Carreira

Ela não brincou (só) de boneca e virou engenheira do Google

Camila Matsubara lidera um projeto social do Google que quer abolir de vez a ideia a regra de que mulheres não têm espaço no mercado da tecnologia

Camila Matsubara (Camila Matsubara/Divulgação)

Camila Matsubara (Camila Matsubara/Divulgação)

Claudia Gasparini

Claudia Gasparini

Publicado em 30 de agosto de 2017 às 15h00.

Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 17h46.

São Paulo — Quantas engenheiras de software você conhece? Quantas programadoras? Quantas diretoras de tecnologia? Em pleno século 21, ainda é difícil encontrar mulheres em carreiras de TI, especialmente em cargos de liderança.

Camila Matsubara é exceção. Com graduação e mestrado em ciências da computação pela USP (Universidade de São Paulo), ela trabalha há quatro anos como engenheira de software no escritório do Google em Belo Horizonte, e lidera o grupo de diversidade da empresa na capital mineira.

Ela também está à frente da versão brasileira do “Mind the Gap”, projeto criado por funcionárias do Google de Israel para despertar o interesse de meninas para as carreiras de computação e tecnologia de forma geral.  

Neste mês, a equipe de Matsubara organizou um evento com 72 estudantes de uma escola pública em São Paulo. Segundo ela, o grau de interesse das garotas por carreiras de tecnologia quase dobra após as palestras e workshops oferecidos pelo Google e parceiros como Reprograma e Infopreta

Um estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento) sobre desigualdade de gênero apontou que meninas em idade escolar são pouco estimuladas pelos pais a gostar de matemática — o que explica por que elas têm um desempenho inferior ao dos meninos nessa disciplina, embora tenham notas melhores do que eles em todas as outras matérias.

Esse seria um dos mecanismos por trás da falta de mulheres em carreiras ligadas às ciências exatas. “Para as meninas, costumam dar brinquedos fofinhos, bonequinhas. Já para os meninos, dão brinquedos que estimulam noção espacial e lógica”, diz Matsubara. “Aí nasce um viés inconsciente”.

A engenheira do Google — que como tantas outras “teve bonecas e brincou de fogãozinho” — conta que seus pais ofereceram outros tipos de brinquedo durante sua infância, ligados ao raciocínio lógico, que acentuaram seu gosto pela matemática e moldaram suas escolhas profissionais.

Em entrevista exclusiva por telefone a EXAME, ela fala sobre sua trajetória, dá conselhos para jovens mulheres que sonham com carreiras em tecnologia e comenta o caso do engenheiro do Google que publicou um texto que questiona a capacidade feminina para trabalhar com TI — e acabou sendo demitido. Confira a seguir os melhores trechos da conversa:

EXAME.com — Uma pesquisa global da OCDE mostra que garotas em idade escolar são pouco incentivadas pelos pais a gostar de matemática, o que ajudaria a explicar a desproporção entre homens e mulheres em carreiras de exatas. Como foi no seu caso? Sua família estimulava você a gostar de números?

Camila Matsubara — Sempre gostei de exatas. Na escola, minhas matérias preferidas eram física, química e principalmente matemática. Acho que tive um pouco de influência em casa, porque meu pai é engenheiro. Sempre vi ele trabalhando, fazendo cálculos, e achava interessante. Mas não tive um estímulo específico em matemática, a minha família sempre me incentivou a estudar e ter notas boas em todas as matérias, não só em exatas.

Mas, quando eu era criança, meus pais me davam brinquedos de raciocínio lógico. Eu tinha um computadorzinho, uma calculadora para fazer continhas. Isso pode ter me ajudado um pouco, e é algo que normalmente não acontece muito com outras meninas.

O que acontece com a maioria?

Acho que existe um problema cultural que aparece desde o início das nossas vidas. Existem os brinquedos “de menina” e os brinquedos “de menino”, e coloco muitas aspas nisso.

Para as meninas, costumam dar brinquedos fofinhos, bonequinhas. Para os meninos, costumam dar brinquedos que estimulam noção espacial e lógica.

Aí nasce um viés inconsciente. Eu não vivi algo tão diferente disso, na verdade. Tive bonecas, brinquei de fogãozinho. Mas eu também tive acesso a brinquedos de lógica. E era deles que eu gostava mais.

O que mais explica a falta de mulheres nas chamadas profissões “STEM” (ciência, tecnologia, engenharia e matemática)?

Acho que os estereótipos contribuem muito para isso. Na hora de escolher qual é o vestibular que vão prestar, até as meninas que se sentem à vontade com a matemática acabam optando por carreiras em outras áreas.

Muitas veem a carreira em tecnologia como “coisa de nerd”, aquela ideia de que esse profissional trabalha muito isolado, sem interação social e sem a oportunidade de ser criativo. Percebemos que isso acaba afastando muito as meninas.

Você acha que, por razões culturais, a menina sofre uma pressão maior para cuidar da própria imagem perante o grupo, e por isso ela não quer ser associada à figura “nerd”?

