Caetano e Chico revolucionaram o modo de ser e de amar dos portugueses
As canções brasileiras – em especial as de Chico e Caetano – contribuíram decisivamente para o amadurecimento afetivo e a emancipação erótica dos portugueses
Da Redação
Publicado em 6 de janeiro de 2012 às 15h11.
São Paulo - Devo às canções do Brasil a minha fé no amor. Não é coisa pouca nem leve; acredito no amor como outros acreditam na Virgem de Fátima: à revelia dos tropeços das histórias e do ceticismo da História. Não há lágrima que eu não transforme em prisma de uma nova visão do mundo, nem ruínas de ilusão sob as quais não encontre o sinal de uma alegria maior.
As canções brasileiras, em particular as de Caetano Veloso e Chico Buarque, deram-me um doutorado naquilo a que o Padre Antônio Vieira chamou “amor fino” – o amor a fundo perdido.
Não há outro; ao amor que espera retorno podemos chamar investimento, vaidade, medo ou comodismo. Podemos até decidir ser felizes através dele. Mas o amor digno desse nome não cuida de enredos ou desenlaces; é, como escreveu Ovídio, uma arte, com o que isso significa de coragem e entrega.
A arte exige o dom da metamorfose e um alto grau de domínio perante a dor. O artista, como o amante, tem de ser capaz de sair da sua própria pele para se colocar dentro da pele do outro. Esvaziando-se na entrega, ganha também imunidade à dor – há sempre um lado seu que contempla, de fora, como um Deus, a obra que dentro de si se está gerando.
Tudo isso existe, em sublime condensação, no casamento entre música e letra – e assim o Brasil deu de 10 a 0 em toda a história da filosofia, de Ovídio e Platão a Kant e Nietzsche.
“Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer/ uma canção/ está provado que só é possível filosofar/ em alemão.” A receita é de Caetano, em Língua, a melhor canção alguma vez escrita. Estava tentada a acrescentar “em língua portuguesa”, mas a tese que aqui se expõe é a de que a língua portuguesa é responsável pela criação das mais perfeitas canções.
Parece-vos imperialista? Presunçoso? Etc.? Então deixo-vos um exercício simples: traduzam as letras dos Beatles. Podem começar por Yesterday, vá; se eu fosse cruel, lembrava All You Need Is Love ou Michelle.
Sim, podem prosseguir com o Imagine, do John Lennon. Para subir o nível do debate, incluamos até o excelso Serge Gainsbourg: convenhamos que “je vais et je viens/ entre tes reins” (“vou e volto/ entrelaçado em seu dorso”, trecho de Je T’Aime... Moi Non Plus) não tem a força erótica de “estou-me a vir/ e tu, como te tens por dentro?/ porquê não te vens também?” (letra completa de Porquê?, de Caetano Veloso).
Só os portugueses gritam que vêm a si através do corpo do amante. E só um brasileiro ousou fazer desse grito íntimo um manifesto poético.
Porque só os brasileiros clamam que estão gozando (num gerúndio lento, benza-os Deus) no auge da entrega física. Os portugueses apenas usam o verbo gozar contra alguém. O português é púdico em público e desbragado na intimidade, o brasileiro pelo contrário – genericamente falando, claro.
Angélica, Bárbara, Beatriz...
Cumpre ressalvar que Chico Buarque deveria receber o Prêmio de Excelência do Sindicato Internacional das Prostitutas: estou certa de que cancioneiro algum contém tantas canções dedicadas a exaltar as qualidades humanas e a odisseia existencial dessas profissionais.
É também o autor que mais compôs para as mulheres ou em nome delas – ressuscitando a tradição da lírica medieval galego-portuguesa.
Numa pesquisa breve, encontrei canções suas em que aparecem os seguintes nomes: Ana de Amsterdam (“sou Ana de 20 minutos/ sou Ana da brasa dos brutos na coxa”), Angélica, Bárbara (duas canções), Beatriz, Carolina, Cecília, Cristina, Geni, Iracema, Januária, Joana Francesa, Lia, Lola, Luísa, Luiza, Madalena, Maria (duas canções), Maricotinha, Nina, Renata Maria, Rita, Rosa, Sílvia, Teresinha e Tereza Tristeza. Isto além das de Atenas, das dançarinas, das que fazem cinema, da pequena de cabelo cor de abóbora e das múltiplas Morenas.
