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Em Xangai, o desafio do cinema chinês: ir além de Jackie Chan

Maior festival da China tem astros ocidentais, mas também mostra a sofisticação do mercado local e seu enorme potencial para todos os públicos

China: “O público chinês tem uma tremenda fome por cinema e suas estrelas” (Fabrizio Bensch/Reuters)
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EXAME Hoje

Publicado em 30 de junho de 2018 às 14h43.

Xangai – A Praça do Povo está animadíssima. No centro da esplanada de um dos muitos “centros” de Xangai, o belíssimo Xangai Grand Theater, obra do arquiteto Jean-Marie Charpentier e coração de uma área repleta de imponentes arranha-céus, está cercado de barreiras e policiais. De um lado, os fãs, muitos e muito jovens, munidos de seus celulares e tablets, espichando-se para pegar algum relance do tapete vermelho, a muitos metros de distância. Do outro lado, uma pista de concreto para os convidados, e um tapete vermelho para as estrelas.

É o tapete vermelho mais calmo, vazio e ordenado que já vi. Não há multidões em delírio, arquibancadas, caçadores de selfies. As celebridades entram em pequenos grupos, são fotografadas à distância por um seleto grupo de jornalistas credenciados e entrevistadas pela TV estatal da China, CCTV, antes de tomarem seus assentos na plateia.

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Vai começar o vigésimo primeiro Festival Internacional de Cinema de Xangai, uma cerimônia austera comparada com outros eventos do gênero, pontuada por discursos de autoridades e aparições de astros locais para apresentar os diversos programas do evento.

Entre buquês de flores (carregados por mini-bailarinas infantis) e números de dança, algo muito interessante acontece: estrelas e diretores locais são polidamente aplaudidos pela plateia de convidados, mas o teatro vem abaixo quando três figuras hollywoodianas sobem ao palco: Nicolas Cage, Christoph Waltz e Jason Statham, convidados especiais do festival.

“O público chinês tem uma tremenda fome por cinema e suas estrelas”, diz Shanelle Yuan, produtora e um dos fundadores da Twilight Entertainment, uma das muitas startups que estão nascendo para matar essa fome. “Como a abertura para o cinema internacional aconteceu no final da década de 70 o público chinês tem adoração por qualquer coisa dos anos 80 e 90.”

O Festival Internacional de Xangai, ou SIFF, como é conhecido, tem um papel importante no processo de Gāigé kåifàng – literalmente “Reforma e Abertura” –, a política de reformas econômicas iniciada pela ala progressista do Partido Comunista chines, liderada por Deng Xiaoping, a partir de 1978. A meta: retomar a prosperidade interna e a hegemonia no mercado internacional que a China um dia teve e perdeu, rapidamente, a partir do século 19.

Criado pela Administração Municipal de Cultura, Rádio, Cinema e Televisão de Xangai e um dos maiores conglomerados de produtores e distribuidores, o Grupo de Mídia e Entretenimento de Xangai, em 1997, em plena Reforma e Abertura, o Festival Internacional de Xangai surgiu com o mandato de ser um ponto de contato entre a produção e o público da China e os realizadores internacionais, numa cidade com uma história de abertura para o Ocidente.

Mesmo nos piores momentos da economia chinesa, Xangai manteve-se como uma cidade próspera e cosmopolita. O cinema chinês começou em Xangai – o primeiro filme feito no país, o curta O casal complicado (Nànfû Nànqî, 1913), foi produzido e rodado em Xangai. Dez anos depois, Xangai produzia o primeiro longa de ficção da China, O órfão que salvou seu avô (Gu’er Jiu Zuji, 1923). Nos anos 1920 e 30, Xangai era conhecida como “a Hollywood do Leste”, abrigando todos os principais estúdios da China, com a devida constelação de galãs e estrelas (uma delas, a atriz Jian Qing, se tornaria esposa de Mao Zedong) e lançando um volume de títulos à altura de sua rival do outro lado do Pacífico.

A revolução comunista paralisou no tempo a Xangai cinematográfca – e, com a fuga em massa de talento e mão de obra qualificada, gerou o boom de cinema de Hong Kong e, pouco depois, de Taiwan.

“Xangai tem uma forte e antiga tradição cinematográfica”, diz Peng Qizhi, Diretora da Secretaria de Cinema da Administração Municipal de Cultura, Rádio, Cinema e Televisão de Xangai. “É a cidade que mais consome cinema no país. Temos 330 cinemas num total de 2000 telas, inclusive uma das maiores telas LED do mundo. E o mais importante: temos um público apaixonado por cinema.”

