Representantes da Aconcarf reagem a medida (Patricia Monteiro/Bloomberg)
Bússola
Publicado em 2 de fevereiro de 2023 às 20h00.
Por Bússola
Uma das medidas mais controversas anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é a volta do chamado voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Na prática, os conselheiros representantes da Fazenda Nacional que presidem as turmas e câmaras no órgão poderão desempatar as votações a favor da União. Desde 2020, o dispositivo havia sido alterado pela Lei 13.988, passando a favorecer o contribuinte em caso de empate na votação.
A mudança sequer estava pacificada, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a sua constitucionalidade, e a nova gestão reverteu a orientação via Medida Provisória (MP). No dia 1 de fevereiro, a Ordem dos Advogadas do Brasil (OAB) ingressou na corte com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pedindo a suspensão do dispositivo até que o plenário conclua o julgamento ou que a MP seja derrubada pelo Congresso. Até porque a reversão do voto de desempate pró-Fisco foi referendada no Legislativo há menos de 3 anos e, já passar por uma revisão, conforme tributaristas, amplia a sensação de insegurança jurídica.
Ex-presidente da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf), Alexandre Evaristo Pinto lembra que, à época da mudança, não houve grande impacto, já que a pandemia levou à determinação de um teto para o valor dos casos. A partir de 2021, com a queda do limite, a alteração foi percebida. "Há bons argumentos a favor e contra a manutenção do dispositivo. Entre eles, o fato de que, ao contribuinte, no caso de um revés, sempre caberá recorrer ao Judiciário. Por outro lado, por si só, um empate indica que as interpretações foram consideradas plausíveis, logo, o contribuinte não deveria ser penalizado", diz.
Alexandre revela que, em uma pesquisa rápida na base de dados de acórdãos do Conselho, há milhares de decisões em que prevaleceu o voto de qualidade em processos envolvendo pessoas físicas ou empresas no Simples. "No que tange às grandes teses, há o argumento de que os empates favoráveis aos contribuintes iriam contra decisões de tribunais superiores, no entanto nota-se que todas as vezes em que o STJ foi instado a avaliar essas questões, a decisão foi favorável ao contribuinte."
Para o atual presidente da Aconcarf, Wesley Rocha, por se tratar de uma determinação legal, ela automaticamente deve ser respeitada. "Como julgadores, estamos aqui para cumprir a lei. O que ocorreu – e que aí nós reagimos enquanto Associação, com uma nota oficial –, foi no sentido de refutar as acusações de que conselheiros estariam votando sempre a favor do contribuinte pelo simples fato de terem sido indicados por eles."
Rocha expõe que já votou por diversas vezes a favor da Fazenda. "Mas, se um contribuinte apresentar uma prova, eu vou analisá-la. É o meu papel. Assim como o dos representantes da Fazenda, que têm presença em número igual. Essa paridade é o que nos legitima", considera. Essa igualdade foi alvo de críticas por Haddad esta terça: "É uma vergonha o que está acontecendo no Carf", diz. "Eu gostaria também de julgar os meus próprios casos, como muitas empresas estão fazendo hoje", afirma o ministro.
Diante das críticas, o dirigente enfatiza que há um regimento interno a ser seguido no Conselho: "se eu não seguir as regras eu sou passível de representações. Do mesmo modo, eu não posso ir contra decisões já pacificadas por STF e STJ (Superior Tribunal de Justiça), sob pena até de perda do mandato."
Por outro lado, em nota divulgada em 30 de janeiro, a Receita Federal argumenta que os auditores-fiscais indicados pelo órgão reconhecem parcial ou totalmente o direito do contribuinte em mais de 25% dos casos já na primeira instância. "Nada mudaria se não houvesse representantes dos contribuintes no Carf. Entretanto, o processo seria mais rápido e barato", diz a nota.
Dispositivo deveria passar por amplo debate
Para Alexandre, com a nova postura, o Carf pode atrair atenção como um meio de ampliar a arrecadação. "Tanto é assim que, de acordo com Haddad, com a reversão da regra de desempate, o 'ganho fiscal' da Fazenda poderia chegar aos R$ 50 bilhões este ano", declara. Assinale-se: os julgamentos do Carf não deveriam ter caráter arrecadatório, e sim o de assegurar a legalidade do lançamento tributário.
"Ele (Haddad) ressaltou o potencial 'ganho fiscal' e acabou por colocar uma certa pressão em todo mundo que participa do órgão", alerta. Alexandre avalia ainda que a volta do desempate por MP, via presidente de turma – que é Fazendário –, não parece o caminho ideal. "Na minha opinião pessoal, um amplo debate sobre o tema seria o mais indicado. Uma decisão desta magnitude não deveria ser tomada via MP."
Vale notar que, no caso de a Medida não ser validada pelo Congresso Nacional, todos os julgamentos realizados até esta apreciação seriam mantidos. "Isso gera insegurança jurídica. E não há certezas em relação ao posicionamento acerca do tema diante da nova composição do Congresso. O contribuinte que for derrotado nesta esfera, certamente vai levar este argumento ao Judiciário", diz.
Zerar fila passa também pela melhoria das condições de trabalho
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 23 de janeiro, o novo presidente do Carf, o auditor da Receita Carlos Higino Ribeiro de Alencar, afirmou que o órgão irá focar, norteado pelo novo plano econômico, em casos mais complexos. Disse ainda que espera zerar a fila de processos represados dentro de dois anos e meio.
No entendimento de Alexandre Evaristo Pinto, o aumento do valor de alçada tende a reduzir o prazo dos julgamentos, evitando o acúmulo de novos casos. "A consequência disso é que talvez os pequenos contribuintes acabem não tendo a possibilidade de ir ao Carf, de forma que não se estará dando a eles um duplo grau de esferas a recorrer. E há processos ativos que nem foram distribuídos", afirma.
Já o atual presidente da Aconcarf, Wesley Rocha, salienta que tudo é possível. "A iniciativa (de zerar fila) é louvável. Em 2015/16, havia uma média de 70 anos de casos represados no estoque do Carf. Depois da implementação de um fluxo interno, com procedimentos adotados com foco na gestão do órgão, esse estoque diminuiu para seis anos," declara.
Rocha antecipa a nova frente de atuação da Aconcarf junto ao órgão: é preciso melhorar as condições de trabalho dos conselheiros. "Somos de dedicação exclusiva, ou seja, não podemos atuar em escritórios de advocacia. Temos todo esse volume de casos para estudar e analisar, e nossa remuneração é baixa frente ao cargo exercido. Não temos direito a férias e, veja bem, estamos em 2023 e as conselheiras mulheres não têm direito a licença maternidade remunerada pelo órgão. É necessário ter um olhar mais apurado para esses direitos fundamentais", diz.
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