As morenas de olhos “negros como breu” ou “negros cruéis” são, aliás, tema central tanto na obra de Chico como na de Caetano: as musas podem ir da preta-com-biquíni-amarelo à morena-de-olhos-de-água, mas nunca há qualquer concessão à iconografia popular da loura.
Em compensação, Caetano tem pelo menos uma dúzia de canções cujo título começa, implícita ou explicitamente, por “eu”. Ninguém foi tão longe, melodicamente, na decomposição cirúrgica do ego: numa das canções de Recanto, o disco vanguardista que acaba de criar para a voz onipotente de Gal Costa, brinca com gênio: “O menino sou eu/ o menino é eu”.
Poderíamos detectar um mundo de outros pontos comuns, mas o interessante nessas duas figuras maiores da canção brasileira encontra-se nas diferenças, que fazem com que, em Portugal, exista um campeonato permanente entre os defensores de Chico e os de Caetano.
Nesse vício mental do duelo, Portugal e Brasil são muito parecidos. Funcionamos num modelo passional puro – e exacerbamo-lo, pelo prazer do confronto e pelo sonho do absoluto.
O rigor obrigar-nos-ia a incluir neste texto pelo menos os nomes de Gilberto Gil e Adriana Calcanhotto, compositores muito acarinhados em Portugal. Mas, na hora da verdade, a discussão – estética e política – centra-se sempre nesse par contrastante.
Chico é o preferido dos que prezam a coerência da forma; Caetano, dos que amam acima de tudo a criatividade sem limites, a escuta contínua do futuro.
Creio que Caetano se sentiu sempre mais livre para experimentar, no que se refere à composição musical, porque nunca se encarou verdadeiramente como um músico. Mas as suas letras de canções merecem o título de poesia, pertencem à literatura como os romances de Chico – em ambos “os vocábulos iridescem”, como escreve Caetano em Tudo Dói (in Recanto).
As letras de Chico são micronarrativas (um exemplo máximo é Sinhá, do seu disco mais recente); as de Caetano, poesia pura – e compactos de filosofia (vide Sexo e Dinheiro, novamente em Recanto).
Chico cria heterônimos, personagens, outras vidas; Caetano implode em vez de se desdobrar; não tem vários dentro de si – é, ele mesmo, inteiramente vário.
Nos últimos anos, ambos denotam uma capacidade de síntese inédita: o novo disco de Chico é a versão-haicai do seu trabalho de sempre; e o mesmo acontece com o álbum Zii e Zie, de Caetano, ou agora com Recanto, embora o trabalho de sempre do baiano tenha sido o de nunca repetir um registro.
Porém, num e noutro caso, os versos surgem rarefeitos, limados até o osso – e a composição musical é também depurada, levada à sua essência.
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que, enquanto jovens, somos barrocos por timidez – e por arrogância, em particular desde que a juventude se erigiu como culto sagrado, acrescentaria eu. A energia concentrada das mais recentes obras de Caetano e Chico demonstra a exatidão das palavras de Borges – a maturidade consiste no reconhecimento da luz. Como o amor.
As canções de Caetano e Chico revolucionaram o nosso modo de ser e de amar. Creio que a revolução foi mais visível e veloz em Portugal.
O Brasil já tinha uma tradição de música popular muito consistente; Portugal acordou para o mundo com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, tendo como único esteio musical identitário o fado, que cheirava (embora injustamente) a conformismo e resignação.
As novas gerações nem sequer davam ao fado o benefício da dúvida – e o que disso sobrava era a canção chamada de intervenção, designação que viria a pouco e pouco a ser revista, com o reconhecimento do lirismo criador de nomes como Zeca Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco.
Mas a música do Brasil era a banda sonora da existência de uma juventude que inaugurava a liberdade, o desejo e o orgulho na sua língua.
Tamanco
Chico e Caetano foram os arautos e mestres da emancipação erótica dos portugueses, e a canção brasileira afirmou-se como um programa filosófico que vê o enamoramento como porta de acesso à sabedoria e à afirmação da identidade – pela fusão ou pela sobrevivência à separação.