O SIFF, ela continua, representa o encontro entre esse “público apaixonado” com o cinema do mundo todo. “Nossa inspiração veio dos grandes festivais internacionais. O festival é uma plataforma para realizadores da China entrarem em contato com realizadores internacionais, e um modo de oferecer ao público uma oportunidade de ver filmes em diferentes idiomas, de diversos países e modos de viver.”

Num país de 1 bilhão e 415 mil habitantes, numa cidade de quase 25 milhões de habitantes, os números do festival fazem sentido. Em seus 10 dias de duração, segundo Peng, são exibidos 500 filmes para uma plateia total de 450 mil pessoas. “Vêm pessoas de toda a China só para o festival”, Peng comenta.

Ação e algo mais

A seleção do SIFF é uma boa mostra dos gostos e possibilidades da China como consumidor e produtor de conteúdo audiovisual.

Este ano o evento incluía – entre competição e mostras paralelas – títulos como Capernaum, premiado em Cannes (e apresentado por seu diretor artístico, Thierry Frémaux), o indie estadunidense Friday’s Child, indicado em South by Southwest (e que acabou premiado em Xangai com Melhor Ator e Melhor Fotografia), e o cubano-canadense Un traductor, estrelado por Rodrigo Santoro (indicado em Sundance e premiado em Xangai com Melhor Diretor para os irmãos Rodrigo e Sebstián Barriuso). No passado, o SIFF exibiu títulos como Lady Bird, Artista do Desastre e O Sacrifício do Cervo Sagrado.

Ao mesmo tempo, o festival programa o gênero favorito das plateias chinesas – filmes de ação de puro entretenimento, que têm seu próprio prêmio, o Troféu Jackie Chan. Este ano, a mostra incluía o estadunidense The Meg – tubarão-gigante assola praias e Jason Statham – e o chinês Animal Kingdom, uma mistura de Jogos Vorazes, Maze Runner e It, estrelado por Michael Douglas com uma caracterização idêntica ao seu personagem em Homem Formiga.

“Não é apenas a técnica e a indústria do cinema na China que precisam se atualizar e desenvolver”, diz Jia Zangke, um dos maiores e mais premiados diretores da chamada “quinta onda” do cinema chinês, e presidente da Shanghai-Vancouver Film School (SHVFS), a grande rival da Beijing Film School na preparação de mão de obra para o audiovisual do país. “Precisamos formar nossas plateias. Precisamos informar nossas plateias. O público chinês tem muita fome de cinema, mas é muito vulnerável aos arrasa-quarteirões, às grandes campanhas de marketing. O que o marketing vende, o público segue. Precisamos desenvolver opções para isso.”

Desde que tomou posse na SHVFS, Zangke – que, no início de sua carreira, foi persona non grata do governo chinês – deu um novo arcabouço para o ensino de cinema na universidade. “Quero que ensinemos a técnica e a teoria do cinema, mas não apenas isso”, ele diz. “Quero que nossos alunos aprendam o contexto do cinema, a história do cinema, o idioma do cinema.”

“É verdade que o grande público prefere os arrasa-quarteirões e os filmes de ação, nos cinemas, diz a produtora Margaret Wu, que desenvolve projetos audiovisuais em Xangai e Los Angeles. “Mas o consumo não se dá apenas nos cinemas. As plataformas de streaming estão crescendo imensamente, e são os canais para todo tipo de conteúdo, muito mais diversificado.”

“Acredito muito em plataformas alternativas na China”, diz Wang Qing Feng, Gerente-Geral de Estratégia para Cinema da iQiy, uma das maiores plataformas de conteúdo audiovisual online do mundo, com mais de 500 milhões de usuários mensais. “Temos o cuidado de diversificar nosso conteúdo – em 2014 começamos a lançar filmes em cinemas, para complementar nosso portfólio. Mas creio que ainda não exploramos todas as possibilidades das plataformas online.”

Em 2011 o primeiro lançamento online da iQiy foi Transformers: O Lado Oculto da Lua, então um acordo inédito com um grande estúdio estrangeiro, a Paramount. Desde então, a iQiy tem sido uma das empresas mais ativas em grandes festivais, de Busan a Veneza, adquirindo direitos de filmes de todos os gêneros, e criando parcerias com, entre outros, a Netflix. Às vésperas do festival de Xangai, a iQiy (que é baseada em Beijing) anunciou o fechamento de um acordo com Chen Kaige, um dos maiores diretores do cinema chinês (Adeus Minha Concubina, Terra Amarela), para a produção de sua primeira série The Eight.

“A essência da plataforma online é a diversidade”, diz Wang. “É onde podemos servir todos os mercados. Ainda não exploramos todo o potencial do mercado chinês.”

Público, e dinheiro, para consumir todos os tipos de produção, não faltam.

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