Acredito que sim. Meninos que gostam de videogame acabam se identificando mais com carreiras de tecnologia. Eles têm menos resistência à figura do nerd. Acho que isso acontece porque tecnologia é uma carreira muito associada ao videogame, e videogame é tido como “brinquedo de menino”.

O que achou do caso do engenheiro do Google que acabou sendo demitido por escrever um texto em que questionava a capacidade das mulheres para atuar no mercado de tecnologia?

Tanto o CEO do Google, Sundar Pichai, quanto a CEO do YouTube, Susan Wojcicki, se manifestaram publicamente sobre esse caso. O que eles dizem é que o manifesto desse ex-funcionário é ofensivo e vai contra os valores da empresa. Não era ok ele fazer aquele tipo de declaração. É contra a forma como o Google pensa e funciona.

Algumas pessoas acharam que o Google fez uma censura desse ex-funcionário. Você acredita que discursos que naturalizam a desigualdade de gênero nas empresas devem ser punidos exemplarmente?

O Google apoia a liberdade de expressão, mas existe outra questão básica, que é o respeito. O que aquele documento fazia era perpetuar estereótipos negativos sobre mulheres. É contrário ao nosso código de conduta. Então essa foi a linha seguida pela empresa.

O que mais o Google tem feito para igualar oportunidades profissionais para homens e mulheres nesse campo?

Temos diversos programas, internos e externos, para atingir esse objetivo. Sabemos que é algo muito complexo, que não vamos resolver de uma hora para outra. Globalmente, na área de tecnologia, o Google tem 20% de mulheres e 80% de homens. Em Belo Horizonte, onde eu trabalho, a presença feminina é um pouquinho menor. Mas posso dizer que temos avançado muito.

Existem ações voltadas para os próprios funcionários e funcionárias do Google, em todos os níveis hierárquicos, mas com foco em quem ocupa cargos de gestão, para tornar os nossos preconceitos mais conscientes na hora da tomada de decisão.

E temos também eventos externos, voltados para a comunidade, como o projeto “Mind the Gap”, que eu lidero atualmente no Brasil.

Como funciona esse projeto?

O “Mind the Gap” foi criado em 2008 por engenheiras do escritório do Google em Israel. O objetivo é incentivar mais meninas a se interessarem por carreiras em computação. Compartilhamos informação, mostramos para as garotas como é o curso na universidade, como é a carreira em tecnologia. Elas conhecem o escritório do Google e conversam com engenheiras para saber como é a rotina real de uma mulher nessa carreira.

Trouxemos esse projeto para o Brasil em 2014 e já fizemos um total de nove edições em São Paulo e Belo Horizonte, com meninas do ensino médio. Antes do evento, fazemos uma pesquisa com elas para saber como elas percebem a carreira em tecnologia e quais cursos pretendem prestar no vestibular. Depois da conversa, medimos de novo essas variáveis.

Quais foram os resultados até agora?

O interesse em carreiras de tecnologia quase dobra depois desse contato delas com o tema. Também muda a percepção sobre tecnologia de forma geral, porque elas percebem que a tecnologia traz soluções criativas para problemas importantes da humanidade.

Outro ponto fundamental é que isso traz a confiança de que menina também pode aprender a programar. Existe uma ideia de que computação é uma coisa muito difícil, impossível de aprender. Por isso, também fazemos elas experimentarem a prática. Em São Paulo, as alunas criaram e instalaram um app para celular. Isso tem um impacto direto sobre a autoconfiança delas, porque elas percebem que têm total capacidade para fazer isso.

Você participa diretamente dessas ações?

Sim. Este mês tivemos um evento com 72 estudantes de uma escola pública em São Paulo, em parceria com o Reprograma, que dá aulas de programação para meninas, e a Infopreta, que incentiva mulheres negras a seguir carreira em tecnologia. Nesse evento, eu dei uma palestra sobre como cheguei a essa profissão e como cheguei ao Google.

Coloquei em um dos slides uma foto minha da época do ensino médio, para mostrar que é um caminho real para elas. Ainda mais porque eu também estudei em escola pública.

Faltam exemplos e referências de mulheres em carreiras de tecnologia...

Exatamente. Toda vez que pensamos em lideranças do mundo da tecnologia, pensamos em um homem. Existem muitos exemplos. Até temos algumas mulheres, como a CEO do YouTube, mas são referências distantes. Com esses eventos, conseguimos mostrar engenheiras reais para as meninas.

Qual é o seu recado para jovens mulheres que pensam em ter uma trajetória como a sua?

Tenho três. O primeiro, mais voltado para quem ainda está estudando, é não colocar tanta pressão sua escolha de curso no vestibular. Se você não gostou do que escolheu, pode trocar depois! O segundo é aprender inglês, que é útil em qualquer carreira, mas será especialmente importante para o sucesso na área de tecnologia. O terceiro e último recado é acreditar que você pode ser o que quiser. Inclusive engenheira.

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