Alexandre Freitas disputa sua maior prova: a luta pela própria vida
Praticamente inventor da corrida de aventura no Brasil, esportista conheceu o parasita que roubou o movimento de suas pernas e tirou sua visão nas Ilhas Fiji, em 2002
Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2011 às 15h16.
Já era madrugada alta quando Alexandre Freitas e sua equipe chegaram a um vilarejo escondido no meio das Ilhas Fiji, no oceano Pacífico.
Eles participavam do Eco Challenge, uma dura prova de aventura, realizada em 2002, que percorreu 500 km em dez dias. Aquela havia sido a etapa mais difícil até então.
Não por causa da longa caminhada da manhã ou das horas pedalando debaixo da chuva daquele oitavo dia de prova. Mas porque cada passada fazia com que os participantes ficassem mais esgotados pela falta de sono, pelos desafios do percurso e pela alimentação precária.
Em provas de aventura, a logística de alimentação é de responsabilidade dos atletas e não dos organizadores. Isso significa que a prova não fornece comida para os participantes, eles devem se organizar para garantir o carboidrato nosso de cada dia.
Mas, por causa de uma falha de organização, o time de Alexandre só encontrou o contêiner com suas comidas e roupas no último dia da competição. Ele e os outros três atletas que formavam a equipe EMA Brasil passaram toda a prova apenas com a roupa do corpo e os alimentos que carregavam em suas mochilas.
O jeito era pagar moradores das aldeias locais para que lhes servissem comida. E foi o que fizeram naquela noite de outubro. O menu consistia em um peixe, provavelmente pescado no riacho atrás do vilarejo, e nada mais. Apesar de mal cozida, a comida parecia saborosa.
Alexandre estava faminto, comeu e repetiu o prato. O que ele não imaginava é que aquele peixe estava contaminado com um parasita que iria causar uma série de danos a seu sistema nervoso. Depois de dormir um pouco, os atletas seguiram em frente.
Dos 81 quartetos que começaram a prova, apenas 23 completaram o Eco Challenge. E, após dez dias de trilhas, rafting, canoagem, mountain bike, trekking e escalada, a EMA Brasil estava entre as equipes sobreviventes.
Ao terminar a prova, Alexandre se sentia cansado. Reclamava de fraqueza no corpo, só queria ficar sentado. Nada tão anormal depois de completar uma competição tão dura quanto aquela.
Dois dias após terminar a corrida, o mal-estar não passava e ele foi internado em um hospital na Austrália. Estava em condição crítica. As pernas não mais se mexiam. Acordou três meses depois, já no Brasil, sem ver o mundo nem se comunicar com ele.
Dono de uma corretora de ações, casado e pai de dois filhos, Alexandre era um homem bem-sucedido no mercado financeiro. No fim da década de 90, sua empresa empregava 85 pessoas e era uma das mais rentáveis do setor.
Hoje, não é fácil entender o que ele diz. Alexandre fala baixo e as palavras custam a sair. Ele conta com a ajuda de seus enfermeiros para escrever, ler seus e-mails e falar ao telefone. O fisioterapeuta Fabio Branco é responsável por suas contas pessoais e, seguindo as orientações de Alexandre, maneja as ações de seu paciente na bolsa de valores.
O esporte era sua religião. Desde os 18 anos, ele corria e pedalava regularmente. "Corria 20 km todos os dias e pedalava duas vezes por semana", afirma.
Ele tem quatro Maratonas de São Paulo nas costas, e seu melhor tempo na distância é 3h05. Atualmente, precisa de um andador para caminhar. O incrível é que segue pedalando, e muito.
Como não tem equilíbrio para se manter em cima da bicicleta, usa uma ergométrica horizontal e fica sentado enquanto põe as pernas para trabalhar.
A corrida de aventura entrou em sua vida em 1997, quando participou do Southern Traverse, na Nova Zelândia. A tradicional prova percorria mais de 300 km pelo interior do país, incluindo trekking, mountain bike, canoagem e rapel (veja as regras da corrida de aventura abaixo).