Nunca há o “why she had to go” (“por que ela teve de ir”, trecho da canção Yesterday), mas sempre, e pelo contrário, a lucidez que o encantamento ou a desilusão acendem: o conhecimento pelo sangue, como resposta corajosa e convicta diante de qualquer hipótese de “explicação” lógica ou racional.
O seu fascínio reside na falta desse triturador que é “a análise da relação”. A canção inglesa ou norte-americana pressupõe um why – pretende que o amor tenha uma lógica e se desenrole como um western, com índios maus e caubóis valentes.
Aquela coisa protestante: razão, culpa e expiação. O brasileiro não: metade das canções de dor-de-corno são listagens de memórias de um passado que se acarinham ou xingam como a um animal doméstico (“não, nada irá neste mundo/ apagar o desenho que temos aqui” ou, sucintamente, “tudo dói”) ; a outra metade são encenações de uma felicidade póstuma e vingativa (“quantos homens me amaram/ bem mais e melhor que você”).
E as canções de amor feliz são relatos eróticos, tecidos com a precisão de um relato de futebol. Mesmo as canções mais judiciais não comportam a culpa: em vez de qualquer coisa como “você não vê o mal que me fez?”, temos “perua, piranha/ minha energia é que mantém você suspensa no ar”.
O que é, convenhamos, muito mais positivo. As pessoas apaixonam-se pelo amor porque ele é contraditório, desregrado, feliz, desesperado, sôfrego e autocentrado. Impaciente, numa vida cada vez mais orquestrada para a paciência.
Quando quero ir até o fundo da fossa, sigo o Bom Conselho de Chico: “Inútil dormir que a dor não passa”, ou abro a torneira com Sem Você Nº 2: “Sem você/ é um silêncio tal/ que ouço uma nuvem/ a vagar no céu/ ou uma lágrima cair no chão”.
Se quero sair dela, o avesso desse conselho ilumina-me no Pecado Original de Caetano (“todo corpo em movimento/ está cheio de inferno e céu”) ou na fulgurante Segunda, que encerra o novo disco de Gal: “Vou arrastar meu tamanco/ no sábado aguento o tranco”.
Quando se trata de virar a mesa e andar para a frente, o Samba do Grande Amor de Chico dança com Desde que o Samba É Samba, de Caetano.
Em caso de dúvida, épicos como Sem Fantasia ou O Quereres reacendem a minha fé nessa entidade que nos leva efetivamente ao céu. É só isso.
São Paulo - Devo às canções do Brasil a minha fé no amor. Não é coisa pouca nem leve; acredito no amor como outros acreditam na Virgem de Fátima: à revelia dos tropeços das histórias e do ceticismo da História. Não há lágrima que eu não transforme em prisma de uma nova visão do mundo, nem ruínas de ilusão sob as quais não encontre o sinal de uma alegria maior.
As canções brasileiras, em particular as de Caetano Veloso e Chico Buarque, deram-me um doutorado naquilo a que o Padre Antônio Vieira chamou “amor fino” – o amor a fundo perdido.
Não há outro; ao amor que espera retorno podemos chamar investimento, vaidade, medo ou comodismo. Podemos até decidir ser felizes através dele. Mas o amor digno desse nome não cuida de enredos ou desenlaces; é, como escreveu Ovídio, uma arte, com o que isso significa de coragem e entrega.
A arte exige o dom da metamorfose e um alto grau de domínio perante a dor. O artista, como o amante, tem de ser capaz de sair da sua própria pele para se colocar dentro da pele do outro. Esvaziando-se na entrega, ganha também imunidade à dor – há sempre um lado seu que contempla, de fora, como um Deus, a obra que dentro de si se está gerando.
Tudo isso existe, em sublime condensação, no casamento entre música e letra – e assim o Brasil deu de 10 a 0 em toda a história da filosofia, de Ovídio e Platão a Kant e Nietzsche.
“Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer/ uma canção/ está provado que só é possível filosofar/ em alemão.” A receita é de Caetano, em Língua, a melhor canção alguma vez escrita. Estava tentada a acrescentar “em língua portuguesa”, mas a tese que aqui se expõe é a de que a língua portuguesa é responsável pela criação das mais perfeitas canções.
Parece-vos imperialista? Presunçoso? Etc.? Então deixo-vos um exercício simples: traduzam as letras dos Beatles. Podem começar por Yesterday, vá; se eu fosse cruel, lembrava All You Need Is Love ou Michelle.
