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Em novo livro, Isabel Allende faz uma reflexão sobre o movimento feminista

Como costuma acontecer a cada mês de novembro, Isabel Allende está lançando um novo livro, que chega hoje às livrarias brasileiras

A escritora Isabel Allende em evento em 2019 (Horst Galuschka/picture alliance/Getty Images)
EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 30 de novembro de 2020 às 09h55.

A chilena Isabel Allende é a autora viva mais lida do mundo em língua espanhola. Aos 78 anos, já escreveu 21 romances, um livro de memórias, dois de contos e quatro peças de teatro. Vendeu 80 milhões de cópias em mais de 40 idiomas. Entre as suas obras mais famosas está A Casa dos Espíritos - um dos grandes títulos do realismo fantástico. Em seus romances, resgatou eventos cruciais da história de toda a América Latina, da ditadura chilena à revolução do Haiti, passando pela colonização cubana e pela chegada dos primeiros imigrantes latino-americanos aos EUA.

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Ainda assim, boa parte da crítica literária não reconhece sua obra. Dificilmente ela é colocada no mesmo panteão de seus contemporâneos do sexo masculino, como o mexicano Carlos Fuentes o cubano Alejo Carpentier, o brasileiro Jorge Amado. Sem falar, é claro, nos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e nos agraciados com o Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Márquez. O conterrâneo Roberto Bolaños, outro grande nome latino-americano, a chamou de "escrevinhadora".

"Quando eu comecei a escrever, há quase 40 anos, minha agente, Carmen Balcells, me disse que, por ser mulher, ia me custar o dobro do esforço exigido de qualquer homem obter a metade do reconhecimento", contou Isabel Allende, em entrevista exclusiva ao Estadão. "Ela me disse também que a crítica seria muito dura comigo ou simplesmente ia me ignorar, e que meus colegas não me perdoariam se eu tivesse êxito."

Como costuma acontecer a cada mês de novembro, Isabel Allende está lançando um novo livro, que chega hoje às livrarias brasileiras. Pela primeira vez, escreveu um ensaio, Mulheres de Minha Alma (Ed. Bertrand Brasil). Trata-se de um trabalho em que mescla reflexões sobre feminismo com memórias pessoais e suas próprias experiências no movimento. Em entrevista por e-mail ao Estadão, a escritora falou sobre o feminismo, a violência contra a mulher, e a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, onde vive há mais de 30 anos. "O feminismo é a revolução mais importante porque implica a metade da humanidade e pressupõe uma mudança que vai muito além do gênero; é uma luta contra os privilégios e é irreversível", escreveu no novo livro.

A nova geração de feministas protagoniza uma importante renovação do movimento e conquista novos espaços. Os homens mudaram também? Qual a importância da participação dos homens no movimento e por que, mesmo os mais jovens, ainda resistem tanto?
Os homens jovens, criados por mães feministas e companheiros de mulheres emancipadas mudaram muito, mas não são maioria no mundo e o sistema patriarcal continua intacto. Ninguém entrega o poder amavelmente. As mulheres estão há décadas atacando esse poder e conseguimos muita coisa. Mas ainda falta muito por fazer e precisamos que os homens, sobretudo os mais jovens, entendam que o feminismo convém a nós todos. Se a gerência do mundo estivesse igualmente nas mãos de mulheres e homens, se os valores femininos e masculinos tivessem o mesmo peso na consciência humana, o mundo seria muito melhor. Mas é um processo até alcançarmos esse objetivo, e é lento. Avançamos dois passos e retrocedemos um. Mas nos 78 anos da minha vida vi mudanças positivas.

A violência contra as mulheres segue alta em várias partes do mundo. Como lutar contra o machismo estrutural que vivenciamos cotidianamente, sobretudo nos países da América Latina?
O machismo é uma manifestação do patriarcado, que tem sido por milênios o sistema imperante de opressão política, econômica, cultural e religiosa, que outorga domínio e privilégio ao gênero masculino. Também oprime os pobres, os derrotados, as pessoas de outras raças e religiões, os LGBTBQIA+ e qualquer outro que possa submeter. Essa opressão se exerce com violência. A violência contra a mulher é outra manifestação disso. É difícil derrotar o patriarcado, mas conseguiremos.

Governos como os de Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, representam um retrocesso para o movimento feminista?
Os direitos que as mulheres conquistaram com tanta luta podem ser perdidos em um instante, basta uma catástrofe, uma guerra, uma crise econômica, uma ditadura ou um governo ultraconservador. Por exemplo, as mulheres no Afeganistão perderam tudo, incluindo as liberdades mais básicas, quando o Talebã assumiu o poder. Os autocratas são manifestações do machismo que agora definimos como "masculinidade tóxica". Devemos estar alertas e vigilantes para defender o que conquistamos e seguir lutando pelo que falta fazer.

Há poucos dias, ainda durante a apuração do resultado das eleições presidenciais americanas, a senhora disse numa entrevista que estava passando os dias "a base de uísque, maconha (que pode ser consumida legalmente na Califórnia, onde vive) e remédios para dormir", que transpirava e sentia uma tremenda angústia e um grande estresse. Agora que Trump está derrotado, já se sente melhor?
Estou contente que Trump tenha perdido as eleições e possamos regressar à normalidade e à decência com Biden. Mas Trump teve mais de 70 milhões de votos. Isso significa que metade do país votou pelo racismo, pela xenofobia, pela misoginia e pela corrupção de Trump. Que tipo de país essa gente quer?

A senhora é autora de língua espanhola viva mais lida do mundo. Esse caminho foi mais difícil para uma mulher do que seria para um homem? Em que aspectos?
Quando eu comecei a escrever, há quase 40 anos, minha agente, Carmen Balcells, me disse que, por ser mulher, ia me custar o dobro do esforço exigido de qualquer homem obter a metade do reconhecimento. Ela me disse também que a crítica seria muito dura comigo ou simplesmente ia me ignorar, e que meus colegas não me perdoariam se eu tivesse êxito. Posso acrescentar que os professores de literatura ensinam a muito poucas autoras, que já foi dito de mim que não sou escritora, mas "escrevinhadora" (como a chamou o escritor chileno Roberto Bolaños), porque vendo mais livros do que a maioria dos escritores conhecidos. Até hoje encontro algumas vezes com leitores que dizem não ler livros escritos por mulheres porque são "leves". Custou-me obter respeito, mas nessa trajetória não estou sozinha. Cada vez há mais mulheres escritoras publicadas e suas vozes não podem ser silenciadas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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