"Depois de participar dessa prova, fiquei completamente apaixonado. Eu queria superar meus limites", conta Alexandre, sentado na cadeira de rodas. A ideia de superar limites hoje tem outro significado: "Cada pequena conquista é uma vitória para mim", diz.
EMA, EMA, EMA
Há 14 anos, naquela prova casca-grossa na Nova Zelândia, o homem de negócios vislumbrou um mercado promissor: trazer a corrida de aventura para o Brasil. Até então, o esporte simplesmente não existia por aqui. Quem conhecia competia no exterior, mas não havia provas ou iniciativas nacionais para apoiar a modalidade.
Alexandre decidiu então transformar seu lazer em negócio. Vendeu sua corretora e passou a se dedicar ao esporte e à organização de corridas de aventura.
O projeto era grandioso: precisava começar do zero, introduzir o conceito da corrida de aventura no país, formar atletas, garantir infraestrutura para o esporte. Então, em 1998, fundou a Sociedade Brasileira de Corridas de Aventura (SBCA). Através dela, montou a Expedição Mata Atlântica, a EMA, primeira corrida de aventura do Brasil, que teve quatro provas entre 1998 e 2002.
O corredor e empresário Cláudio Furusho, 47 anos, participou da primeira e da segunda edição da EMA e afirma que as competições eram muito bem organizadas.
"Era um tipo de prova que não existia no Brasil. O Alexandre desbravou esse mercado por aqui", afirma. Carmen da Silva, arquiteta e canoísta que participou do Eco Challenge com Alexandre, concorda. "Não existia corrida de aventura no Brasil antes da EMA. Antes disso, pouca gente sabia o que era corrida de aventura", diz.
Além das provas, a EMA realizou um curso introdutório de corrida de aventura, para formar atletas e ensinar os princípios da modalidade. Organizou também o Circuito Brasileiro de Corridas de Aventura e a EMA Series, eventos para divulgar o esporte e melhorar as condições técnicas das equipes de corrida de aventura.
Segundo Patrícia Croci, coordenadora de eventos da EMA, Alexandre investiu dinheiro do próprio bolso para fazer seu ambicioso projeto sair do papel. "Ele sempre foi um homem com visão empreendedora muito forte", explica. "Sabia que, construindo uma base sólida para esse esporte, o lucro viria com tempo."
No fim de 1998, foi realizada a primeira edição da prova — foram três dias, 30 equipes e 220 km entre Paraibuna e Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. A segunda EMA foi realizada no ano seguinte e reuniu 33 equipes, que percorreram 440 km em cinco dias para ir de Iporanga a Cananeia, também no litoral de São Paulo.
No ano 2000, as 33 equipes tiveram cinco dias para ir de Paraty, no Rio de Janeiro, a Ubatuba, em São Paulo. A última EMA, que aconteceu em 2001 no Polo Tapajós (região oeste do estado do Pará), foi a maior das edições da prova. "Fiquei na floresta durante sete dias para montar o percurso.
Era muito perigoso, porque ali era mata fechada, mas valeu a pena", diz Alexandre. Das 47 equipes que começaram a prova, apenas 30 terminaram. "Eu fazia tudo com muito carinho, montava as provas de que eu gostaria de participar", explica o organizador.
Para divulgar seu projeto, Alexandre montava equipes e participava de provas internacionais, que levavam o nome da EMA Brasil para as principais corridas de aventura do mundo. No segundo semestre de 2002, a equipe EMA Brasil, formada por Alexandre, Eduardo Coelho, José Pupo e Carmen Silva, disputaria sua última prova, o Eco Challenge, em Fiji.
A única mulher da equipe conta que Alexandre já planejava que aquela seria sua última grande prova internacional. "Ele disse que queria passar mais tempo com a família e colocar alguém para ajudá-lo com a EMA", conta. De fato, Alexandre e a mulher tinham planos de morar na Austrália e, depois da prova em Fiji, pretendiam procurar uma casa no país.