Sim, podem prosseguir com o Imagine, do John Lennon. Para subir o nível do debate, incluamos até o excelso Serge Gainsbourg: convenhamos que “je vais et je viens/ entre tes reins” (“vou e volto/ entrelaçado em seu dorso”, trecho de Je T’Aime... Moi Non Plus) não tem a força erótica de “estou-me a vir/ e tu, como te tens por dentro?/ porquê não te vens também?” (letra completa de Porquê?, de Caetano Veloso).
Só os portugueses gritam que vêm a si através do corpo do amante. E só um brasileiro ousou fazer desse grito íntimo um manifesto poético.
Porque só os brasileiros clamam que estão gozando (num gerúndio lento, benza-os Deus) no auge da entrega física. Os portugueses apenas usam o verbo gozar contra alguém. O português é púdico em público e desbragado na intimidade, o brasileiro pelo contrário – genericamente falando, claro.
Angélica, Bárbara, Beatriz...
Cumpre ressalvar que Chico Buarque deveria receber o Prêmio de Excelência do Sindicato Internacional das Prostitutas: estou certa de que cancioneiro algum contém tantas canções dedicadas a exaltar as qualidades humanas e a odisseia existencial dessas profissionais.
É também o autor que mais compôs para as mulheres ou em nome delas – ressuscitando a tradição da lírica medieval galego-portuguesa.
Numa pesquisa breve, encontrei canções suas em que aparecem os seguintes nomes: Ana de Amsterdam (“sou Ana de 20 minutos/ sou Ana da brasa dos brutos na coxa”), Angélica, Bárbara (duas canções), Beatriz, Carolina, Cecília, Cristina, Geni, Iracema, Januária, Joana Francesa, Lia, Lola, Luísa, Luiza, Madalena, Maria (duas canções), Maricotinha, Nina, Renata Maria, Rita, Rosa, Sílvia, Teresinha e Tereza Tristeza. Isto além das de Atenas, das dançarinas, das que fazem cinema, da pequena de cabelo cor de abóbora e das múltiplas Morenas.
As morenas de olhos “negros como breu” ou “negros cruéis” são, aliás, tema central tanto na obra de Chico como na de Caetano: as musas podem ir da preta-com-biquíni-amarelo à morena-de-olhos-de-água, mas nunca há qualquer concessão à iconografia popular da loura.
Em compensação, Caetano tem pelo menos uma dúzia de canções cujo título começa, implícita ou explicitamente, por “eu”. Ninguém foi tão longe, melodicamente, na decomposição cirúrgica do ego: numa das canções de Recanto, o disco vanguardista que acaba de criar para a voz onipotente de Gal Costa, brinca com gênio: “O menino sou eu/ o menino é eu”.
Poderíamos detectar um mundo de outros pontos comuns, mas o interessante nessas duas figuras maiores da canção brasileira encontra-se nas diferenças, que fazem com que, em Portugal, exista um campeonato permanente entre os defensores de Chico e os de Caetano.
Nesse vício mental do duelo, Portugal e Brasil são muito parecidos. Funcionamos num modelo passional puro – e exacerbamo-lo, pelo prazer do confronto e pelo sonho do absoluto.
O rigor obrigar-nos-ia a incluir neste texto pelo menos os nomes de Gilberto Gil e Adriana Calcanhotto, compositores muito acarinhados em Portugal. Mas, na hora da verdade, a discussão – estética e política – centra-se sempre nesse par contrastante.
Chico é o preferido dos que prezam a coerência da forma; Caetano, dos que amam acima de tudo a criatividade sem limites, a escuta contínua do futuro.
Creio que Caetano se sentiu sempre mais livre para experimentar, no que se refere à composição musical, porque nunca se encarou verdadeiramente como um músico. Mas as suas letras de canções merecem o título de poesia, pertencem à literatura como os romances de Chico – em ambos “os vocábulos iridescem”, como escreve Caetano em Tudo Dói (in Recanto).
As letras de Chico são micronarrativas (um exemplo máximo é Sinhá, do seu disco mais recente); as de Caetano, poesia pura – e compactos de filosofia (vide Sexo e Dinheiro, novamente em Recanto).
Chico cria heterônimos, personagens, outras vidas; Caetano implode em vez de se desdobrar; não tem vários dentro de si – é, ele mesmo, inteiramente vário.
