Moda: (Christian Siriano/Getty Images)
Matheus Doliveira
Publicado em 15 de maio de 2021 às 06h00.
Inverno, verão, pré-inverno, cruise, alta-costura. Até a década passada, a moda de alto padrão girava em torno dessas terminologias para lançar novidades na vitrine, estimular o consumo e, a depender do tamanho das marcas, promover desfiles para cada coleção, principalmente nas quatro capitais da moda, uma espécie de Grand Slam fashion: Londres, Paris, Milão e Nova York. Foi logo no início desses novos anos 2020 que um vírus interditou, ou no mínimo alterou, a equação do varejo especializado. E a pergunta, dita nas coxias do setor, extrapolou os limites da passarela: para que tanta roupa?
Na esteira de uma queda global nas vendas acumulada em 550 bilhões de dólares no ano passado, segundo estimativa da consultoria Euromonitor International, e do sumiço de compradores nas avenidas do luxo, parte da moda pisou o pé no freio e resolveu deixar de lado o ritmo frenético. O grupo Kering liderou o movimento. Suas grifes mais rentáveis, Gucci, Saint Laurent e Bottega Veneta, deixaram os calendários de desfiles das semanas de Milão e Paris para seguir planos de apresentações individuais, algo inimaginável num ambiente pré-pandemia. A regra para as três hoje é concisão, ou seja, lançamentos pontuais, mas robustos em imagem.
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Diretor criativo da Gucci, Alessandro Michele extirpou a sazonalidade dos lançamentos, deixando de lado a divisão por estações, e apostou num modelo de curtas-metragens exibidos em festival próprio, o GucciFest, e, em abril passado, vídeos de desfiles das últimas criações, parte delas em colaboração inédita com a irmã de conglomerado, a francesa Balenciaga.
Outra marca sob o guarda-chuva do grupo fundado por François-Henri Pinault, a Bottega Veneta foi além de deixar o calendário e decidiu excluir as contas em redes sociais além do calendário. O sumiço teria relação direta com a ideia de preservar a grife do circo de superexposição, que, hoje, mais do que a simples participação num evento de desfiles, inclui ações para o Instagram e o TikTok. A justificativa usada pelo diretor criativo Daniel Lee para a saída em janeiro do ambiente digital foi de recuperar a narrativa de exclusividade que sempre pautou a indústria do luxo, supostamente colocada em xeque com a enxurrada de eventos virtuais.
Pesa ainda o pacto de sustentabilidade conduzido pelo grupo Kering e firmado na cúpula do G7 em 2019 com outras potências do varejo, a exemplo de Prada, H&M e Inditex (Zara), cuja missão é reduzir em 30% a emissão de gases causadores do efeito estufa produzida pelo setor até 2030 e zerar a conta até 2050. Menos coleções resultam em menos desperdício, e menos desfiles provocam um trânsito de turistas e profissionais do setor menos nocivo para o planeta — estima-se que o transporte aéreo seja responsável por até 5% do aquecimento global.
Do ponto de vista mercadológico, não é possível definir o impacto real das novas diretrizes sobre as vendas. O ano do grupo Kering foi de perdas, sentidas em todos os conglomerados, porém menos traumáticas do que o esperado. Segundo dados da companhia, a receita de 13,10 bilhões de euros representou um tombo acumulado de 18% em relação a 2019, embora o lucro líquido de 2,15 bilhões de euros tenha ficado acima das expectativas do mercado.
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Principal concorrente da holding, o grupo LVMH perdeu 16% de receita orgânica no ano passado, encerrando o exercício com 44,7 bilhões de faturamento impulsionados, segundo a companhia, pelo bom desempenho de Christian Dior e Louis Vuitton. O consumidor, analistas já sabem, optou — e ainda opta — por nomes fortes na hora de abrir a carteira.
Não parece coincidência que tenham sido exatamente essas duas marcas as que mais investiram em desfiles presenciais no ano passado. Além das experiências híbridas na Semana de Moda de Paris — as apresentações, transmitidas ao vivo, tinham público reduzido —, ambas empreenderam desfiles suntuosos em Xangai, na China. O país virou o porto seguro das marcas. Por lá, o consumo de bens de luxo cresceu 1,4% no ano mais desafiador para o varejo.
Ir aonde o dinheiro está parece ser a fórmula da moda para voltar aos trilhos. Na Austrália, que controlou a transmissão de covid-19 e já respondeu por cifras relevantes nos resultados dos grupos no primeiro trimestre, a semana de moda local já se prepara para ocupar a cidade de Sydney com desfiles presenciais.
Tanto para marcas internacionais como para estilistas independentes, ainda não há outra plataforma tão relevante. Uma semana de desfiles presenciais organiza a indústria em torno daquelas datas, que não se resumem às apresentações, mas também ao movimento do turismo de compras, tanto nas lojas quanto nos showrooms, e aos negócios fechados durante aqueles dias. Para ter uma ideia, só em Paris a indústria dos desfiles movimenta 40 bilhões de euros anualmente.
Enquanto houver moda, haverá desfiles. O formato e a constância dependerão mais do tamanho e do apetite das marcas em sair da zona de conforto da primeira fila.