O empresário era o navegador, patrocinador e líder da equipe. Mas, como já tinha participado de uma prova de aventura muito dura meses antes, não chegou ao Eco Challenge em sua melhor forma.
"No segundo dia da competição em Fiji, comi um ovo estragado e tive uma diarreia muito forte", conta Alexandre. "Ele não estava bem, mas queria continuar. A partir daí, percebemos que tínhamos que seguir o ritmo dele", lembra Carmem.
A EMA Brasil era uma das três equipes brasileiras a participar do Eco Challenge. "E, cada vez que o Alexandre ouvia que havia brasileiros na nossa frente, ficava louco. Aquela rivalidade dava um gás para ele continuar", afirma sua colega de equipe.
José Pupo conta que, apesar da dificuldade da prova e de seu estado físico debilitado, o amigo não quis abandonar a competição: "Quem pensou em desistir fui eu. Mas ele era um atleta muito competitivo, focado. Numa prova dessa, ultrapassamos muitos limites", afirma Pupo.
"Pensamos em parar, mas o Alexandre estava muito determinado. A cabeça dele era mais forte que o corpo", diz Eduardo Coelho, que também compunha a equipe EMA Brasil.
Carmen conta que Alexandre chegou a desmaiar durante a prova. Em algumas corridas de aventura, os participantes recebem um GPS e um rádio lacrados que só devem ser usados em caso de emergência. Romper o lacre significa pedir o resgate e desistir da competição.
"Abrimos o rádio e tentamos chamar ajuda, mas o equipamento estava sem sinal. Fui correndo a um posto de controle chamar o fiscal", diz ela. Mas, ao voltar para o local onde estava a equipe, Carmen encontrou Alexandre recomposto e determinado a seguir em frente. "Como não conseguimos usar o rádio, o fiscal lacrou o equipamento de novo e continuamos na prova", afirma.
Até que, no oitavo dia de prova, a equipe EMA chegou a um vilarejo no meio das Ilhas Fiji. E nesse dia, ao comer o peixe mal cozido, Alexandre ingeriu um parasita que mudaria sua vida para sempre. A versão do atleta é que, com a flora intestinal devastada pela diarreia que teve durante a prova, o parasita presente no peixe não encontrou resistência para passar pelo intestino e caiu em sua corrente sanguínea.
Depois, alojou-se no tronco da medula e entupiu suas artérias, comprometendo diversas funções do corpo. O médico de Alexandre tem uma outra leitura do caso. Para Omar Jaluul, foi o sistema imunológico que reagiu ao parasita, causando danos neurológicos.
O fato é que, dois dias depois de terminar o Eco Challenge, Alexandre precisou ir para um hospital na Austrália, porque não se sentia bem.
Logo em seguida, entrou em coma. Foi transferido para o Brasil dois meses depois, em um avião UTI. Quando chegou aqui, ainda em coma, foi desenganado pelos médicos. "Como tinham certeza de que eu não ia sobreviver, nem se preocuparam com a lubrificação dos olhos", afirma.
Segundo ele, isso causou lesões nas córneas e fez com que ficasse cego. Cinco transplantes de córnea depois, Alexandre conseguiu recuperar cerca de 50% de visão em cada um dos olhos.
O parasita deixou um imenso rastro de destruição no corpo de Alexandre. Ele ficou com a coordenação motora, o equilíbrio e a sensibilidade comprometidos.
Alexandre convive com uma traqueostomia, uma espécie de orifício no pescoço, pois seu pulmão não tem força para respirar sozinho. A audição e a fala também foram afetadas.
Além disso, ele não consegue realizar os movimentos de deglutição e por isso é alimentado por meio de uma sonda. Um homem que tinha tudo, de repente, se viu apenas com sua vontade de viver. E todos os seus projetos ligados à corrida de aventura foram suspensos.
