presidente.
Atrasado ainda pela pandemia, "Marighella" - protagonizado por Seu Jorge, que também atua em "Medida", no papel do jornalista André - acabou estreando em novembro deste ano.
Questionado sobre as dificuldades de se abordar temáticas sociais no Brasil, Lázaro Ramos ressaltou o papel da arte: "A gente não vai parar de debater, porque é um tema importante, é pensar como esse país foi construído [...] A arte é muito poderosa, a gente não pode abrir mão desse lugar".