Nos últimos anos, ambos denotam uma capacidade de síntese inédita: o novo disco de Chico é a versão-haicai do seu trabalho de sempre; e o mesmo acontece com o álbum Zii e Zie, de Caetano, ou agora com Recanto, embora o trabalho de sempre do baiano tenha sido o de nunca repetir um registro.
Porém, num e noutro caso, os versos surgem rarefeitos, limados até o osso – e a composição musical é também depurada, levada à sua essência.
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que, enquanto jovens, somos barrocos por timidez – e por arrogância, em particular desde que a juventude se erigiu como culto sagrado, acrescentaria eu. A energia concentrada das mais recentes obras de Caetano e Chico demonstra a exatidão das palavras de Borges – a maturidade consiste no reconhecimento da luz. Como o amor.
As canções de Caetano e Chico revolucionaram o nosso modo de ser e de amar. Creio que a revolução foi mais visível e veloz em Portugal.
O Brasil já tinha uma tradição de música popular muito consistente; Portugal acordou para o mundo com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, tendo como único esteio musical identitário o fado, que cheirava (embora injustamente) a conformismo e resignação.
As novas gerações nem sequer davam ao fado o benefício da dúvida – e o que disso sobrava era a canção chamada de intervenção, designação que viria a pouco e pouco a ser revista, com o reconhecimento do lirismo criador de nomes como Zeca Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco.
Mas a música do Brasil era a banda sonora da existência de uma juventude que inaugurava a liberdade, o desejo e o orgulho na sua língua.
Tamanco
Chico e Caetano foram os arautos e mestres da emancipação erótica dos portugueses, e a canção brasileira afirmou-se como um programa filosófico que vê o enamoramento como porta de acesso à sabedoria e à afirmação da identidade – pela fusão ou pela sobrevivência à separação.
Nunca há o “why she had to go” (“por que ela teve de ir”, trecho da canção Yesterday), mas sempre, e pelo contrário, a lucidez que o encantamento ou a desilusão acendem: o conhecimento pelo sangue, como resposta corajosa e convicta diante de qualquer hipótese de “explicação” lógica ou racional.
O seu fascínio reside na falta desse triturador que é “a análise da relação”. A canção inglesa ou norte-americana pressupõe um why – pretende que o amor tenha uma lógica e se desenrole como um western, com índios maus e caubóis valentes.
Aquela coisa protestante: razão, culpa e expiação. O brasileiro não: metade das canções de dor-de-corno são listagens de memórias de um passado que se acarinham ou xingam como a um animal doméstico (“não, nada irá neste mundo/ apagar o desenho que temos aqui” ou, sucintamente, “tudo dói”) ; a outra metade são encenações de uma felicidade póstuma e vingativa (“quantos homens me amaram/ bem mais e melhor que você”).
E as canções de amor feliz são relatos eróticos, tecidos com a precisão de um relato de futebol. Mesmo as canções mais judiciais não comportam a culpa: em vez de qualquer coisa como “você não vê o mal que me fez?”, temos “perua, piranha/ minha energia é que mantém você suspensa no ar”.
O que é, convenhamos, muito mais positivo. As pessoas apaixonam-se pelo amor porque ele é contraditório, desregrado, feliz, desesperado, sôfrego e autocentrado. Impaciente, numa vida cada vez mais orquestrada para a paciência.
Quando quero ir até o fundo da fossa, sigo o Bom Conselho de Chico: “Inútil dormir que a dor não passa”, ou abro a torneira com Sem Você Nº 2: “Sem você/ é um silêncio tal/ que ouço uma nuvem/ a vagar no céu/ ou uma lágrima cair no chão”.
Se quero sair dela, o avesso desse conselho ilumina-me no Pecado Original de Caetano (“todo corpo em movimento/ está cheio de inferno e céu”) ou na fulgurante Segunda, que encerra o novo disco de Gal: “Vou arrastar meu tamanco/ no sábado aguento o tranco”.
Quando se trata de virar a mesa e andar para a frente, o Samba do Grande Amor de Chico dança com Desde que o Samba É Samba, de Caetano.
Em caso de dúvida, épicos como Sem Fantasia ou O Quereres reacendem a minha fé nessa entidade que nos leva efetivamente ao céu. É só isso.