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Livro faz passeio pela Bahia nos anos 60 e tem Glauber Rocha como guia

A Bahia de hoje – brilhante, criativa, inquieta culturalmente – começou nos fervilhantes anos 60. Biografia do cineasta Glauber Rocha joga novas luzes sobre esse período

Biografia fala de vida e obra do cineasta até a consagração de seu segundo longa-metragem, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Reprodução/Cinemateca brasileira)

Biografia fala de vida e obra do cineasta até a consagração de seu segundo longa-metragem, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Reprodução/Cinemateca brasileira)

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Da Redação

Publicado em 8 de novembro de 2011 às 15h10.

São Paulo - Ele chegou ao lugar certo na hora exata. Filho de uma dona de casa que o levava aos cultos protestantes aos domingos e de um caixeiro-viajante que percorria com seu primogênito as feiras embebidas em cordel, Glauber de Andrade Rocha nasceu em Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia. Já adolescente, em Salvador, integrou aquele que foi um dos períodos mais interessantes do estado: a Renascença Baiana, a efervescência cultural que tomou conta de Salvador nos anos 50 e 60. Trinta anos depois de sua morte, em 1981, Nelson Motta lança neste mês Primavera do Dragão, biografia dos anos de juventude de Glauber, que fala de sua vida e obra até a consagração de seu segundo longa-metragem, Deus e o Diabo na Terra do Sol, no Festival de Cannes de 1964. Uma das leituras possíveis do livro de Nelson Motta é uma viagem no tempo: um passeio pela fascinante Bahia nos anos 60, tendo Glauber Rocha – como o poeta Virgílio na Divina Comédia – como guia.

O homem que deu o pontapé inicial à primavera cultural baiana era médico. Seu nome: Edgard Santos, primeiro reitor da Universidade Federal da Bahia. Com o intuito de criar um polo cultural no estado, Edgard reuniu na instituição vários artistas europeus de vanguarda. Sobrava dinheiro: a dotação encaminhada à universidade era quase igual ao orçamento da prefeitura de Salvador. Como sua prioridade era a cultura, as faculdades de teatro, música e dança foram apelidadas de “as pupilas do senhor reitor”, numa referência jocosa ao clássico do português Júlio Dinis. De São Paulo, onde havia projetado o prédio do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, foi para Salvador a arquiteta italiana Lina Bo Bardi para fundar e dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia. Do Rio de Janeiro, chegou o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, professor da Escola de Música (que se notabilizou como o professor de harmonia de vários nomes da MPB, entre eles Tom Jobim). Chegaram também a Salvador a bailarina polonesa Yanka Rudzka, para a Escola de Dança, o filósofo português Agostinho da Silva, fundador do Centro de Estudos Afro-Orientais, e o pernambucano Eros Martim Gonçalves, formado pelo Ruskin College Oxford e com estágio na Companhia Old Vic, na Inglaterra, convidado a dirigir a Escola de Teatro.


A turma de Glauber não via a universidade com bons olhos – apesar do auxílio no custeio das revistas que eles publicavam. Como se dentro do modus operandi de jovens “comunistas”, “transviados” e “anticatólicos”, como Glauber mesmo definia, não coubesse apoiar a reitoria. “A gente agia de acordo com as modas de nossa turma. Éramos filósofos de porta de padaria”, diz João Ubaldo Ribeiro, que, assim como Glauber, cursava a Faculdade de Direito. Nessa época, os dois formavam uma “dupla dinâmica” do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, molambentos e sempre com a barba por fazer. Ubaldo e Glauber eram amigos do Colégio Central, do grupo formado pelo artista plástico Calasans Neto, o poeta Fernando da Rocha Peres e o cineasta Paulo Gil Soares – conhecidos como Calá, Bananeira e Gil. Uma turma que desde adolescente era consumida pelo “fogo de realização”, como eles próprios diziam, e que na boemia do Bar Brasil e do Mercado Sete Portas, entre uns goles e outros, elaborava ambiciosos projetos culturais, bradando versos de Murilo Mendes e prometendo “inaugurar no mundo o estado de bagunça transcendente”.

E Glauber bagunçava. Tinha um programa no rádio sobre cinema, dirigia apresentações de teatro conhecidas como Jogralescas e a cooperativa Yemanjá Filmes, participava das revistas Mapa e Ângulos, além de escrever para o jornal Diário da Bahia.

Sertão e música de vanguarda

O Teatro Castro Alves, semidestruído por um incêndio em 1958, antes de sua inauguração, sediava não apenas as apresentações da Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Eros Martim Gonçalves (com quem Glauber polemizava, antes de se tornar um fiel apoiador dele). Abrigava também a sala de projeção do cineclube de Walter da Silveira – grande formador de cineastas e cinéfilos da Bahia –, os Seminários de Música Livre, de Koellreutter, e a primeira sede do Museu de Arte Moderna da Bahia, onde atuava Lina Bo Bardi. Foi lá que o cineasta brasileiro e a arquiteta italiana se conheceram. Lina marcou presença nos bastidores de Deus e Diabo na Terra do Sol: uma das nove versões do roteiro do longa foi datilografada com a máquina de escrever do MAM/BA, emprestada por Lina. Sua participação não se encerra por aí: de conjunto de linho branco, debaixo do escaldante sol do sertão, Lina cruzaria a caatinga baiana até Monte Santo para ajudar na escolha das locações – embora não apareça nos créditos.


A música dissonante que embala Pátio, primeiro curta-metragem de Glauber, de 1958, foi inspirada por Hans-Joachin Koellreutter. Encarregado dos Seminários de Música Livre na universidade, o maestro alemão foi o primeiro a divulgar, em terras brasileiras, a música da chamada “segunda escola de Viena”, capitaneada pelo compositor Arnold Schoenberg, o criador do estilo conhecido como dodecafonismo. “Koell­reutter era um personagem de Joseph Conrad, uma figura mítica da Renascença Baiana. Ora um alemão fino, educado, ora um bárbaro truculento”, relembra o músico Tom Zé, um dos grandes nomes do Tropicalismo, que foi aluno de Koellreuter na década de 1960. Nos concertos dos Seminários, se ouvia do jazz de Gershwin a Brahms e Beethoven, música medieval e barroca tocada em oboé e agogô.

Entrelaçando a juventude baiana e os mestres vanguardistas, a montagem de Ópera dos Três Tostões catalisou o impulso modernizante da época na análise do compositor Caetano Veloso. O espetáculo reuniu, em um palco de meia-arena nos escombros do Teatro Castro Alves, direção de Martim Gonçalves, cenografia de Lina Bo Bardi, coreografias de Yanka Rudzka e música de Koellreutter. Aos mestres juntavam-se os talentosos alunos Helena Ignez, Othon Bastos e Geraldo Del Rey – que mais tarde seriam conhecidos no cinema. Ao longo da temporada, a peça foi vista por cerca de 100 mil pessoas. Foi a primeira vez que Caetano Veloso, Maria Bethânia, Tom Zé e Glauber Rocha assistiram a uma peça do alemão Bertolt Brecht. Todos eles se referem a esse espetáculo como um momento seminal em sua trajetória artística. “Foi decisivo na minha formação”, lembra Tom Zé. “E aquele ambiente da Renascença Baiana ocupou durante muito tempo meus pensamentos, deduções e súbitas compreensões.”

O LIVRO
A Primavera do Dragão – A Juventude de Glauber Rocha, de Nelson Motta. Editora Objetiva, 368 págs., R$ 56,90

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