Em uma tarde quente de quinta-feira, Alexandre tomava sol no jardim de sua casa, em São Paulo. Segundo Fábio Branco, 33 anos, fisioterapeuta de Alexandre desde 2003, esse é um de seus prazeres.
Três homens o ajudam a sair da espreguiçadeira em que está deitado para sentar-se em sua cadeira de rodas. Ao todo, são dez pessoas diretamente envolvidas em seus cuidados diários, entre enfermeiros, fisioterapeutas e fonoaudiólogos.
Apesar de continuar legalmente casado, há cerca de dois anos Alexandre se separou de Elza, sua mulher desde 1993. Os amigos ainda se referem a ela como sua esposa, mas atualmente Elza mora com os filhos do casal em uma casa vizinha à dele, no Alto de Pinheiros.
Nos porta-retratos da sala, a mudança na vida de Alexandre é evidente: são fotos dele em plena forma, correndo, abraçando os filhos. E fotos dele hoje, sentado em sua cadeira de rodas, rodeado pela família. Nas paredes da casa, quadros com imagens das provas da EMA.
Hoje, aos 47 anos, sua rotina diária inclui pelo menos 10 horas de exercícios físicos e de reabilitação. Às 8 da manhã já está fazendo fisioterapia. Na sequência, Alexandre recebe uma fonoaudióloga ou uma terapeuta ocupacional.
Do meio-dia à 1 da tarde, pedala na bicicleta ergométrica ou faz um passeio mais longo com um de seus enfermeiros pelas ruas do bairro em uma bicicleta tipo família, que conta com dois assentos, um ao lado do outro.
Às 13h, a massagista entra em campo. Depois, mais fono ou terapia específica para os olhos. Às 15h, ele recebe seu fisioterapeuta e faz mais 3 horas de exercícios físicos. “Ele vivia no limite antes e vive no limite hoje”, afirma o fisioterapeuta.
Alexandre não desiste: repete uma mesma sentença quantas vezes forem necessárias para se fazer entender. Com a ajuda do enfermeiro, que atua como uma espécie de tradutor, ele se orgulha ao lembrar o oitavo lugar da equipe EMA em uma prova de aventura realizada no Vietnã, meses antes do Eco Challenge em Fiji.
Diante da dificuldade do enfermeiro em compreender o nome da prova, Alexandre repete, duas, três, quatro vezes. Nada. Então ele soletra: Raid Gauloises, uma dura corrida francesa. Apesar de todas as dificuldades físicas, seu raciocínio não foi afetado, nem seu espírito competitivo.
"Sempre fui muito determinado. Meu objetivo era ganhar", fala Alexandre. Ele garante que não se arrepende de ter ido para Fiji nem de ter feito tudo que fez para completar aquela prova. "Eu não tinha como saber que isso ia acontecer", explica. E garante que desistir nunca foi uma opção: "Vejo tanta gente deprimida e não entendo. Amo viver, cada pequeno avanço é uma vitória para mim".
Mas um projeto antigo tem dividido espaço com a obsessão pela recuperação na cabeça de Alexandre: retomar as corridas da Expedição Mata Atlântica. Depois de quase uma década dedicada a sua reabilitação, ele decidiu reiniciar as atividades da Expedição Mata Atlântica e montou a EMA Mix Terra, uma nova versão da corrida de aventura que marcou o cenário do esporte dez anos atrás. "Sempre sonhei em fazer a prova de novo e acho que agora estou pronto para isso", conta Alexandre, que sabe de cor todos os detalhes do evento.
A competição vai ter apenas elementos de corridas de aventura, como postos de controle e percurso off-road. "Mas, como não enxergo o suficiente para estudar o percurso e elaborar o mapa, não vamos ter a parte da navegação", explica.
"Serão 25 km pedalando e 15 correndo, mas o trajeto não é muito difícil. Quis montar uma coisa acessível, para que bastante gente pudesse fazer." Alexandre organizou pessoalmente a prova, que acontecerá em novembro, e garante: "Vai ser melhor que as anteriores". Nada pode ser pequeno para Alexandre, o grande.